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Imagens de um abismo iluminado – a relação entre loucura e razão na contemporaneidade [Wuldson Marcelo e Ariadne Marinho Machado]

Imagens de um abismo iluminado – a relação entre loucura e razão na contemporaneidade

No mundo contemporâneo as construções mentais que formamos tendo as imagens como referências – ao buscarmos comparações e similitudes – são imperiosas. As peças de argilas expostas na sala da residência do Doutor Luís Alves Corrêa, peças estas feitas pelos internos portadores de sofrimento mental do extinto Hospital Dia Cuiabá, no CIAPS Adauto Botelho (propostas nas sessões de psicoterapia entre 2004 e 2005), suscitam tal poder imagético, que revelam, ao mesmo tempo, o quanto nosso julgamento é interpenetrado por reminiscências e fantasias. As criações em cerâmicas, inicialmente, remetem ao exército em terracota enterrado com o primeiro imperador chinês Quin Shihuang, composto por guerreiros e cavalos em formação de batalha verdadeira, encontrados em 1974. Outra imagem possível, essa não alusiva, mas fruto do devaneio, concerne a uma marcha de desesperados que rumam circunscritos à sua própria orla de angústias, desejos e psicoses, como se o purgatório comporta-se seres tão entregues à dores lacerantes.

No entanto, o que se depreende dessas singelas obras está depositada menos na forma como as interpretamos do que naquilo que comunicam por si mesmas. O que vale dizer que não é a crítica direcionada à razão que qualifica as peças e lhes atribui valor estético, mas a concepção dessa arte entremeada por normatizações psiquiátricas, que regularmente são escamoteadas ou etiquetadas como inapropriadas, sem sentido, ilógicas. Isso graças à nossa racionalidade técnica que se apresenta como modo hegemônico de organização da vida, imputando ao inconsciente, ao não explicável por formulações testadas e aprovadas, as alcunhas de bizarro e irracional. Daí nota-se uma relação conflituosa entre razão e loucura. Contudo, como já expressado, não a define, pois, desse modo, abraçaria dicotomia ou polaridade que ensejam manter o entendimento que o sofrimento mental apenas torna-se produtor de arte quando direcionado por uma racionalidade que o elucida. Não é necessário compor um edifício racional para compreender e apreciar a arte engendrada pelo inconsciente, contudo (e no caso específico das peças de argilas feitas pelos internos do Hospital Dia) o uso da racionalidade mostra-se essencial para proporcionar às obras a amplitude que elas merecem.  

A separação entre razão e loucura fora instituída pelos estudos desenvolvidos pela psiquiatria, logo é um processo contido na história, e que não pertence a um procedimento de seleção natural humano entre posturas/ações normais e anormais. O filósofo alemão Georg W. F. Hegel assinalou que o inventário loucura-razão não está baseado no fato da primeira ser a Outra da segunda, mas sim seu momento, e nem a loucura deve ser considerada uma região distante que comporta alteridade, mas uma das figuras singulares da própria razão. Então um clichê como “a nossa vã razão não nos deixa compreender” gera um preconceito contra a forma mais comum (não a única, nem a melhor) de apreensão do mundo e dificulta a possibilidade de vislumbrar a proximidade entre loucura e razão. Ambas proporcionam matérias-primas para arte, e as produções literárias de Franz Kafka, Robert Walser, Guy de Maupassant, Lima Barreto e Machado de Assis são exemplos desse diálogo. Ou a própria loucura fazer-se literatura, como no caso de “Aurélia” de Gerard de Nerval, expressão dos transtornos e delírios do autor francês.
Na contemporaneidade a tensão entre loucura e razão, assim como arte e cultura, está vinculada ao consumo, o que ocasiona e aprofunda o mal-estar da sociedade atual. Zygmunt Bauman nos recorda que na vida líquida (condição do presente estágio da modernidade) nada é feito para durar. Neste momento em que tudo é transitório, as peças de cerâmicas, “criaturas” do desejo de comunicação e expressão de sentimentos, são retratos de subjetividades que vivem em crise com seus sonhos e angústias, mas que enunciam algo objetivo: a dor. As argilas são moldadas para dar concretude às tais dores. Dores que ainda preferimos não enxergar, sentir, compartilhar. A vida líquida carrega forte intolerância ao sofrimento, manifestada no uso exagerado de antidepressivos, alívio para o peso de existências que teimam em ser refletidas, pois sentenciou Sócrates “Uma vida que não é examinada, não vale ser vivida”. Por isso essa dor é dirimida cada vez mais em nome da aparência de felicidade a qualquer custo. A doença mental, apesar da luta dos movimentos antimanicomiais e de especialistas da área psiquiátrica que defendem a permanência do psicótico junto à família, atrai medo e repulsa, o isolamento parece ser um destino viável aos que não percebem que viver no subterrâneo ou à margem deixa cicatrizes, que o abandono exibe como vestígio indelével.
Segundo Bauman, uma das obsessões do mundo contemporâneo assenta-se na busca do corpo perfeito. Corpos que por si mesmos comuniquem beleza e saúde. Academias e cosméticos são os triunfos de uma indústria que vende a vitória da aparência. Nesse cenário, peças de argilas que transmitem dores e sofrimentos psíquicos podem causar um pequeno curto-circuito na falsa harmonia entre culto ao corpo e mente sã. Figuras em genuflexão ou desfiguradas, corpos contorcidos, personagens de um inferno particular dão a dimensão do que fora preferível ocultar ao longo do tempo. Tais criações engendradas pela loucura revelam que não apenas o “normal”, o “racional” elaboram, esculpem a beleza. A loucura durante o processo de modernização teve como destino os esconderijos de clínicas de internação que colocavam em prática a separação entre o produtivo e o improdutivo, o útil e o inútil, a satisfação e a agonia. Há muito tempo os diagnosticados como loucos são apartados da sociedade, tratados (como diz Bauman sobre os emigrantes, miseráveis, desempregados) como “refugos”. “Refugos” que têm afinidade com a ideia de “redundância”, que Bauman define como um estado no qual se está condenado a permanecer tal como se é. Por mais que o sociólogo polonês ao falar de pessoas “redundantes” trate dos desempregados e dos refugiados, numa aproximação (adaptação) possível, os loucos recebem tal distinção de uma sociedade que os percebe como dispensáveis. “Ser ‘redundante’ significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso – quaisquer que sejam os usos e necessidades responsáveis pelo estabelecimento dos padrões e utilidade e de indispensabilidade. Os outros não necessitam de você” (BAUMAN, 2005: 20).
Um pensador que versa sobre a loucura é Michel Foucault, uma das vozes mais ativa do mundo contemporâneo. Foucault afirma que as relações sociais são correlações de forças, forjadas através de discursos que padronizam os comportamentos sociais assim as construções mentais. E os sujeitos que ultrapassam essa tênue fronteira, que delimitamos entre racional e o irracional, de sanidade e insano, de normais e anormais, de loucura e razão, são pareados como indivíduos infames, aqueles que vivem à margem da sociedade.
Nessa perspectiva, Foucault analisa o processo de racionalização do discurso em temas que, segundo ele, podem ser considerados não centrais, como a loucura, doenças, morte, entre outros, relacionando-os com as tecnologias do poder.
Em seu livro a “História da Loucura”, o autor sentencia que a definição da loucura como patologia é uma intervenção relativamente recente na história da civilização ocidental, fundamentada pelo discurso médico nascido no período das Luzes. Isto significa que foi em determinado momento histórico que a “doença mental” passou a existir como a máscara da loucura.
A gênese da loucura na reflexão de Foucault não está correlacionada ao acúmulo de saber da contemporaneidade. Foucault se aproxima muito de uma abordagem metodologicamente etnográfica, para não deformar o conceito psicopatológico elaborado pela nossa cultura através de um resgate histórico. E, com efeito, o que é originário no processo de constituição do que vem a ser a loucura, não é dado pela Psiquiatria (isto só é desvelado na contemporaneidade), mas no ato que criou a distância entre a razão e aquilo que a nega como tal, isto é, a não razão. E, segundo o mesmo, uma só existe em função da outra.
Portanto, a modernidade hodierna marca a busca pelo saudável, pelo bem-estar. Todos discutem como viver melhor e mais tendo como focos a alimentação, o vestuário, os exercícios físicos, a descontração. As angústias, os problemas familiares, a literatura ficam de fora dos programas que tomam conta da grade em qualquer horário das emissoras de TV. Neles não pode haver indícios de loucura. Qualquer sinal nos levaria, alegoricamente, direto para a Casa Verde, do conto “O alienista” de Machado de Assis. O sofrimento ou qualquer sintoma de psicose pode desencadear um sentimento de inutilidade, de letargia ou agitação improdutiva. O que se qualificaria como um “pecado”, pois afeta a tranquilidade das casas na moderna sociedade de consumidores. Certos fragmentos que insistem em invadir o cotidiano, tomá-lo de assalto e produzir um choque, como as modestas peças de argila, de certa forma, denunciam o perigoso jogo de esconder a loucura em recônditos intangíveis.
A crise entre razão e loucura expõe fraturas do projeto moderno de normalização e normatização da vida. As dicotomias e antinomias favorecem a prevalência de uma racionalidade que prescindiu das sensações, do inconsciente, do delírio, das intuições para tatear as verdades do mundo. Mas essas fronteiras estão sendo abolidas, tornaram-se porosas com obras que nos convocam a refletir sobre a criatividade que nasce, mas que não são definidas estritamente pela loucura: luz e sombra, forma e informe, figuras angelicais e demoníacas, dor e alegria, amor e ódio, gritos e sussurros estão contidas em cada toque que faz originar um pequeno universo íntimo que se lança para o exterior, pois, no caso dos internos do Hospital Dia, essa sensibilidade artística que aflora em cada peça esta sujeita às dores que preenchem a subjetividade de cada autor, compondo um liame com a realidade, com as referências do mundo objetivo, como quando lembram cerâmicas nordestinas, a força e a agonia do sertanejo, imagens de gárgulas ou demônios difundidos nas artes visuais, na literatura e nos retratos religiosos. Um universo no qual se debate um mundo interior que anseia o contato com o mundo que não é inefável, que emerge a procura de Zaratustra e evita o velho feiticeiro e seu canto melancólico.

“(...) Assim cá, eu mesmo, outrora,
Da loucura da verdade,
Dos meus anseios diurnos,
Cansado do dia, enfermo da luz –
Caí no rumo da noite, da sombra,
Por uma verdade
Queimado e sedento.
Não recordas mais, ó ardente coração,
A sede que sentias?
Que eu seja banido
De toda verdade,
Só louco!
Só poeta!” (NIETZSCHE, s/d: 302).

Quando refletimos que a racionalidade nos dá subsídios para construir uma visão de mundo e não uma verdade absoluta, pode-se demarcar uma posição em que peças de argilas concebidas por psicóticos em tratamento saiam de um não lugar que ocupam, deixando a obscuridade a qual estiveram por ser condenadas. Um lugar, um nome, uma exposição. Conforme Marc Augé, “O lugar e o não lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação” (AUGÉ, 1994: 74). Mas como postula Augé, os não lugares determinam uma época: as inúmeras construções na selva de concreto, ferros e tecnologias de última geração na supermodernidade que proporcionam a imagem da individualidade que prima pela afetação high-tech e pelo egocentrismo.
Supermodernidade para Augé, pós-modernidade para a pensadora canadense Linda Hutcheon. Segundo a autora, a poética do pós-modernismo estaria na refutação das dicotomias lançadas pela modernidade clássica, como a autonomia da arte e a separação entre arte e vida. Para Hutcheon, o mundo contemporâneo confabula com variados tipos de ordens e sistemas que foram constituídos pela história. Não são ordenações fixas, mas produções humanas que foram escritas na história, assim como a dualidade conflituosa entre razão e loucura. O tempo atual por aceitar o provisório, a interdisciplinaridade, o movente em todas as coisas não repudia as possibilidades de encontro (logo, o provável ainda não efetivado) e pode, por isso, evitar a denegação por pré-conceitos.
Para concluir, as peças de argilas causam ainda imagens de fantasia e reminiscência: a encenação de uma geografia do abismo. A loucura como um precipício que irradia feixes de luz que iluminam um cenário sombrio. Nesse abismo, um lugar, a crise razão-loucura encontra sua zona fronteiriça, o interstício de comunicação que traduz para a racionalidade as vidas que o inconsciente faz existir.

Referências bibliográficas

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução Maria Lúcia Pereira. Campinas, SP: Papirus, 1994.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1997.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.


Ariadne Marinho Machado é mestranda em História na UFMT. Graduada em História (UFMT) aprecia artes plásticas e poesia, em especial, Vincent Van Gogh e Pablo Neruda.   

         
Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e “Subterfúgios Urbanos”.


2 comentários

Unknown disse...

Olá Wuldson e Ariadne, parabéns pelo texto, pelo destaque as testemunhas de uma dor anunciada a parafrasear o grupo, do Hospital Adauto Botelhoo, abraçoss

Unknown disse...

Olá Wuldson e Ariadne, parabéns pelo texto, e pela demonstração que na loucura podemos continuar humanos, a demonstrar o caso dos pacientes do Adauto Botelho, testemunhas de uma dor anunciada a lembrar do grupo no face. abraços