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A paixão pelas palavras de Cleonice Berardinelli [Pedro Sprejer]

A paixão pelas palavras de Cleonice Berardinelli


Maior especialista em literatura portuguesa do Brasil e autora da primeira tese dedicada a Fernando Pessoa no país (e a segunda no mundo), Cleonice Berardinelli, de 96 anos, revisita a própria obra em uma premiada coleção e é anunciada como uma das principais atrações da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde dividirá uma mesa com a amiga Maria Bethânia sobre o poeta
Por Pedro Sprejer

Lá se vão quase 70 anos do dia em que os versos de Fernando Pessoa desaguaram na vida de Cleonice Berardinelli. Vieram de repente, sem aviso, pelas mãos do professor de literatura portuguesa Thiers Martins Moreira, de quem Cleonice era assistente na antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ.

— Ele trouxe um livro e perguntou o que eu achava. Respondi que não achava nada, pois nunca tinha ouvido falar daquele poeta. Comecei a ler Pessoa ali e costumo dizer que ainda não acabei — conta a catedrática, com entusiasmo e graça jovial, aos 96 anos.

A descoberta deixou marcas que o tempo só aprofundou. Pouco depois, nos anos 1950, Cleonice escreveria a primeira tese dedicada a Pessoa no Brasil — a segunda no mundo. Considerada a maior especialista brasileira em literatura portuguesa em atividade (incessante, por sinal), ela receberá em maio o cobiçado título de Doutor Honoris Causa pela da Universidade de Coimbra.


Dona Cleo — como é carinhosamente chamada por alunos e colegas — acaba de ser anunciada pela organização da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) para uma mesa que é desde já uma das grandes atrações do festival. Ela estará ao lado de uma amiga ilustre, a cantora Maria Bethânia, que já gravou diversos poemas de Pessoa. O programa vai girar em torno do poeta, grande elo entre as duas:

— Faz tempo que não conversamos, por conta da morte de sua mãe, dona Canô. Mas será Pessoa, disso não há dúvida — garante Cleonice, que em 2010 recebeu, ao lado de Bethânia, a medalha da Ordem do Desassossego, criada pela Casa Fernando Pessoa, de Lisboa, para homenagear divulgadores da obra do poeta português em todo o mundo.

Desde 2011, Cleonice se dedica a uma coleção editada pela Casa da Palavra reunindo parte de sua obra crítica e antologias de poemas portugueses por ela selecionados:

— Estou me relendo, descobrindo coisas que já nem me lembrava de ter escrito.

No ano passado, saíram, pela mesma coleção, “Gil Vicente: autos” (premiado pela Fundação Biblioteca Nacional) e “Fernando Pessoa: antologia poética”, cujo lançamento teve uma “canja” de Bethânia, cantando e declamando.

Cleonice finaliza um volume sobre poetas portugueses dos séculos XVI ao XX. Ao lado das secretárias Vanie e Solange, que a acompanham há muitos anos, trabalha sem parar. Escolhe poemas e confere originais, até mesmo enquanto, vaidosa, faz escova no cabelo ou tem as unhas pintadas. Usa bengala enquanto se recupera de uma fratura no fêmur e, nas horas livres, recebe candidatos à cadeira que pertenceu ao poeta Lêdo Ivo na Academia Brasileira de Letras, onde Cleonice ingressou em 2009.

Memória prodigiosa

Sentada na poltrona de seu apartamento em Copacabana, entre um gole e outro da água de coco que bebe religiosamente, Cleonice transporta os ouvintes para o Rio e a São Paulo do início do século XX. Rememora com gosto a infância e a paixão fulminante pela poesia, incentivada pelos pais — um comandante de artilharia do Exército e uma dona de casa que adorava os poetas românticos — e lapidada nas aulas de declamação na casa de Dona Noemia do Nascimento Gama, um dos muitos nomes que faz questão de citar ao narrar a própria história.

Não esquece quase nada, não gosta de esquecer:

— É como se perdesse uma coisa. Tenho que ir atrás, tenho que sair procurando.

Recentemente, por sugestão de uma aluna, Cleonice encontrou no Google os primeiros poemas que o pai lhe mostrou. Muitos dos versos permaneceram em sua assombrosa memória desde a meninice, assim como o hino da infantaria que o pai costumava entoar orgulhoso pela casa.

— Veja bem, acho que isso não é mais memória. Já entrou na veia: agora é circulação — reflete Cleonice, que aos13 anos sabia declamar mais de 200 poemas de cor, muitos dos quais ainda recorda.

Precoce, ela encantou o poeta Alberto de Oliveira, fundador da cadeira número oito da Academia Brasileira de Letras, que após ouvi-la escreveu versos prometendo rezar por ela. Quase 90 anos depois, Cleonice tomaria posse da mesma cadeira oito da ABL.

Apesar do apetite pelos versos, chegando aos 18 anos, encaminhava-se para a música e chegou a ser convidada por seu professor de piano, o célebre compositor Oscar Lorenzo Fernández, para lecionar no recém-criado Conservatório Brasileiro de Música.

Mas, com a transferência do pai para São Paulo, se distanciou das partituras e decidiu abraçar um antigo sonho. Escrever poesia? Nada disso:

— Queria ser engenheira de estradas, construir pontes, viadutos e tudo isso que eu via nas nossas andanças entre Rio e São Paulo.

Teria sido isso, não fosse a intervenção de um professor de português do Liceu, que lhe recomendou o curso de Letras da também recém-criada Faculdade de Filosofias, Ciências e Letras da USP. A mãe concordou, achou o emprego indicado para uma moça, muito mais do que “ficar na estrada com os operários”. E lá se foi Cleonice, meio que levada pelo braço, para o mundo das letras.

— Sou um produto do que era a USP quando abriu. Foi lá que conheci meu mestre, o português Fidelino de Figueiredo, um homem do mundo, exilado por Salazar, que conhecia profundamente a literatura portuguesa.

Um mundo novo se descortinava e ela o abraçava apaixonadamente. No final do curso, chegou a aceitar uma vaga para ser assistente de Fidelino. Mas, outra vez, o pai foi transferido e ela voltou ao Rio sem trabalho, amigos ou faculdade.

Tornou-se professora de latim do Colégio São Paulo, iniciando uma carreira de mais de sete décadas. Convidada por Thiers Martins Moreira para representar um auto de Gil Vicente, cativou o professor. Ao fim do espetáculo, foi convidada para ser sua assistente.

Lecionou na UFRJ entre 1944 e 2009. Lá teve colegas como Alceu Amoroso Lima e Manuel Bandeira, um grande amigo:

— Conversávamos muito. Ele adorava o papo-de-anjo que eu fazia. Passava uma hora batendo o doce à mão.

Na PUC, entrou em 1963 e, embora já não lecione, ainda tem uma orientanda. Ao todo, orientou 74 dissertações de mestrado e 42 teses de doutorado. Hoje, é raro sair sem esbarrar com algum ex-aluno que se põe a saudá-la:

— Acho que não existe uma profissão tão gratificante. A medicina talvez se aproxime, mas não tem nada igual a essa relação de convívio constante durante anos.

Para o jornalista e escritor Zuenir Ventura, aluno de Cleonice em 1955, na Universidade do Brasil, a antiga mestra continua sendo “uma simpática menininha, toda coquete”.

— A aula dela é um deslumbramento. Além do saber, Cleonice ainda tem o dom da representação teatral — elogia Zuenir, que se orgulha de ter criado o apelido “Divina Cleo”.

Responsável por apresentar Cleonice a Bethânia, o professor do departamento de Letras da PUC Júlio Diniz não se esquece do primeiro contato com a professora, em uma conferência sobre Camões:

— Fiquei totalmente seduzido pela fala musical, pela memória que guardava textos e sonetos com precisão, pela clareza de pensamento, pela beleza do encontro da leitora com um dos seus autores preferidos — lembra Diniz, que está concebendo um CD com poemas de Pessoa declamados por Cleonice e Bethânia, idealizadora do álbum.


Para Ana Maria Machado, ex-aluna de Cleonice e presidente da ABL, o legado da pesquisadora é inestimável:

— Ela tem uma importância de alguém que fica nos bastidores filtrando tudo que é ruído, preservando os textos, deixando-os puros e cristalinos.

"Nunca parei de trabalhar"

Cleonice não teve filhos, mas chama de filhas as sobrinhas e de trinetos os bisnetos destas. É viúva há 29 anos de um médico chamado Álvaro, como o heterônimo de Pessoa a quem ela mais se dedicou. Em 1997, sofreu um duro golpe, com a morte do neto Luiz Rodolfo, que considerava o seu “herdeiro intelectual”, em um acidente de ônibus. Ficaram os livros, os incontáveis alunos, a vontade de continuar ensinando.

Mas, afinal, que mistérios tem Cleonice? Será a água de coco, a poesia de todos os dias, a vida entre tantos amigos?

— O meu segredo é muito fácil e pode ser que seja muito difícil de realizar. É que eu nunca parei de trabalhar e nunca trabalhei senão naquilo que amo muito. Sempre digo isso: fazer aquilo de que não se gosta deve ser como estar em uma prisão entre grades.

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