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O ambiente literário e a inexistência da poeta que era mulher de verdade [Ronald Augusto]

O ambiente literário e a inexistência da poeta que era mulher de verdade


É conhecida – para os mais sensíveis talvez até demasiadamente – a afirmação do poeta Ezra Pound segundo a qual há uma classe de autores que, a rigor, não existe, porque, na verdade, é o ambiente literário que lhe confere uma existência. O meio literário (revistas especializadas, jornalismo cultural, concursos, prêmios, feiras, editoras…) constitui e fortalece, hoje, a recepção tolerante com formas medianas de literatura; em atenção à comunicabilidade transigente com a pressa e com o diluimento das ideias, a regra é não dar assunto ao difícil. De outra parte, a precipitação para os espécimes dessa literatura que qualquer indivíduo pode “acessar” – nesse saco entra, inclusive, a poesia, tida e havida, entre as artes da palavra, como a mais inacessível – merecerá crédito só até o momento em que deixar de ser vantajosa para o jornalismo a serviço de grupos editoriais mais poderosos. Todavia, a dinâmica que põe em ação todo esse esquema amplia tanto as chances de sobrevivência, quanto de aniquilamento do nosso virtual autor. De resto, o quadro em movimento da produção brasileira, seja em poesia, seja em prosa, desenhado pelos interesses do meio (mercado) literário, funciona apenas para canonizar esse mesmo ambiente e, por consequência, transferir autoridade às suas escolhas. O objeto da consagração não é senão algo que fica a caminho, um mero acidente. A partir dessa ótica, a bola da vez (para usar um jargão oriundo da especulação financeira) atende pelo nome de Angélica Freitas. E o que se lê em seu segundo conjunto de poemas?

Um útero é do tamanho de um punho dá a impressão de ser menos histérico do que histriônico; a poeta se dispõe a desentranhar – sublinhando as imposturas – de um determinado repertório de controle, codificado e sedimentado no tempo e no teatro social, alguns índices de surpresa subversiva e de autoria paródica. O gesto se justificaria, não fosse pelo fato de que a autonomia da linguagem de que a autora se serve é relegada, nesse embate, a um plano secundário, acessório. Em outras palavras, o gesticulatório assume o lugar do gesto. Em termos etimológicos o qualificativo “histérico”, como se sabe, “diz respeito ao útero, às afecções do útero”. Mas a poeta o toma como tema fake do seu conjunto de poemas levando-o ao limite da saturação e denunciando, em tom de absurdo tolicionário, a crise do histérico, enquanto linha transversa, no interior da sociedade, da ideologia, da história e da cultura, quando o que está em causa, nos discursos dessas categorias, é a representação e a explicação dos dilemas e desejos da mulher contemporânea.

Angélica Freitas se aventura por uma linguagem que, graças ao ridículo que a atravessa – onde se vê implicada enquanto revela suas entranhas, e a partir de uma pretensa agilidade facultada como vantagem pelo “pós-tudo” da cultura do espetáculo –, parece lhe permitir a capacidade de escapar a uma restritiva e reativa poética do feminismo ou do feminino. Seus poemas, infensos ao correto discurso de gênero, fazem as vezes de um conjunto de tiradas meio misóginas e intramuros, metacrítica de comadre perversa e pervertida (“amélia que era a mulher de verdade/ fugiu com a mulher barbada”)2. Notar ainda, no título da obra, a coincidência assonante entre útero/punho evocativa de uma série de clichês que reificam uma analogia semântica entre os termos e onde o feminino se reprega sobre si mesmo concentrando uma força, um contragolpe, votado a nocautear ou neutralizar o masculino em registro caricato.

Essa decisão por não levar a sério – em benefício de uma imaginada “relação divertida” com – uma questão de gênero tout court (confira o leitor, a esse propósito, o poema “Mulher depressa”, página 37), decisão que, à primeira vista, teria a seu favor a possibilidade de engendrar interpretações mais desanuviadas a respeito de assunto ainda tão controverso, acaba por conduzir Angélica Freitas a soluções superficiais de linguagem que, sem demora, vão se diluindo no mesmo ritmo com que aparentemente se indispõem com a estupidificação que cerca o imaginário referente ao feminino. O que acontece é que Um útero é do tamanho de um punho está calcado sobre um conjunto de recursos tão inovadores quanto o velho pós-moderno, fonte principal deles, o possa permitir – sim, esse mesmo pós-moderno que, definido por alguns autores como uma forma de ecletismo retrô, conferiu relevância à subalterna prática do virtuosismo técnico baseado na interferência ou no decalque irônico dos modelos, alçando-o à categoria de releitura. Vejamos, a partir dessa perspectiva, alguns dos elementos estéticos de apoio à consecução da poética (sei que o termo soa excessivo) que Angélica Freitas experimenta no livro em causa.

Começo pelo minimalismo paupérrimo do seu texto. Ainda que produto de artifício construtivo, essa restrição de elementos discursivos – destilação de expedientes linguísticos do banal cujo ritmo esbarra num inepto versilibrismo de fachada – faz, quando muito, homenagem acrítica ao fraseado comunicativo das redes sociais e da música pulverizado dos 140 caracteres; seu texto se limita com o fait accompli do rumor interminável das postagens, esse código volátil como as transações bancárias cuja lengalenga se converte em moeda sem lastro (“uma mulher gorda/ incomoda muita gente/ uma mulher gorda e bêbada/ incomoda muito mais”; [...] “alguém quer saber o que é metonímia/ abre uma página na wikipédia”). Incorporando à análise uma elevada dose de boa vontade pode-se dizer que Angélica Freitas se contenta em fazer pouco do parco e do parvo. Para o mínimo de consequência, uma medida mínima recomendada de esforço.

Depois vem a colagem, ou melhor, o colecionismo serial a partir de fontes da cibercultura como marca textual, a par de ser testemunho geracional e credencial com que se efetivam muitas reputações literárias de agora-agora. Um útero é do tamanho de um punho se espoja numa febricitante expropriação digital de ninharias (“a mulher pensa com o coração/ a mulher pensa de outra maneira/ a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante/ a mulher pensa será em compras talvez…”); expropriação que, a pretexto de ressignificar ou de virar ao avesso todo esse bagaço de sentenças fastidiosas, só se esgota em si mesma. A fruição, entre maníaca e minuciosa, de simplesmente recortar e colecionar tais anônimos bibelôs verbais faz com que as relações que pudéssemos extrair dessa seleta ordinária se tornem menos importantes do que ela.

Por fim, apenas mais esse elemento: o pop. Angélica Freitas acena francamente ao território tão esperto quanto anódino da cultura pop, seja por sua mundanidade desbragada a ponto de se configurar em um Mumbo-Jumbo (nonsense) de homem/mulher branco/branca, seja por seu apelo cínico à realidade mediada inflacionariamente pelos signos. A poeta, em sua condição espiritual, às vezes, me parece a versão de saias do Chacrinha, o Velho Guerreiro e sua buzina (“é uma amiga minha/ é a filha da minha mãe/ é a mulher maravilha/ do carnaval de 79), e se eu quisesse prosseguir com outra analogia estapafúrdia, diria que Angélica Freitas, entre iconoclasta e pós-utópica, afivela a máscara de um Aquiles sem ira nem bandeira, mas que mudara de sexo porque seu Hades já não era mais aquele; perdera a graça; a virilidade pela esterilidade (“e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado”).

Interessa ao pop descobrir o interditado, a cifra de outra atitude criativa, em tudo que se considera indigno de atenção e, ainda menos, próprio da arte ou da alta cultura. Subjaz ao discurso histriônico de Um útero é do tamanho de um punho um caráter duchampiano, referência onde se enraíza, sem chance de escape, a (pop) arte desde a década de 1960 até agora. Para a poeta Angélica Freitas e, do mesmo modo, para o pop, as ideias e as mitologias parecem melhores quanto mais vulgares e baratas se afigurem.Ainda nos encontramos na órbita larga, expansiva e já bastante exaurida dos ready-made que Octavio Paz descreve assim: “[...] são objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obra de arte”3. Obviamente o interesse de Angélica Freitas não é poético, talvez seja, no máximo, crítico e vagamente – ou, melhor dizendo, a contragosto – político.

Um útero é do tamanho de um punho, não obstante a virtude de ser um livro de poemas com um “tema de fundo” e, ao mesmo tempo, de apostar nas formas da redundância como invariante discursiva, coisa nada comum no acervo das obras poéticas de nossa tradição, tem, infelizmente, contra si, a metamorfose do risco calculado de sua antilira em uma espécie de stand-up poético cujo entressorriso fleumático, carregado de trocadilhos frívolos (que, aliás, acompanham a poeta desde o seu primeiro livro em cuja cobertura lê-se a seguinte puerilidade linguística: Rilke Shake), faz limite com o senso comum reacionário, em tom pastel, e nada inventivo da badalada Geração 00. Distração pachorrenta, inercial; congenial ao escopo do espírito desse leitor indolente para quem o simples cotejar de links substitui qualquer chance de interpretação mais radical.

Restaria avançar uma ou duas ideias sobre a consagração fulminante de Angélica Freitas, afinal, seu percurso poético público abarca apenas cinco anos de atividade.O lastro da simpatia pessoal e profissional; as boas relações com os despachantes dos grupos de mando, tanto do mercado editorial supostamente interessado no fascínio artístico, quanto do jornalismo cultural; os contatos de mútuo prestigiamento que ratificam o traço endogâmico da poesia contemporânea; enfim, esses itens perfeitamente secundários no que concerne à fruição do poema são, de fato, secundários, porém não irrelevantes – principalmente para o caso em tela. E importam ser questionados e referidos aqui como insumos para debates vindouros, justamente porque, ao menos para as circunstâncias atuais, se tornaram mais relevantes ou indispensáveis do que a qualidade estética em si mesma.

Mas Angélica Freitas é uma vencedora, um fenômeno, uma irrupção. Aliás, aqueles que até há pouco se diziam suspeitos porque sempre elogiaram a poeta e amiga (profetizando “contra tudo e contra todos”), começam a se sentir mais aliviados, pois como já alardearam publicamente, não são mais apenas eles a fazer isso; agora é a própria Folha de São Paulo4 quem o afirma. Pano rápido. Diante de tal façanha qualquer reação crítica será tachada de revanchista ou invejosa. Apesar disso, deixo registrada aqui a minha contribuição.5

2 Todas as citações em itálico, as entre parênteses e aspas, que aparecem no corpo deste texto são excertos de poemas extraídos de Um útero é do tamanho de um punho / Angélica Freitas, São Paulo: Cosac Naify, 2012.

3PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 23


5 Ver também outro texto que procura ampliar o debate sobre o caso Angélica Freitas para além dos limites do simplesmente laudatório: http://sibila.com.br/novos-e-criticos/feminismo-ralo-serve-a-interesses-comerciais-imediatistas/9194


Ronald Augusto nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.
twitter.com/ronaldpoesiapau

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