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O que seu teto é capaz de suportar? [Tatiana Carlotti ]

Domingo frio em São Paulo, sem marido, sem amigo, sem namorado. O bom e velho cigarro. Fumaça que aquece o peito e se dissolve na boca, café com leite por cima, pão com manteiga, queijo Minas.

A amiga apaixonada no telefone, paixão é doença na alma, desliga com cuidado. A zeladora e as contas do mês, fecha a porta e agradece. Na contracapa de um livro, a foto bonita de um homem, seus mitos sempre tão frágeis. A voz de Ella atrapalha nessa crônica, desliga e o barulho dos carros na Brigadeiro Luis Antônio. Na TV, Ata-me do Almodóvar, Bandeiras de ponta-cabeça, Victoria Abril em suspenso. Quem salva é Vinícius, afro-sambas. Um mês de espera atrás de um desconhecido conectado ao E-Mule. Dança. Gira o corpo. Sua. Taquicardia.

Domingo frio em São Paulo, sem vontade de ler, nem escrever, sem vontade. Um vinho de ontem, uma pizza requentada na frigideira, seus amigos e a defesa de uma literatura que não nasça do próprio umbigo. Parece praga. Contradição imediata. Evita escrever sobre si mesma, olha só o resultado. Procura na janela uma mulher que passe com coturno e casaco vermelhos. São muitas as mulheres que atravessam com sacolas de compras do supermercado. São tantas ofertas e a frase de Don Delillo: aqui não morremos, fazemos compras. Seu salário confuso diante do pequeno pote de palmito. Vontade de plantar alface no banheiro. Manjericão na sala. Viver de aipo.
No apartamento de cima, os vizinhos trepam. O barulho descarado da cama que range. Um parágrafo de silêncio em homenagem aos vizinhos.
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O que seu teto é capaz de suportar?

A amiga apaixonada novamente ao telefone, o cidadão trabalha mais do que um condenado na Rússia czarista, pensa nisso enquanto vê as imagens de um documentário sobre São Petersburgo. Ama o ócio. Corre o dia todo para fruir um segundo, mas sabe, se beber vinho, perde a tarde toda dormindo. Isso que é livre-arbítrio. Tem trabalho para fazer, ouvir o que as pessoas dizem e transcrever. Gosta quando as pessoas gaguejam. É curioso o quanto perde, quando só enxerga. Sem falar do que não cheira, não toca, não aquece. Então, ele liga. Uma saudade cheia de rotinas. Pergunta a hora em que acordou, se comeu bem, a roupa que está usando, o que fez no sábado, o quanto trabalhou, o que pretende fazer. Ela responde sem pensar, as palavras esvaziam o corpo espremido no travesseiro. A ausência dele nos móveis. O pente que esqueceu na prateleira do banheiro.

Mais um cigarro. Ninguém suporta viver com tanto ar. A lembrança da amiga grávida dizendo que todos nós passamos as duas primeiras horas de vida sozinhos. Nenhum hospital permite a mãe ficar no quarto com o recém-nascido. Sua amiga prefere parir em casa, no calor bonito das próprias asas. Essas duas horas ecoam na sua cabeça. Escurece. Acende a luz e o concreto: acordou tarde, não trabalhou como devia, não leu, não estudou, não fez porra nenhuma. Abre o jornal e se sente fora do mundo. Por sorte, a sobrinha telefona, tem seis anos e junta num único, todos os episódios de um desenho japonês que mal compreende o nome.
Pensa em São Paulo invadida por amebas gosmentas e peixes astutos. As manchetes, de repente, parecem mais divertidas debaixo d´água. Então encontra: de cada dez mulheres assassinadas em São Paulo, sete são mortas pelos companheiros. Como pode? Isso não permite metáforas.

Abre a janela e um vento cheio de garoa. Vontade de tomar sopa no Bixiga. Cata os trocados nos bolsos da semana. Enquanto se arruma, Vínicius pergunta: Menina bonita onde é que ocê vai? Se soubesse, escreveria uma história melhor. Uma história clara e delicada como as coisas deveriam ser. Mas ela não sabe. O futuro é uma coisa muito longe num domingo à noite. É só o que sente, enquanto abre o guarda-chuva.

Tatiana Carlotti
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
Site: SobremargenS

3 comentários

Mirian Marclay disse...

Adorei! Que narrativa!

Tatiana Carlotti disse...

Obrigada Mirian, um abraço!

JARA DE MACEDO disse...

Gostei muito desta crônica, me lembrou Bukowski ( em um dos seus poemas) , no livro, O amor é um cão dos diabos. Quando ele relata " os sons dos vizinhos"...
Muito sensível ...
Parabéns e bom domingo para você, abraço