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ALEILTON (Santana da) FONSECA [Poeta, Ficcionista, Ensaísta e Professor Brasileiro]

ALEILTON (Santana da) FONSECA nasceu em Itamirim, hoje Firmino Alves - Bahia, em 21/07/1959. É casado e tem 2 filhos. É poeta, ficcionista, ensaísta e professor universitário. Em 1963, sua família se fixou em Ilhéus-Bahia, onde o autor viveu a infância e a adolescência, cursou até o primeiro ano do segundo grau, escreveu e publicou seus primeiros textos em jornais.
Aleilton começa a escrever ainda no segundo grau, motivados pelas lições e leituras de poemas, crônicas e romances. Em 1977, ingressou na EMARC, escola de Uruçuca - Bahia, onde se formou em Técnico Agrimensor, mas nunca foi buscar o diploma. Nesse ano começa a publicar contos e poemas no Jornal da Bahia, de Salvador, tendo vencido 3 vezes o seu Concurso Permanente de Contos. Publica também no suplemento A Tarde/Novela, de A Tarde. Em Ilhéus passa a assinar a coluna "Entre Aspas", no Jornal da Manhã. Em dezembro de 1977, aos 18 anos, sai sua primeira entrevista, no Jornal da Bahia, quando é apresentado por Adinoel Mota Maia, como um novo escritor que surgia no sul da Bahia. Ainda neste ano, vence um prêmio de contos da Editora Grafipar, do Paraná, além de outros locais. Em 1979, ingressa no curso de Letras da UFBA, e se transfere para Salvador, que adota como seu ambiente de formação cultural. Organiza seu primeiro livro de poemas, que recebe Menção Honrosa no concurso Prêmios Literários Universidade Federal da Bahia – 1980 e é, logo depois, selecionado para abrir a série de poesia da Coleção dos Novos, da Fundação Cultural do Estado da Bahia, que publicou 14 novos autores baianos no início da década de 80 e fixou o perfil da Geração 80 no estado.
Em 1981 publica o seu primeiro livro, Movimento de Sondagem (Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981) que recebeu, entre outros, a atenção de Carlos Drummond de Andrade, que lhe escreveu uma carta de incentivo e de Rubem Braga, que publicou dois de seus poemas na coluna “A Poesia é Necessária”, na Revista Nacional, semanário que circulava encartado nos principais jornais das capitais.



Começa a lecionar Português no ensino fundamental, criando uma oficina literária, cuja produção discente era publicada em murais, em coletânea e nos suplementos infanto-juvenis de jornais, como o JOBA, do extinto Jornal da Bahia. Conclui o curso de Letras e passa a lecionar Literatura e Língua portuguesa. Em 1984 ingressa, como professor, no curso de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, transferindo-se para a cidade de Vitória da Conquista. Publica o livro de poemas, O espelho da consciência.





Em 1988, especializa-se em Literatura brasileira, ao ingressar no Mestrado em Letras, na Universidade Federal da Paraíba. Fixa-se com a família em João Pessoa. Em 1990 retorna às atividades na UESB, trabalhando no curso de Letras, divulgando literatura, incentivando a formação de leitores de poesia através de cursos preparatórios para professores. Em 1992 defende tese de mestrado, sobre música e literatura romântica, que será publicada em livro em 1996, pela editora 7Letras, com o título: Enredo Romântico, música ao fundo: manifestações lúdico-musicais no romance urbano do romantismo. Passa a publicar ensaios e resenhas em suplementos de jornais e em revistas universitárias. Em 1993 ingressa no Doutorado em Literatura Brasileira, na Universidade de São Paulo, fixando-se com a família na capital paulista. Em 1994, publica, em edição artesanal, o metapoema Teoria particular (mas nem tanto) do poema. 



Conclui o doutorado na USP em 1997, com a defesa de uma tese intitulada: “A poesia da cidade: Imagens urbanas em Mário de Andrade”, que sairá em livro proximamente.
Ainda em 1996 retorna a Salvador, onde fixa residência até a atualidade. Retoma suas atividades, junto aos demais escritores da geração 80. Organiza, com Carlos Ribeiro o livro Oitenta: poesia & prosa (Coletânea comemorativa dos 15 anos da Coleção dos Novos). Salvador: BDA-Bahia, 1996, que serviu de base para a definição da geração 80, na antologia A Poesia na Bahia no século XX, organizada por Assis Brasil (Rio: Imago,1999). Concorre ao "Prêmios Culturais de Literatura" da Fundação Cultural do Estado da Bahia, com o livro Jaú dos Bois, que fica entre os vencedores (3o Lugar) e é publicado pela Relume Dumará, em 1997. O livro esgota rapidamente, obtendo expressiva acolhida da crítica, com vários artigos, tornando-se objeto de estudo em cursos de Letras, na Bahia. Em 1998, funda, em parceria com Carlos Ribeiro e outros escritores, Iararana – Revista de arte, crítica e literatura, periódico de divulgação da geração 80. Retoma suas atividades na UESB, lecionando e orientando bolsistas de iniciação científica e monitoria em literatura. 




Em 1999, transfere-se para a Universidade Estadual de Feira de Santana, integrando-se ao grupo fundador do curso de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural (PPgLDC), tendo já orientado várias dissertações concluídas. Como professor do mestrado, desenvolve pesquisas sobre a representação lírica da cidade na poesia moderna e contemporânea, com o projeto “Imagens urbanas na Literatura”. Como parte disso, pesquisa a representação de imagens da Bahia na poesia brasileira. Como professor pesquisador, orienta trabalhos e dissertações de alunos de pós-graduação e de iniciação científica, na área de literatura baiana e brasileira.
Em 2003 leciona, como professor convidado, na Universidade de Artois (França). Neste ano e nos seguintes faz palestras nas Universidades: Sorbonne Nouvelle, Nanterre, Artois, Rennes, Toulouse Le Mirail (França) e ELTE (Budapeste). Tem participado de diversos eventos universitários e culturais em vários estados do país.




Em 2001 publica o livro de contos O desterro dos mortos. Nesse ano recebeu o Prêmio Nacional Herberto Sales – Contos, da academia de Letras da Bahia, com o livro O canto de Alvorada, publicado em 2003,com 2ª edição em 2004, pela Editora José Olympio. Em 2005 co-organiza (com o escritor Cyro de Mattos), o livro O triunfo de Sosígenes Costa: estudos, depoimentos, antologia (Ilhéus: Editus; Feira de Santana, UEFS Editora, 2005.), que recebeu o Prêmio Marcos Almir Madeira 2005, da União Brasileira de Escritores-RJ. Participa de várias antologias e coletâneas de poesia e de prosa, na Brasil e no exterior. Tem livros inéditos em poesia, infanto-juvenil, contos e ensaios.




É co-fundador e co-editor de Iararana, revista de arte, crítica e literatura, editada em Salvador desde 1998, já no nº 13. É co-editor de “Légua & Meia - Revista de Literatura e Diversidade Cultural” da PPgLDC/UEFS. Foi editor da revista Heléboro (UESB, 1997-98). Participa da comissão editorial das revistas Politeia (UESB), Ágere (UFBA) e Floema (UESB). É co-editor de Légua e Meia - revista de Literatura e Diversidade Cultural (PPGLDC/UEFS). Tem colaborado com revistas e suplementos literários, no país e no exterior. Em 2006, publicou poemas em francês, traduzidos por Dominique Stoenesco, na edição especial da revista Autre Sud, de Marselha/França, no dossiê poético “Voix croisées Brésil-France”.


Participa do dossiê bilíngue de poesia Português/Francês da revista Iararana n° 11. Já publicou vários artigos e resenhas, além de diversos poemas e contos em revistas, jornais e sites, no Brasil e no exterior.
Em 2009 completou 50 anos e foi homenageado pelo Lycée des Arènes, em Toulouse-França, com uma exposição de trabalhos de alunos sobre seu livro Les marques du feu. Na Bahia foi homenageado pelo IL-UFBA, através de um seminário sobre sua obra, e também pela Academia de Letras da Bahia. Neste mesmo ano, seu romance Nhô Guimarães foi adaptado para o teatro e encenado em Salvador e outras cidades.
É correspondente da revista francesa Latitudes: cahiers lusophones. Desde 2005, pertence à Academia de Letras da Bahia, ocupando a cadeira nº 20. É membro da UBE-São Paulo e do PEN Clube do Brasil.



 
Livros de poesia, ensaio, contos e romance:

1.Movimento de Sondagem. Salvador; Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981. “Coleção dos Novos, vol. 2 – série Poesia”.

2. O espelho da consciência. Salvador: Gráfica da UFBA, 1984.

3. Teoria particular (mas nem tanto) do poema — ou poética feita em casa. São Paulo: Edições D’Kaza, 1994.

4. Enredo romântico, música ao fundo. (ensaio) Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996.

5. Oitenta: poesia e prosa. Coletânea comemorativa dos 15 anos da “Coleção dos Novos”. Salvador: BDA-Bahia, 1996. (org. Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro)

6. Jaú dos bois e outros contos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

7. Rotas e imagens: literatura e outras viagens. Feira de Santana: UEFS/PPGLDC, 2000. (Org. Aleilton Fonseca e Rubens Alves Pereira)
8. O desterro dos mortos (contos) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
9. O canto de Alvorada (contos). Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

10. O triunfo de Sosígenes Costa. Ilhéus: Editus, 2004. (Org. Cyro de Mattos e Aleilton Fonseca).

11. As formas do barro & outros poemas. Salvador: EPP. 2006.

12. Nhô Guimarães (romance). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

13.Outras moradas(contos, livro coletivo). Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2007

14. Les marques du feu et autres nouvelles de Bahia. Paris: Lanore, 2008. (Tradução de Dominique Stoenesco).

15. Guimarães Rosa, écrivain brésilien centenaire. Bruxelas, Librairie Orfeu, 2008.

16. O olhar de Castro Alves. (org.). Salvador: ALB/ALBA, 2008.

17. O pêndulo de Euclides (romance). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

18. Cantos & recantos da cidade: vozes do lirismo urbano.. (Vários organizadores). Itabuna: Via Litterarum Editora, 2009.
19.A mulher dos sonhos e outras histórias de humor (contos). Itabuna: Via Litterarun, 2010.




Poesia



Teoria particular (mas nem tanto) do poema


1
ovídio: escrever 200 versos
para, dentre, recolher 20 linhas
que contivessem a poesia
de todo o processo:
mas o caudal imenso
não se investe só dos vestidos
da forma nem se conforma

2
mas, há o tempo: é preciso,
por humana deficiência,
o instante grafado:
embora o fluxo da essência,
contínuo, jamais se desfaça
na mão: o poema acabado,
tal como lemos,
é somente convenção

3
pois
o que acaba de se compor,
já desmorona,
se desdiz, se rediz, mildiz,
novas palavras no invento,
novo inventário
em dez dobras vezes n
desdobra-se
no princípio
e agora e sempre

4
a ilíada são muitas ilíadas,
quão homeros a escrevê-la
e talvez por concluí-la ainda:
as estrofes que agora lemos
à falta da mão de homero
damos então por findas

5
mas no poema: cada verso,
é reverso do verso, diverso
no próximo segundo;
cada palavra cede
seu lugar, chama
a outra, que logo apaga,
outra chama, reacende sílabas,
rimas, sentidos,
rios incontidos

6
os lusíadas de camões,
o que lhe sobrou de naufrágios,
para sempre incompletos
daquilo que virou água,
ou que ficou disperso,
dos versos tornados mares,
onde camões? (oh, finitude!)
para prosseguir o que não deu tempo:
com engenho e virtude
e arte

7
o poema muda
de cor e de nome a cada piscar
de olhos,
se alonga, se encurta,
cada rima some
no som que emite
e transmite a centelha
à outra rima, parelha:
corrida de som infinda
poemando-se

8
baudelaire reescreveu as flores
até o fim de sua vida
e as flores ali contidas
não estão terminadas,
a não ser por convenção
e favor à comodidade:
baudelaire houvesse vivo,
as flores contínuas, mudadas

9
cada versão, tal rima a esmo,
reinscritos versos,
os ex-certos, nem mais
nem menos certos,
o mesmo intérmino texto,
em eterno palimpsesto

10
os calligrammes de apollinaire
necessitam de revisão:
pena que o poeta
não esteja aqui a fazê-la
e que assim seja
"para o bem da convenção"

11
pois o poeta e o poema,
entre si adotados, convivem
diários, instantâneos, côngruos,
mesmo se esquecidos um do outro
cada um é outro e o mesmo;
que a cada golpe de ar
novos sensos se acumulam
nos joelhos das palavras

12
quantas pe(r)sso(n)as e vozes
no baú de inéditos do pessoa
à espera de nome e signo
e profissão e biografia:
e não fosse a vã cirrose
quantas mensagens ele a refaria?

13
o poema é o fazer incompleto,
o refazer nunca pronto

14
pois o poema,
já no instante que pronto,
já recomeça,
em processo difuso,
inconcluso,
intransitivo, de re-flexões:

15
que não há o poema particípio,
mas sempre o poema gerúndio
em constante fervura:
é novo e outro, na leitura,
nos reciclos dos segundos

16
o poema que se lê
é tábua de aproximação

17
o poema publicado: trato caduco,
que junto ao poeta já está mudado:
mesmo que não o mude a letra,
mesmo que não o mude a rima,
que não mais o toque,
por respeito ao senhor editor,
por respeito ao senhor leitor,
ao senhor pesquisador
ao senhor louvor:
mesmo que o poeta
assine a convenção do texto
pronto (para o mercado?)
ou mesmo abandone o texto,
a pretexto de acabado,
o poema disporá da hora
de ser outra vez revelado
se outra voz o adota

18
e o poeta, com seu texto pronto,
se já se embebe de elogios eunucos
já saliva manifestações de apreço,
e a poesia paga o preço

19
o poema publicado:
mera marca provisória,
impresso para as provas
de que se faz a história:
é o rastro de um vôo veloz
que poesia é rio que recomeça na foz;
quando se digita o ponto
final, já é hora de apagá-lo
que a corrente segue em frente,
os seus elos sem intervalo

20
contudo, pobres humanos,
só sabemos existir
imprecisos
entre pausas: comer, beber
ir ao banheiro,
ganhar e gastar dinheiro,
dormir, sonhar, sorrir;
as causas para o viver
a pausa para morrer:
a poesia perde por esperar

21
somente em alguns momentos
somos o poeta, em vigília e fé:
em que a poesia, nosso invento,
nos inventa
e nos dá a concessão do poema,
mero quadro, em interrupção,
que ela é onda contínua em nós
mesmo se nos deixa sós

22
então, poetas,
que já me ensinam o sem início
nem fim:
o ponto final, abolido!
o ponto inicial, abolido!
o começo, simples acerto de pares,
o fim o sem-fim inumérico,
infinita água de mares,
o poema dito no instante
que a poesia o dita

23
pois a poesia, estado de ser,
não se captura no humano molde
de letras; ela resiste e insiste
diante dos olhos invisíveis
do poeta que se sabe seu
que a sabe sua,
e sabe: a poesia nua,
companheira e algoz,
toma-lhe o fôlego e a voz,
suspende suas noites,
retira-o da vida, e, num átimo,
se entrega por um instante
entremostra-se, falso-domada
em registro parcial
da luta jamais vã,
mal rompe a manhã

24
a poesia: o rosto na água;
o poema, sua inconstante
aparência, forma mutante,
em recorrência, minúsculas
mudanças em contínua
ação

25
poetas, retomem os seus poemas
despregando-os do papel impresso,
raspando-os da tinta áfona,
em renovada contradança
de metáforas em processo:
o poema, colado no branco da página,
clama por fluir e refluir
em novas sintaxes,
em novas vírgulas,
em novos sentidos;
desdobrar-se em leques vários,
entremostrar, desde as entrelinhas,
seus novos significandos
em poessência

26
que se o poema se esgota,
da poesia abandonado,
torna-se somente corpus,
de pesquisa e enunciados,
em autópsia textual
que lhe decreta o sentido,
em seu mais "último grau",
de seus versos dissecados

27
oh, amém, poema finado

28
mas não há a poesia finita,
mas corrente, em espiral, sem termo
o poema é o instante,
dessa corrente em passagem
re-fulminante,
diante dos olhos atônitos
do poeta, às vezes surpreso,
em agônico gesto

29
o poema re-preso no papel,
em tinta enformado,
sob tratos cosméticos, convencionados,
esconde sua verdade;
o poema é mais que o brilho de letras
para olhos desavisados,
e, como não há parto asséptico,
assim nasce, corpo de palavras,
entre suor e risos e gases e lágrimas

30
sempre o poema-sendo-ando-indo,
em gerundivo estando, em contínuo...


 Conto


O VOO DOS ANJOS

ÍAMOS PELA AVENIDA AFORA, CONDUZÍAMOS O ANDOR DEVOTO. Havia mais mulheres que homens, mais meninas que meninos, nessa procissão leiga, oficiada por conta e risco particulares. A santa deixava o nicho de sua sala especial que tínhamos em casa, alçava-se ao andor de madeira, até que leve, enfeitado de papel crepom, todo em rosa, azul e branco. O cortejo avançava até o final de nosso quarteirão e voltava pela outra rua, mais afastada e sem calçamento, em suas feições interioranas. Prosseguíamos, nesse compasso, parando o quase nenhum trânsito que porventura houvesse.
Era assim todo ano, por juras e empenhos, até que eu completasse treze aniversários. Por que não doze? Melhor se fossem os onze! — e desde antes se desse por encerrada a última peregrinação. Nos primeiros anos, eu mal sabia desses tratos de minha mãe com a divina. E ainda menos que tais ofícios eram por minha irrestrita causa. No começo, eu ia bem que entonado de vestido azul de seda, no colo materno, as asas brancas pendendo de minhas costas, num treino de voo futuro.
Ora, mas... é que fui crescendo. Primeiro, apeado do colo, fui promovido a anjo pedestre. Acompanhava o séquito, a cada ano mais encabulado, e daí, a mais por menos, já em gritante estado de vergonha. Um anjo quase rebelde à frente do andor. A santa até me assemelhava um quanto tristinha por minha causa.
Desde que me achei em tenência dessa parte, já de ensaios e quereres de minha mãe, aprendi os benditos que se cantavam. Ela, me olhando firme, me recomendava por ordem da santa. Eu os entoava, junto com o vozerio das mulheres, de bom grado, desde logo em decrescente, indo em andante com as asas pendentes, doido para me voar dali para onde fosse.
Eu benditoava num esforço de nem abrir a boca, desejando que o périplo se encurtasse de um zás!, por um milagre. Pois se eu sentia os risos de mofa da meninada, ao lado, acompanhando ao largo a promissória que minha mãe resgatava!? Daí eram uns tempos de zombaria que me encaravam: diziam que a saia de anjo me caía bem, balançavam as mãos juntas para me arremedar as asas. E eram umas asas de papelão coberto de papel crepom repicado a tesoura, com as pontas arrebitadas a modo de penas angelicais. Essa tamanha pena, eu podia?
Quê! Dessa vez bem que pedi substituto: “Mãe, já tou grande pra isso!” Ela fez foi ralhar comigo, em quase que ofendida, benzendo-se diante da santa, contra a minha apostasia. Não! Havia de ser eu, sim, oh ingrato! Era a ultimíssima vez! Não fosse a promessa, eu nem tinha vindo ao mundo para ser o único filho de uma já viúva.
Explico-lhes, de breve para colcheia, em segunda voz, pelas notas e pausas por ela mesma postas nesta partitura. Depois de duas perdas, ela teve a má sorte de se ver viúva quando tentava levar a êxito a terceira vez. E eu era o principal interessado. O meu pai, que nunca o vi em vida, este falecera num acidente pouco explicado. Isso já nem nos toca ao caso agora. Para encurtar caminhos e entrelinhas: minha mãe, já de vez sozinha, tinha na gravidez de risco a única esperança de tirar um fruto de uma vida até então em nada de alegrias. Dava-lhe medo que mais esse fruto pecasse.
Dona Dalva, o filho perigando em dificíl gestação, prostrou-se aos pés da santa, em prantos correntes, ofertando-o por afilhado, em proteção de sua esperança. Assim, o ajuste, de ambas as partes, e Deus por testemunha e juiz. Nascesse eu com vida, completasse um ano de choros e fraldas, iríamos nós nessa romaria de ano a ano, por treze vezes se resumindo. Esse era o trato, ad diem.
É óbvio que, criar, me criei! Mas aquelas andanças de anjo sobre a terra, naquelas tardes e noites de maio, mês de Maria, tais e quais, eu me lembro delas, nessa comichão de lhes contar o invento de quantos pontos. Sigam-me nesse passo, veremos de onde a procissão retorna.
Negociei que ela me arrumasse companhia, eu já pelos treze anos, mais dado aos babas de futebol de rua, às caças aos passarinhos e aos castigos escolares, me sentia nas reticências do ridículo, transvestido de anjo, logo eu! E um quê de anjo, como mamãe o concebia, eu tinha mesmo o nenhum! Eu me descriancei desde muito cedo, nas aprendizagens, nos papos furtivos com os meninos maiores e nos brinquedos com as meninas vizinhas. A gente ia sabendo, de outiva, de sutis observações, ensinos e práticas, como as diferenças se combinavam. Tudo em brincadeiras sãs, embora nunca menos escondidas que vigiadas pelos zelosos adultos equidistantes.
Nos entretantos dessa última prestação, era preciso prover motivos de eu não entornar o andor. Então minha mãe me arrumou um anjo de companhia — e eu até cogito que esse anjo se ofereceu para a empreitada comigo. Uma menina das mais levadas, tão mais que linda!, muito sabida em nossas primeiras desinocências. Um trisco menos nova que eu, minha alegria escondida de todos, invasora consentida de meus intentos de adolescer.
Ao lado dessa ângela de madeixas, esqueci das mofas — que, se antes me feriam amiúde, agora evaporavam pelo caminho. Os moleques declinavam de mim e se conjugavam nela, cobiçosos sem o saberem. Eu azul, ela rosa: nossas asas até se tocavam nas pontas, nossos olhos sorriam-se a piscar, inventando brincadeiras. Era uma ângela mais que a santa! — Oh, amada, por onde andas agora, há quanto tempo depois de tudo?
Mas a mãe da menina, de si em si quase desconfiada, ficava de olho em nossas asas, perdendo às vezes o ritmo do bendito, pesponteando-o à frente, no embalo do refrão que se repetia. De vez em vez, ela nos tirava uma mira, tentando adivinhar os ângulos de nossos passos. Ah, que anjos que éramos, os dois numa alegria inexplicável, difícil de se alcançar quando a inocência se desgasta. No enlevo de nem saber o que se passava em nossas veias angelicais, um calor ia-nos tomando, uma vontade louca de nos tocarmos, de nos sentirmos os cheiros, ficarmos por conta de um nada. Estávamos entre o céu e a terra, com olhares lânguidos, de um para o outro.
De mãos postas, em posição devocional, não conseguimos prosseguir. Eu me acerquei de minha ângela e lhe ofereci o calor de minha mão, que suava. Ela tocou-me com um sorriso que me elevou às nuvens, meu coração perdeu o compasso do canto e o ritmo do caminhar, como um tambor desafinado. Continuamos, agora de mãos dadas, sob o olhar impassível da santa em seu andor, que se arrojava à nossa retaguarda.
Minha mãe, se notou alguma coisa, fingiu que não. Até desistiu de ficar me admirando com olhos devedores à santa (uf!). Ela descansasse, que estava tudo pago, e com sobras, isso estava. E eu não morria mais, jurava em mim que não.
Era esse crescendo e caminhando, todo ano no mesmo cair da tarde. Promessa é dívida. A gente se saldava no trato. Eu, no entanto, tinha agora um maior regozijo que valia por todas as peregrinações passadas. Eu queria que o caminho se multiplicasse e que ninguém nos aparasse as asas, nos deixassem flutuar azul e rosa nos sorrisos em que nos doávamos.
Eis que chegávamos ao fim da caminhada. Quando o cortejo se aproximava de casa, escapamos de vez daquela devoção. E nos completamos num abracíssimo demais das medidas. Um verão enorme nos vinha à pele e nos deixava suados, revelando-nos as mais íntimas fontes. E isso era justo enquanto todos se preocupavam em disputar as portas, buscando acomodação diante do nicho da santa, para a celebração da ladainha final.
Havia o lugar certo para os anjos. Mas ali não chegamos. Numa combinação de olhares, dirigimo-nos para o quintal, ao fundo da casa, acolhidos pela moita de quarana.
Anjos, os nossos olhos se entendiam. Decifrávamos segredos a sete chaves ocultos, em busca de aprendermos o prazer de voar. Os nossos lábios se ensinavam, com o ardor que o coração palpitava. Nossas mãos consagravam os corpos tenros, que se buscavam num voo cada vez mais alto. Assim, descobríamos que os anjos também se amam, em carne e alma, sem precisar de palavras.



 Crônica

CARTA A UM JOVEM POETA

Releio sempre a carta que o poeta Carlos Drummond de Andrade me enviou em 1981. Naquele tempo eu tinha 22 anos e havia publicado o primeiro livro de poemas. A idade ardia numa vontade doida de traduzir a vida em versos. Hoje, após tantos janeiros, as musas me cutucam e esbravejam, mas já sei que é difícil comover o vasto mundo, este vale de lágrimas, desamor e enormes cifras.
O poeta gostou do livro e me mandou, em sua letra e estilo inconfundíveis, um voto de confiança, um estímulo, um sopro de vida numa chama que mal balbuciava. Com o envelope inesperado na mão, fiquei atônito entre a alegria trêmula e uma súbita responsabilidade. O carteiro não estivesse já longe e eu o abraçaria, convidá-lo-ia a entrar, conversaríamos sobre o autor daquela carta, eu lhe recitaria os poemas da Rosa do Povo.
Planejei responder ao poeta, mas a surpresa me ofuscou as idéias. E agora, José? Eu lia e relia a mensagem, lembrava de minhas primeiras incursões por sua poesia no ginásio e na biblioteca pública. Aquele nome tão longínquo agora me parecia estranhamente tão próximo. Não consegui inventar palavras para expressar o meu estado de espírito. A missiva, hoje amorosamente amarelada, ficou sem resposta para sempre.
No final daquele ano fui ao Rio e planejei fazer uma visita de surpresa ao poeta. Um dia, saí com o endereço anotado, decidido a ir bater em sua residência. Mas, à medida que avançava pelas ruas, a coragem se perdia pelas esquinas. Acabei perambulando o dia todo, sem encarar o caminho definitivo de um encontro com o admirado autor de Boitempo. E se ele não me atendesse? E se não passasse de um “como vai?”, um “prazer em conhecê-lo” formais? Seria uma situação constrangedora, – o poeta diante de um jovem desconhecido que vinha de certa forma importuná-lo, logo ele, tão discreto e avesso aos cultos da personalidade. Não fui.
Até hoje oscilo quanto ao acerto daquela decisão: ora me arrependo de haver desistido, ora acho que assim foi melhor. O encontro poderia ter sido a quebra de todo encanto. Guardei na distância a admiração e a gratidão pelo gesto de incentivo, embora sentisse também um enorme vazio. Em 1987, quando recebi a notícia de que o poeta havia falecido, senti um choque, uma sensação pontiaguda de perda irreparável, um abismo me engolia e as lágrimas brotavam de meu olhar fatigado. O poeta se foi e eu fiquei cativo de minha não-resposta, da perda de sua presença e de sua palavra. Mas, por outro lado, algo valioso eu ganhei: o sentido poético dessa falta, que se conforma e se alimenta na leitura da velha carta, na lembrança de uma resposta não escrita, de uma visita não realizada, de um poema-homenagem que se escreve para sempre em minha memória.






Drummond encantado

Há tantos anos,
o coração do poeta desistiu
de lutar com palavras.

Não lhe mandei minha letra,
nem recolhi sua imagem viva
em meu olhar.

O poeta encantou-se,
liberto de nós e de si mesmo.

E a mim só me resta
a letra íntima da página muda
que nunca lhe escrevi.

 Texto publicado no JORNAL DA TARDE, SÃO PAULO, 22/3/00



Fonte :

ALEILTON (Santana da) FONSECA 
Todos os direitos autorais reservados ao autor .

2 comentários

Anônimo disse...

Aleilton Fonseca,sua obras são lindas e muito reflexivas,seu trabalho deveria ser mais divulgado em nosso país,muito bom.Parabéns!!!!

Lilian disse...

Li uma obra de Aleilton Fonseca e fiquei encantada com a linguagem simples e cativante,parabéns ao autor!!!!