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Quando o trem passa [Tatiana Carlotti]

Certo dia alguém pára e pergunta: pra onde esse trem tá me levando? 

O movimento pode ser lento ou fulminante. Dependendo da resposta, não tem jeito. A viagem muda a rota e o sentido agora é outro. Não importa se você pulou ou foi jogado para fora do trem, a palavra de ordem é caminhar.

Separar é mais ou menos assim. A primeira dica e a mais importante é juntar a bagagem e procurar um lugar para deixá-la em segurança. Depois você busca. Peso agora, só o do próprio corpo. Fuja da tentação de descobrir os porquês. Você vai ficar parado na plataforma e a resposta só chegará na primavera seguinte. Tire os sapatos e pise na terra. Pode não parecer, mas ela nunca foi tão firme.

Lei de sobrevivência na selva: olhe para o céu. Se chover, como você se vira? Não fique parado. Vá construir a sua própria cabana. Antes, recomendo passar num médico mais próximo, essa coisa de heroísmo é só em filme americano. Se tiver alguma coisa sangrando, ele faz um curativo rápido para estancar o sangue. A dor não mata se você tiver mais o que fazer. Contenha a mania de coçar suas feridas. Dê tempo a elas.

Cabanas seguras são feitas de tijolos.

Você vai suar ao construir tudo de novo. Sugiro cuidado com as inovações arquitetônicas, comece pelo básico: quatro paredes retas e um teto. Você estará protegido da chuva e isso é tudo o que importa agora. Qual o tipo de janela que você mais gosta? Com ou sem grades? Essas são questões muito mais importantes do que as outras que entram na sua cabeça no meio da noite. Mas ainda não pegue as bagagens. Elas estão cheias de mágoa ou culpa, pra quê abrí-las agora?

Toda casa precisa de uma cama, uma pia, uma mesa e um fogão. Leva tempo, mas um dia, com a cabana mais ou menos montada, você acorda e descobre que nada melhor do que uma flor em cima da mesa. Repito: leva um baita tempo. Mas, quando rolar: é hora de caminhar pela floresta! Perder-se nas árvores. Comer uma fruta devagarinho. Acenar para os vizinhos. Tomar uma chuva à tarde. Adormecer sem pressa na grama.
Supere os contos de fada.

E confesse: não seria bacana cruzar, rapidinho, com um lobo ou uma loba perdidos por aí? Só cuidado, não vai praticar a caça inveterada e sair dando tiros a esmo. Seus tiros valem ouro. E lobos ou lobas farejam, nem precisa procurar. Também não vai tentar domesticar o bicho e enfiar na sua cabana... Tá cedo! E existem gatos reais para isso.

Aos poucos, você perceberá que o melhor das cabanas é que elas nunca estão prontas. E quando ficar muito pesado o silêncio, pegue a estradinha de terra, logo ali, e vá até a taberna mais próxima. A gente precisa do barulho dos outros para perder medo do próprio silêncio. Chame os amigos e se não os tiver faça novos. Nada precisa ser tão profundo e é tão bom falar bobagem madrugada afora.

Caso alguém perguntar quando você vai voltar para o trem, diga que está passando umas férias. Ninguém tem o direito de se meter na sua vida.

A vida em sociedade é uma bela piada.

Verdade mais do que comprovada é que quando você se separa, as pessoas te olham diferente. Tem gente que vai te ver como uma ameaça concreta e você nunca vai saber direito a quê. Outros vão confessar todos os seus pecados, como se você, a partir de agora, compreendesse tudo. Repito: tudo. Não vale a pena se irritar, o jeito é ser mais tolerante.  E, cá prá nós, tem algo de cômico nisso.

O fato é que um dia chega a vontade de voltar para a cabana e você se pega feliz por estar ali dentro. Não sei quantas estações isso leva, mas garanto que acontece. Nesse momento, bate na porta o bom silêncio. Ele tem densidade e aquece. É o passo para começar a ser mais generoso consigo mesmo. Um prato recolhido na pia, antes que você perceba. Uma casa arrumada para chegar tranquilo do trabalho. Um compromisso recusado pelo prazer de ficar na santa paz de deus.

Talvez aí, seja o momento de ir até aquele lugar onde você largou a sua bagagem. 

Como ela estará cheia de poeira, recomendo abrí-la sobre a mesa, com um paninho e uma garrafa de vinho à tiracolo. Talvez você se surpreenda com o peso: leve ou pesada não importa. Você vai descobrir que muitos objetos e roupas que guardava ali dentro não te servem mais. E o que serve, provavelmente, vai te acompanhar por um bom tempo ainda. É a tua parte verdadeira na divisão dos bens.

Agora você começa a se separar de verdade. Sim, está tudo errado na lei... A gente não se separa só de alguém. A gente se separa daquilo que fomos com alguém um dia. Esse é o divórcio derradeiro. Por isso é díficil. Por isso não importa se você foi jogado ou se saltou do trem. Separar é um luto delicado que leva um tempo danado...

Até que um dia alguém bate na porta e te chama para ir além dos atalhos.
Mas isso é outro texto... Caminhar se faz parágrafo por parágrafo.

Voilá: a mala está sobre a mesa e os ritos que te aguardam são vários. Há quem queime camisas, outros enterram chinelas. É possível também botar tudo num saco e passar adiante. Eu curto esta opção, é quase uma doação de órgãos, um deixar a vida reciclar, o tal "nada se perde, tudo se transforma".

O que a gente não pode é violentar o tempo. Tem de apalpar cada peça de roupa ou objeto e decidir o que fica e o que vai. Pode apostar, o que ficar é coisa tua, ninguém tira, independe das estações. Talvez, nesse processo, você responda às questões que te atormentaram quando desceu daquele trem... É muito provável que não. Mas, nessa altura do campeonato, as coisas simplesmente já são como são.

Tatiana Carlotti - Balzaquiana convicta e amante das letras. Pulsa no Centro de São Paulo ao lado do Balzac, seu gato. Acredita na força da delicadeza e na densidade da leveza. Ama bastante. Ainda sonha... Site: SobremargenS.

Todos os direitos autorais reservados a autora.

6 comentários

Ivana disse...

É a vida de encontros e desencontros, quem entra quem fica e tudo passa .Temos a capacidade de reconstruir para recomeçar e de alguma maneira o que ficou ninguém tira , por mais pesada que seja a dor , temos a escolha de sermos felizes ou viver no passado alimentando as feridas, um texto maravilhoso Tatiana,Parabéns!!

Gil Façanha disse...

Tatiana, teu texto é de extremo bom gosto e sempre atual. Essas mudanças de estações que a vida nos trás podem ser decisivas. Dependendo das escolhas e postura diante dos fatos, toda a tua vida futura pode ser definida. Adorei a abordagem. Meus sinceros parabéns.

Tatiana Carlotti disse...

Queridas Ivana e Gil, obrigada pela leitura. E vamosquevamos! Beijo, Tati

Mirian Marclay disse...

SEM PALAVRAS!

Mirian Marclay disse...

Aqui ainda em plena epifania com este texto! Perfeito! Já falei eu adoro!

Tatiana Carlotti disse...

Obrigada Mirian! Beijo!