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A Literatura Brasileira como exercício de Metaficção[Raul Arruda Filho]

A literatura Brasileira como

exercício de Metaficção
Durante algum tempo, a literatura brasileira foi inundada pelo romance metaficcional, com pretensões históricas. Poucos conseguiram resistir às tentações propostas pelos divertidos jogos literários de Em liberdade (Silviano Santiago, 1981), provavelmente a primeira narrativa brasileira a desconstruir um ícone literário (no caso, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, publicado em 1953). E a prova mais evidente dessa tendência a−pós−o−moderno − que quase acabou na/com a delícia que é a pizza de feijoada − foi o romance Boca do Inferno (Ana Miranda, 1989), onde o poeta Gregório de Matos sofreu a humilhação de ser reduzido a um espécime raro, desses que muita gente costuma visitar aos domingos, no zoológico. 
 Seguindo parte da trilha traçada pelos textos com um pé na biografia e outro na ficção, como O que é isso, Companheiro? (Fernando Gabeira, 1979) e Os Carbonários (Alfredo Sirkis, 1980), Ana Miranda mostrou à patuléia desvairada uma meia dúzia de truques baratos sobre a maneira mais fácil de diluir as fronteiras entre História e ficção. Ao mesmo tempo, não se importou em substituir o relato do presente por algum tipo de narrativa ilustre, ilustrada, ilustrativa. O agravante de ter sido acusada de descarado plágio parece que não impediu que fosse seguida por gloriosa matilha adestrada.
Ou seja, ninguém ficou surpreso quando diversos autores aceitaram – mais uma vez – o abrigo alegórico, imaginando que, debaixo desse guarda–chuva psicológico, estariam protegidos contra tempestades, terrenos minados e covardia. A crítica, que nunca critica a sério qualquer coisa, e defende a propina de cada dia anunciando os lançamentos editoriais, fez de conta, mais uma vez, que a responsabilidade não era dela.

Em lugar de trabalhar com o real, com a vida pulsante do dia­-a­-dia, denunciando os descompassos do Brasil trôpego e reacionário que nos (des)une e nos faz chorar, o dilúvio de metaficção que assolou nosso desassossego enveredou por inúmeras e incontáveis brincadeiras infanto−juvenis, exaurindo toda substância literária significativa, volatizando a carne e sangue que as envolvem. O recuo (intelectual, emocional, político) comprovou o quão patética foi essa rendição ao superficial.
Ao lado das recriações (malcriações?) literárias sobre Machado de Assis, (Memorial do fim. Haroldo Maranhão, 1984, e Por onde andará Machado de Assis?. Ayrton Marcondes, 2004) e Olavo Bilac (Bilac vê estrelas. Ruy Castro, 2000), apareceram diversas interpretações "exemplares", “comprometidas” com os avanços reacionários que bronzeiam as almas tupiniquins. Ou seja, o gênero ganhou simpatizantes de peso, como comprovam diversos exemplos narrativos. Oswaldo Cruz protagoniza Sonhos tropicais (Moacyr Scliar, 1992), Getúlio Vargas dá o ar da graça em Agosto (Rubem Fonseca, 1990) e O homem que matou Getúlio Vargas (Jô Soares, 1998), Sua Majestade o Imperador D. Pedro I se esbalda em traquinagens em O chalaça (José Roberto Torero, 1994) e Era no tempo do rei (Ruy Castro, 2007) – sendo que Torero emula As maluquices do Imperador (Paulo Setubal, 1927) e Ruy Castro, o clássico Memórias de um sargento de milícias (Manuel Antonio de Macedo, 1852). 

Como parte dessa brincadeira de esconde-esconde (deixando visível o pé ou o rabo), a literatura brasileira contemporânea preferiu flertar com a vida inteira que podia ter sido e que não foi – que jamais será. Inclusive porque a bandeira a ser hasteada no Pico da Neblina de nossas ilusões é outra. Com o passar do tempo, em lugar de enfrentar os monstros que atormentam diariamente, a arte de mentir com as palavras preferiu adotar outro tipo de desterramento. Mascarada de cerebral, procurando estabelecer um cânone onde as referências se sobrepõem à originalidade, a metástase produzida pela metaficção corroeu o corpo literário que a tradição havia construído.

Para que isso se tornasse possível foram sendo agregados alguns elementos que, de uma forma ou de outra, faltavam (ou que alguém julgou/jurou faltar) na literatura nacional. Ao reunir o universal com vários quilos de elementos pitorescos, sob escolta de grandes ações de marketing, a cena literária foi tomada de assalto pelo hibridismo oportunista, oportunamente distante do real. 
De qualquer forma, dando prosseguimento a esse novo velho quadro, o horizonte literário foi povoado pelos múltiplos sócios do balaio de gatos. Em romances como O Xangô de Baker Street (Jô Soares, 1995) e Dias de Faulkner (Antônio Dutra, 2008) ou nos contos de Vésperas (Adriana Lunardi, 2002), Histórias mal contadas (Silviano Santiago, 2005) e Histórias de cegueiras e literatura (Julian Fuks, 2007), o deslocamento da identidade literária, quase imperceptível aos olhos dos leitores, acrescentou uma boa dose de charme cosmopolita ao acanhamento provinciano. Como sói acontecer em estruturas sociais carentes, bastou pequeno agrado para que Rapunzel abrisse as janelas da torre e jogasse as suas tranças ao sedutor – antevendo o gozo, o Don Juan suburbano babou na gravata, como comprova o conto Inverno, 1968 (Arthur Dapieve, 2005).

Enquanto não descobrir o lugar que pretende ocupar no mundo objetivo e os valores que quer defender, a literatura brasileira continuará sendo uma espécie de naufrago em alto−mar, ávida por encontrar uma tábua, qualquer tábua, aonde irá se agarrar – e, se tiver sorte, se salvar.




Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.

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