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O escritor saca a escopeta [Marcos Caldeira Mendonça]


O escritor saca a escopeta

Por Marcos Caldeira Mendonça em 26/02/2013 na edição 735

Reproduzido d’O TREM Itabirano nº 90, fevereiro/2013; título original “Ignácio de Loyola Brandão saca a escopeta”

Sabe tiro de escopeta – aquela fartura de chumbo pelando? É uma imagem que define bem esta – haja esta – entrevista com o cronista, contista, jornalista e romancista paulista Ignácio de Loyola Brandão. “Um país que tem Aloísio Mercadante como ministro não é sério. Poderiam dar a ele o Ministério da Pesca, mas não pegaria nem uma sardinha com anzol.” Ainda sobre o governo Dilma Rousseff: “Acaso algum dia a Martha Suplicy teve capacidade para ser ministra da Cultura?” Fernando Collor, Josés Sarney e Dirceu e Renan Calheiros “deveriam sumir explicadamente”. E o Congresso? “É canalha, vendido, entregue.”

Fora da política, o chumbo continua pelando. “A ignorância permeia a nossa mídia. Importantes são Cláudia Leitte, Justin Bieber e padre Marcelo Rossi, cujo livro Ágape é uma afronta.” E o humorista Rafinha Bastos? “Deus meu! Vade retro, satanás.” E a biografia do magnata Eike Batista? “Argh, argh.” E a Academia Brasileira de Letras? “É vetusta e cheia de política. Para entrar, tem de pedir a bênção ao José Sarney.” E esses escritores que fazem loucuras em busca da glória? “A Cíntia Moscovich, lá do Sul, provoca celeumas em cima de qualquer coisa para ser notada.” E o cinema brasileiro? “É capenga porque quase ninguém sabe fazer.”

Ignácio de Loyola Brandão fala bem também, neném. De trem, por exemplo. É um tremaníaco, que deseja ver o Brasil todo cortado por ativas estradas de ferro: “O trem é pura poesia. Um avião encostando no finger não tem a beleza de uma locomotiva entrando numa estação, apitando e batendo o sino. Ou à noite com aquele farol que é um sol”.

A seguir, o peregrino escritor de Araraquara, cronista do jornal O Estado de S.Paulo, responde a perguntas sobre Carlos Drummond de Andrade, saudade, literatura-arte e literatura-comercial, entre outros assuntos, e conta casos de gente que trabalha Brasil afora em favor do livro, com pouco dinheiro e longe de auxílios governamentais, mas vigorosamente.

Em 2012, a morte do escritor paulista Hernâni Donato foi ignorada por grandes meios de comunicação – grandes em tamanho, aclaro. O pessoal das televisões, por exemplo, preferiu discutir o novo nariz, após plástica, de Geisy Arruda, aquelazinha que ficou famosa por ser hostilizada ao trajar roupa curta numa escola. É a plástica de uma baranga valendo mais que um grande escritor. O Brasil enlouqueceu?

Ignácio de Loyola Brandão – Hernâni foi colega meu na Editora Abril e na Academia Paulista de Letras. No dia em que morreu, escrevi no “Caderno 2” [do jornal O Estado de S.Paulo], depois de comentar a morte de Alcione Araújo, que comandava ao meu lado a Jornada de Passo Fundo. A perda do Alcione foi um golpe. A vida a partir de uma época, ou idade, é coleção de perdas. Bem, escrevi: “Também Hernâni Donato partiu. Estava com 90 anos e era uma delícia ouvi-lo falar na Academia. Sabia tudo sobre a história do Brasil e a de São Paulo. Raconteur delicioso, erudito. Falava pausado, repleto de informações e uma memória privilegiada. Tinha a voz mansa e trazia fatos à margem, anedotas, casos, revirava a história do avesso. Trabalhamos juntos vários anos na Editora Abril. Seu romance Selva Trágica, adaptado ao cinema por Roberto Farias, tornou-se filme clássico. Nos seus textos, na sua narrativa, a história não era chata, acadêmica, pesada. Era viva, agitada, carne e sangue. Como foi injusta a mídia. Falou-se tão pouco de Hernâni. Ou é ignorância? Onde estão nossos críticos e ensaístas? Mais: será, mas será mesmo, que é impossível enganar a morte? Ela é tão inteligente e esperta assim? Ou Deus a protege?” A ignorância permeia a nossa mídia. Importantes são Cláudia Leitte, Justin Bieber, padre Marcelo Rossi, cujo livro Ágape é uma afronta, Geisy, Ísis Valverde, Luana Piovani, Michel Teló, Rafinha Bastos (Deus meu! Vade retro, satanás), Zorra Total, Galvão Bueno, Neymar e seu cabelo, Adriano – talvez, quem sabe, ainda no Flamengo – e outros. Ainda bem que acabei de tirar o time de campo. Estou longe de redações, a não ser pela crônica do Estadão. Uma vez, nos meus últimos dias como editor da revista Vogue, dei um texto para um jovem recém-saído da faculdade de jornalismo que me pedia uma chance. Quando me entregou a matéria, li, disse: “Não entendi! O que você quis dizer?” E ele, sarcástico: “Não entendeu porque o senhor é da velha geração. Estou aqui, um jovem, para quebrar as regras, implantar uma nova linguagem”. E você conhece as regras? “Não! Estou a quebrá-las, o senhor não entendeu”. Essas são as turmas preparadas para atuar em redações. É isso que está acontecendo. Está todo mundo “quebrando regras”. Só se for aquelas regras que as mulheres têm mensalmente.

A Academia Brasileira de Letras o seduz? A ABL cumpre a função de fortalecer nossa literatura ou, como sentenciou Fernando Jorge, é mais estéril que útero de mula?

I.L.B. – Estou contente com a nossa Academia Paulista de Letras. Um grupo de pessoas de idades variadas, mas gente aberta, conversadora, leitora. Não há solenidade, não há pose, a gravata foi dispensada, são pessoas que representam vários setores das artes, da literatura. Tem até um grande criador de história em quadrinhos, o Maurício de Souza. A ABL é vetusta e cheia de política. Para entrar, tem de pedir a bênção ao José Sarney, veja só. Ou do “imponente” e arrogante Eduardo Portela. Um dia, quando na Biblioteca Nacional, o Portela produziu um livro de luxo com a relação dos escritores brasileiros traduzidos no exterior. Eu, que tenho dez traduções, não fui citado. Indagado, Portela respondeu: “Relacionei escritores”. E como olhar para uma entidade que recusou duas vezes Mario Quintana, recusou um Antônio Torres e elegeu um Merval Pereira?


A profissão de escritor é muito sacralizada no Brasil. Também vê assim o ofício?

I.L.B. – Já foi mais. Os autores se blindavam, mais do que o Lula. A gente não chegava a eles. Quando conheci Jorge Amado, me assombrei. Amável, afável, tranquilo, colocava a mão no ombro da gente, nos tratava como igual. Era a segurança dele. Corro este país falando. Minha fala não é acadêmica. Não falo sobre metalinguagem, semiótica e congêneres. Conto histórias sobre o ofício, o processo de criação. Literatura é prazer. Um dia, numa pequena cidade de Minas, Patrocínio, uma professora me disse: “Que bom, o senhor dessacraliza a literatura”. Achei um enorme elogio, define o que faço, o que um grupo enorme está fazendo. Saem – saímos – dos pedestais em que muitos nos colocam, em que muitos se colocam, porque não há razão de ser, de ali estar, e metemos o pé no chão. Há um jogo, há grupos que, tendo lobby junto a certa mídia, incluem ou excluem certos nomes, que durante um tempo pairam nas alturas. Alguns, reconheço, são bons. Outros vão comer poeira. Além do mais, quem garante posteridade? Acabo de ler a apresentação que Paulo Rónai fez de A Comédia Humana, recém-lançada pela Editora Globo, o que a redime de publicar padres Marcelo Rossi e Fábio de Melo. Obra monumental, 89 romances, evento editorial magnífico. Rónai escreve que Balzac foi detestado pela elite da crítica francesa de seu tempo. De Sainte- Beuve para baixo, todos lhe davam pau. Era um saco de pancadas. E agora? Balzac foi tão grande que influenciou até Dostoiévski. A mídia? A crítica? Os grupinhos? Bah!!!


O senhor se diverte com os escritores que fazem loucuras em busca da glória?

I.L.B. – A relação de macaquices é imensa, porque saem na mídia. Basta ter o rosto impresso ou no Youtube. Lembro-me de um jovem autor que me procurou. Queria saber como escrever livros e ficar famoso. Já escreveu o livro? Ainda não, mas preciso saber como ficar famoso. Só queria ser célebre. Desmistifiquei essas coisas em meu romance O Anônimo Célebre. Tem quem raspe e pinte a cabeça com desenhos exóticos, quem faz tatuagens, quem provoca celeumas em cima de qualquer coisa para ser notada, como a Cíntia Moscovich, lá do Sul, quem escreve blogues se autoelogiando, quem se encerra em uma cabine de plástico dentro da livraria – Paula Parisot em São Paulo. Conheço um que dispara em todas as direções as entrevistas que dá em blogues de amigos, em revistas informáticas. Performances e happenings são coisas dos anos 1970 e 80. Mas o ser humano é uma fauna complexa e curiosa, divertida às vezes; chatíssima, outras. Eles façam o que quiserem, desde que escrevam bons livros. Ernest Hemingway não era narcisista? Não era um chato que vivia desafiando os outros para briga, sendo grande e forte? Faulkner não estava sempre bêbado? E veja sua obra. Céline não foi um filho de uma puta? Mas tem dois dos maiores livros de toda a literatura francesa. Agora, me diga, cite um, um só, um desses nossos vaidosos e exibidos com um grande livro. Por isso admiro gente como Marçal Aquino, sempre na dele, e produzindo; o Luiz Ruffato, obra constante; o Menalton Braff, low profile, tranquilo no interior, sem foguetórios; a carreira consciente do Moacyr Scliar; o cuidado com detalhes e estilo do Antonio Torres; a Teresa Salem, firme na dela. Em recente Flip, a feira de vaidades recebeu uma grande lição. No palco, walter hugo mãe – assim, com minúsculas – e a argentina Pola Oloixarac. Bela, sensual, lábios rubros, vestido estampado, toda a mídia atrás dela. No palco, entrou como um furacão, os homens deliraram. Ela falou, falou, falou, nada disse, nada se compreendeu. Então, walter hugo mãe se ergueu e começou a falar manso e lento. As pessoas pensaram: xiiiiiiiii, não vai dar. Começou a contar histórias e a envolver o público. Em quinze minutos, a plateia estava siderada, presa. E ele, comendo pela bordas, como se diz. Tranquilo, cheio de emoção, timing, domínio do palco. As mulheres choravam, os homens aplaudiam, todo hipnotizados. A musa sumiu, entrou em depressão. walter hugo é um dos ídolos atuais da língua portuguesa. Com razão, seus livros são magníficos. Quando a pessoa tem substância…

Como vê o trabalho Brasil afora em favor da leitura e da cultura, feito por gente pouco conhecida e menos ainda reconhecida, quase no anonimato, com parcos recursos, longe de ajudas governamentais? Escritor peregrino, o senhor deve saber muitos casos.

I.L.B. – Conhece o T-Bone em Brasília, na Asa Sul? É o açougue de um sujeito que sempre gostou de ler, o Luiz Amorim. As pessoas entravam para comprar carne e o viam lendo. Um dia, começou a emprestar livros. Não contente, colocou caixotes cheios de livros dentro do açougue. Os fregueses levavam e devolviam, doavam. Depois, com dinheiro próprio, abriu um centro cultural. Começou a levar escritores para falar na calçada, diante do açougue, nos finais de tarde. Fui um desses. Agora, ele colocou estantes em todos os pontos de ônibus da avenida que corta Brasília ao meio. Bibliotecas públicas, públicas mesmo, abertas noite e dia. Você passa, apanha o livro que quer, devolve quando acabou de ler. Mais de 600 livros assim são emprestados por dia. O sumiço é mínimo, nem conta. Em São Paulo, em Paraisópolis, uma comunidade, antes se dizia favela, o jovem Claudemir Cabral montou uma biblioteca com 12 livros. Louco por livros, pedia, pedia e hoje a biblioteca tem 20 mil volumes. À tarde toda, o espaço – conseguiu um espaço – está cheio de crianças. Em São Paulo, a menina Duda Porto de Souza quis, porque quis, criar uma biblioteca multilíngue. Disparou e-mails em todas as direções, usou todas as redes sociais e esperou. Foi esnobada, xingada, riram dela. Outros como Ruth Rocha, Ziraldo e até Oprah Winfrey disseram sim. Pronto, a Biblioteca do Centro Universitário Belas Artes tem 20 mil volumes. Em Teresina, meia dúzia de professoras foram enviadas para a escola mais rebelde, terrível, bagunçada, maluca, indomada, da cidade. Todos desistiam de trabalhar ali, enlouqueciam e iam para o terapeuta. A Casa Meio Norte está no bairro mais violento da cidade, reduto de ladrões, traficantes, assassinos, prostitutas. Os alunos? Filhos daquela gente. As moças foram e no primeiro dia, em meio a uma balbúrdia infernal, leram histórias. No segundo, leram história. No décimo, leram histórias. No décimo quinto, viram que quatro alunos ouviam. No vigésimo dia, os quatro tinham contado as histórias aos outros, despertando curiosidade. No segundo mês, elas liam histórias em meio ao silêncio. Passaram a dar aulas de geografia, matemática, português, por meio da literatura. A Casa Meio Norte é limpa, sem grades, sem grafites, tem biblioteca e os alunos leem, cada um, cerca de 15 a 20 livros por mês. Nem na USP se lê assim. Estive lá, falei lá, ouvi os alunos, escrevi sobre eles. A Meio Norte já recebeu vários prêmios. Em Joinville, muitos anos atrás, as professoras da escola General Emílio Medici tiveram um insight e, na lista de material enviada aos pais, pediram: se quiser, tiver boa vontade e puder, doe um livro infantil para a biblioteca da classe de seu filho. A biblioteca não existia. No primeiro ano, pouquíssimos atenderam. No segundo, surpresa, mais de 50 livros. Com o passear do tempo, as doações se tornaram hábito, questão de honra, e hoje todas as classes daquela escola têm biblioteca excelente e os livros são intercambiados. Mas há também poetas como a macapaense Carla Nobre que decidiu fazer a primeira feira literária do seu estado e movimentou céus e terras, lutando contra o descrédito. A primeira Flap foi um sucesso, até o governador esteve lá todos os dias, o que é raro, inusitado, inacreditável. Nunca tinha visto isso. Fui lá, vi. E não é fácil chegar ao Amapá, as companhias aéreas dificultam o quanto podem. Mas vale a pena. Curiosidade: Macapá é chamada a capital do meio do mundo. Pois ali passa o Equador e divide a cidade em dois hemisférios, Norte e Sul.

Literatura-arte e literatura-comercial...

I.L.B. – Tem no mundo todo. Faz parte do nosso ofício. A literatura comercial ajuda a manter a arte, a não comercial. Lembrar que existe a chamada literatura de entretenimento, que é de boa qualidade e tem seu público leitor fiel. Os best-sellers, as autoajudas fornecem um respaldo financeiro para o editor arriscar alguém que considera bom. Só que cada vez se arrisca menos. Ou será que cada vez tem menos bons aparecendo? Estamos vivendo um período espantoso, catastrófico. Olhem as listas de mais vendidos. O sexo-soft daquela americana, os livros desse Augusto Cury, os livros espíritas, os que ensinam a gerenciar negócios, se tornarem vendedores, gerentes, empresários, milionários. Sucesso, todo mundo quer o sucesso. Tipo a biografia do Eike Batista, argh, argh. Sem esquecer dietas, regimes, musculações e rejuvenescimento. Todos querem a fonte da juventude. Mais, nas listas de ficção da Veja, da Época, da IstoÉ, não há brasileiros.

Como vê esses milhões e milhões e milhões que não têm o hábito da leitura, preferem gastar vida, por exemplo, com novelas ruins da TV Globo – raríssimas as boas – e não se beneficiam da grande diversão que é a boa leitura? Tem dó desse rebanhão?

I.L.B. – Dó porque são pobres coitados esquecidos, rejeitados, abandonados pelos governos, pela elite. Não lhes foi dada educação, saúde e trabalho. Deram Bolsa-Família, um incentivo ao ócio. Não esquecer que este é um país em que a Educação inexiste, foi relegada à ruína. Um país que tem Aloísio Mercadante como ministro não é sério. Mercadante já foi ministro de tudo, é medíocre. Poderiam dar a ele o Ministério da Pesca, mas não pegaria nem uma sardinha com anzol. Escolas e cursinhos preparam para passar no vestibular. Não preparam para a vida, para a leitura, para a reflexão, o pensar, o se ver. Isso sempre interessou ao poder. E desde que o Lula promoveu a ascensão das classes C e D, o Mercado virou-se para elas, inclusive o mercado cultural. Se é que Zorra Total, Malhação, Ana Maria Braga, Luciano Huck, Vídeo Show, Globo Repórter, The Voice, Big Brother, A Fazenda e Cidade Alerta são programas que possam levar alguma coisa a alguém. Nos anos 1960, um dia, Sérgio Porto, o genial Stanislaw Ponte Preta, entregou um roteiro à TV Rio, acentuando: “Isto é o pior que consigo fazer”. Hoje, os roteiristas entregam os programas e dizem: “Dei o melhor de mim”. Ou como dizia a Xuxa: “Dei o melhor de si”. Subitamente, um respiro. Quando se pensava que as novelas tinham se estrangulado por si, surgiu Avenida Brasil, algo de novo. Mas a Globo é incorrigível: sai uma e entra Salve Jorge, na qual ninguém se salva. E muito menos o público.

Se fosse ministro da Cultura, o que faria para aumentar o número de leitores? Tem alguma grande ideia com esse fito?

I.L.B. – Ministério são cargos políticos, trampolins. Acaso algum dia a Martha Suplicy teve capacidade para ser ministra da Cultura? A ministra do “relaxa e goza”. Depois de uma declaração daquelas, qualquer pessoa ética teria pedido o boné e ido embora. Ou feito como a enfermeira inglesa que se enforcou de vergonha. Acaso os ministérios estão pensando em leitores? Tivessem, dariam ensino, abririam bibliotecas, incentivariam a produção de livros livres de taxas. Pipocam aqui e ali ideias. No Ceará, há os agentes de leitura, que, pedalando bicicletas, levam bibliotecas nas costas aos bairros periféricos e à zona rural. Há também as bienais fora das bienais, com os escritores indo falar na periferia ou em cidades do sertão. No Acre, há os Quiosques de Leituras esparramados por todas as praças. Há as Casas de Leitura onde crianças aprendem, leem, comem e dormem. Em Passo Fundo (RS), há bienalmente a maior jornada de literatura brasileira, com seis mil pessoas na plateia. Professores e estudantes, caráter multiplicador. Governo federal sempre ausente.


Li um crítico reclamando da falta de divulgação dos bons escritores novos. Falava de igrejinhas, compadrios, nepotismo cultural, ruins incensados por jornais em conluio com editoras. “A mídia, em relação à literatura, segue a fala do capitão em Casablanca: ‘Olhem só os suspeitos de sempre’ “, escreveu. Como vê o Butantã literário?

I.L.B. – A frase do filme é “Prendam os suspeitos de sempre...” Tem gente que só reclama, se queixa, mas sempre foi assim. Divulgar onde? Como? Na mídia impressa tão pouco lida? Os suplementos estão acabando, fechando. Alguns são press releases de certas editoras poderosas. O livro precisa descobrir o mundo virtual, a rede social, avançar por aí. Onde estão os programas de televisão que falam de livros? Há o Edney Silvestre que faz ótimas entrevistas na GloboNews. Na TV Senado, o Marcelo Mello Jr. é dos melhores entrevistadores do Brasil. Sem esquecer a nossa Bia Correa do Lago, que já entrevistou tudo que é gente importante, tudo que é novato promissor, tudo que é promessa. São pessoas que leem e sabem perguntar, estão informadas.

Conte, por favor, uma história bonita vivida pelo senhor nesse tempo todo na estrada literária Brasil afora. Sei do caso da velhinha que lhe deu uma garrafa de mel no Ceará, mas deve haver outros casos belos.

I.L.B. – Fui certa vez a Passo Fundo como patrono de uma feira de livros, nada a ver com a célebre jornada. Era na praça principal, na qual ergueram uma tenda em que os autores se revezavam o dia inteiro, falando e respondendo. Meia hora cada um. Sempre havia plateia. Estudantes, curiosos, vagabundos, uma coisa bem gostosa. Interrogado por uma estudante, contei o processo de criação do meu conto “O Mistério da Formiga Matutina”, que está no livro O Homem que Odiava a Segunda-Feira. O conto surgiu numa manhã em que, solitário, vi uma formiga na mesa de café e comecei a conversar com ela. Sou assim. Queria ouvir a voz, o som que ela produzia. Dessa inútil tentativa resultou um conto sobre solidão, necessidade de comunicação, etc. Quando acabei, um gaúcho de bombachas e botas veio me perguntar se eu era louco. Disse que não. Ele tinha perguntado para as pessoas se eu era louco, já que queria falar com as formigas. Disseram-lhe que não, que eu era escritor sério, responsável e usava a fantasia, a imaginação. Ele me disse que era analfabeto, mas tinha ouvido minhas histórias e me agradecia. Eu tinha tirado um peso das costas dele. Explicou. Tendo seu pai morrido muito cedo, ele foi criado por um tio que lhe ensinara tudo. Adorava esse tio. Até o dia em que o tio, tendo comprado um aparelho de som na cidade, começou a colocar um microfone nas bocas dos formigueiros no pasto, querendo ouvir a voz das formigas. Todo final de tarde, lá estava ele. O sobrinho tinha achado estranho. Os vizinhos também. Na vila, todos diziam que o tio estava louco e que ele deveria se afastar, porque loucura pega. Ele se afastou e o tio ficou só, foi entristecendo, morreu. Agora, ao saber que eu era um escritor, uma pessoa “importante”, admirada, estimada, e que tentava conversar com as formigas, veio me perguntar: “O senhor acha que meu tio era louco?” Não, respondi, ele era um poeta, um homem acima dos outros. “Acima?” Sim, um homem que tinha imaginação e fantasia e queria conhecer tudo do mundo. “E isso é bom?” É a melhor coisa que pode haver, falei. “Pois vou sair daqui e correr ao cemitério, ajoelhar-me no túmulo do meu tio e pedir perdão. Obrigado, o senhor tirou o maior peso da minha vida.” Assim a poesia e a literatura chegaram ao coração de um analfabeto a 1.500 quilômetros de minha casa, em São Paulo.

O senhor se diz mineiro em alguns hábitos. Há algo na história de Minas Gerais que o inspire?

I.L.B. – Sou mineiro no chegar cedo ao aeroporto ou à rodoviária, horas antes do embarque. Ao gostar de biscoitos de polvilho, de milho, de bolos, de pastéis que comia na casa de uma tia em Boa Esperança, vizinha a Três Pontas. Mineiro no desconfiar quando alguém vem com conversinha mole. Mineiro ao ficar quieto, só olhando, observando. Assim, de repente, não sei dizer o que me inspira na história de Minas, mas há coisas que invejo. Como o Museu de Ofícios em Belo Horizonte, montado pela Ângela Gutierrez na estação ferroviária. Aquilo é o Brasil. Invejo Minas ter dado ao Brasil o Juscelino Kubitschek. Trago de Minas uma história comovente, de fé. Havia em Boa esperança a Dula, uma velha tecedeira, dessas que faziam colchas. Comprava-se a lã no carneiro, ela tosquiava, tingia – você escolhia as cores –, transformava em fios e trabalhava no tear. Uma vez, passei por lá e encontrei o tear da Dula apodrecendo no quintal. Ela não podia mais trabalhar. E as filhas?, perguntei. Ela: “As meninas preferem comprar coisas feitas nas Casas Pernambucanas”. A casa da Dula ficava num ponto que seria atingido pela barragem de Furnas. Não conseguiram tirá-la de lá. As águas subiram, chegaram à porta da tecedeira. A casa ameaçava cair. Fiscais, amigos, todos tentavam demovê-la, deram outra casa. Dula afirmava: “Nossa Senhora está segurando”. Dula morreu, o enterro saiu da casa. Mal tiraram o caixão, a casa desabou. Isso é Minas para mim.

Conhecedor do Brasil e dos Estados Unidos, ajude-nos a entender: por que uma multidão de brasileiros adora o modo de viver estadunidense – shoppings, idioma, Halloween, música e comidas ruins... –, mas não copia do país que tanto macaqueia algo que devia fazê-lo, que é o respeito no trânsito?

I.L.B. – Preciso primeiro compreender o brasileiro. Mário de Andrade estudou, Caio Prado Júnior estudou, Sérgio Buarque de Hollanda também, bem como Dante Moreira Leite. Ninguém chegou a conclusão. Como vou explicar com minha precária bagagem? Copiamos certas coisas por achar que elas nos dão status: sale, off, cheeseburguer (se bem que existe o xburgue), black friday, fashion, motoboy, bike, discount e assim por diante. Quanto ao trânsito, o respeito se faz com multas pesadas, com o avançar no bolso. Uma vez, vi um carro ser guinchado em Hamburgo, Alemanha. Perguntei ao meu amigo, o professor Ruhl, que dava aula de literatura brasileira na universidade, qual a atitude do guinchado. “Bem, ele passa pelo Departamento de Trânsito e apanha um boleto. Vai ao banco pagar. Mas o banco é regional, fica numa vila a 50 quilômetros. Lá atendem todas as cidades da região. As filas são enormes. Tem que ir o proprietário com sua carteira de habilitação. Não tem essa de despachante. Volta-se ao trânsito em Hamburgo, consegue a liberação e vai-se buscar o carro num estacionamento distante outros 50 quilômetros. Você perde dois dias. Daí que poucos param em lugar proibido, a encheção de saco é imensa.”

Sendo um de nossos melhores nostálgicos, acredita que o Brasil cuida bem da memória do país? A velha acusação diz que não.

I.L.B. – Corrijo. Não sou nostálgico. Uso o passado quando tenho necessidade. Literatura é feita de memória, fantasia, realidade, imaginação. Não quero voltar ao passado. Odeio quando araraquarenses chegam e me dizem: “No nosso tempo é que era bom”. Que tempo? Aquela angústia dos 20 anos? Aquela inquietação dos 30? Tempo bom é este. Mexo com o passado, lembro, mas também recrio em cima dele, uso do meu jeito. Agora, que não temos memória, não temos. Ela é constantemente aviltada, destruída. Seja nas cidades com edifícios históricos, seja na manutenção de documentos. Matar o passado talvez seja uma maneira de querer se manter jovem. Jovem ou se é, ou se foi. Não se aplica aqui a frase das filhas da Dula, a tecedeira? Para que fazer colchas segundo a tradição?

Entrevisto um tremaníaco, favorável à volta dos trens no Brasil. Se essa retomada dependesse de uma boa defesa escrita pelo senhor, quais seriam os argumentos?

I.L.B. – Um trem transporta mil passageiros. Vinte vagões com 50 passageiros cada um. Transporta a carga de 200 caminhões e, hoje, pode alcançar a velocidade de 400 quilômetros por hora. A viagem no trem é menos entediante, chata, aborrecida, pé no saco, que a de avião. O trem nos mostra a paisagem, cansa menos. O trem tem um cheiro particular, atmosfera mais limpa. Tenho uma amiga que diz: “Ao chegar o fim da viagem, você está dentro de um avião todo peidado”. No trem você circula, tem restaurante, tem bar, tem lounge, tem Pullman. O trem não usa petróleo, nem álcool, não polui, não suja. O trem é pura poesia. Um avião encostando no finger não tem a beleza de uma locomotiva entrando numa estação, apitando e batendo o sino. Ou à noite com aquele farol que é um sol.

O que gostaria que sumisse inexplicavelmente como o trem do seu livro A Morena da Estação, que entrou na escura garganta de um túnel e nunca mais foi visto?

I.L.B. – Que sumissem as mentiras e os “não vi, não sei” do Lula. Que sumisse, devidamente punida, a corrupção desenfreada. Que sumisse a sem-vergonhice de certa elite. Que sumissem o José Sarney, Renan Calheiros, Marcos Maia, José Dirceu, Fernando Collor, José Toffoli. Mas sumissem explicadamente.

A drummondiana Itabira, incrivelmente, não é uma cidade literária. Aqui tivemos um governo inimigo dos livros, que até destruía bibliotecas – ainda bem que perdeu a eleição para a oposição. Não pretendo aborrecê-lo com questões itabiranas, é só gancho para perguntar: qual a importância dos livros para o desenvolvimento de uma cidade, um país?

I.L.B. – Sem o livro não há estudo. Sem o estudo, não há cidadão. Sem o cidadão, não há país. Sem o cidadão não há questionamento, oposição, combate, democracia. Sem o livro, reinará a ignorância e o obscurantismo.

Esta pergunta é obrigatória: e Carlos Drummond de Andrade? Por favor, fale um pouco, o que quiser, sobre a obra do itabirano: o que gosta, o que não gosta...

I.L.B. – Não me aperte perguntando o que não gosto em Drummond. É uma pergunta capciosa. Não vou falar de obra, não tem pessoa que teve mais análise que ele. Não gosto, por exemplo, da intensidade de citações de “Havia uma pedra no caminho”. Parece que só existe isso. Guardo de Drummond, que nunca vi, uma momento de carinho. Nos anos 1970, enviei a ele um exemplar do meu romance Zero. Enviei por enviar. Pois recebi um cartão amável, agradecendo. Guardei com emoção, depois me disseram que ele mandava a todos. Não sei se mandava a todos, mandou para mim, escrito de próprio punho e aquilo me deixou feliz. De Drummond guardo uma noite em Berlim, em 1982, quando o poeta Antonio Cisneros, peruano, bolsista do DAAD como eu, numa livraria declamou Drummond em espanhol, acrescentando que para ele era um dos maiores poetas da língua portuguesa. Houve emoção, porque Cisneros, que morreu em outubro deste ano, aos 70 anos, era jovem, bonito, talentoso e dizia muito bem poesias. Outra vez, estava em casa de Curt Meyer-Clason em Munique, decano dos tradutores do português para o alemão, e ele estava traduzindo Drummond, que amava, para uma antologia. Meyer-Clason, falecido também agora, aos 100 anos, era fanático por Carlos – olhe a intimidade – e num almoço no campo, na Baviera, declamou em alemão as poesias de Drummond. E me senti tocado, porque, mesmo sem entender uma palavra de alemão, alguma coisa mexia comigo naquele ritmo, naqueles termos tão estranhos, no meio de montanhas. Outra vez foi em Vecchiano, aldeia vizinha a Pisa, onde morava Antonio Tabucchi, o grande romancista da Itália, que partiu jovem e inesperadamente. Tínhamos acabado de jantar e Antonio lia poemas de Drummond para Zé, como era chamada carinhosamente Maria José de Lencastre, mulher dele, das grandes especialistas em Fernando Pessoa, autora de excelente fotobiografia do português. Tabucchi foi quem traduziu meu Zero para o italiano.
Dizem que durante ditaduras os bons músicos produzem arte melhor. No caso dos bons escritores, também é assim?

I.L.B. – Essa pergunta é recorrente. Quem tem o que dizer diz em qualquer situação, em qualquer regime. Durante as ditaduras, é preciso um pouco mais de coragem. Lembro-me tantos das conversas de bar, quando muita gente derrubava o governo, contarem dos livros que estavam escrevendo e eram impedidos de publicar por causa da censura. Quando a censura acabou, não havia livro nenhum nas gavetas.

Como lida com essa lâmina perfurocortante chamada saudade? Escrevendo, claro, mas além das palavras no papel?

I.L.B. – A saudade mata a gente morena… Saudade, meu moleque de recados… Chega de saudade… Ai que saudades sinto da Amélia… Neste mundo eu choro a dor, de uma saudade sem fim, ninguém conhece a razão porque eu choro no mundo assim… A saudade se resolve colocando no papel.

Perguntei no Bar do Tatado se alguém tinha uma boa pergunta para fazer ao senhor. Carlos Madeira, o Pixoxó, frequentador de sempre, anotou num papel de cigarro: “O povo brasileiro é muito ignorante e alienado. Perde tempo demais com futilidades e se esquece do principal; por isso é tão enganado por políticos canalhas. Ignácio de Loyola Brandão, concorda comigo?”

I.L.B. – Ignorante e alienado porque não lhe dão condições de sair disso. Enquanto assim permanecerem, serão dominados, submissos. As futilidades vêm através da mídia que explora vaidades, status, futilidades, besteiras. O consumismo sobrevive à base das futilidades que impinge. Enquanto se perde tempo com ser famoso, sair na mídia, ter carro, dinheiro, comprar grifes, relógios Rolex, roupas Armani, sapatos Ferragamo, esquece-se que a política é canalha.

O senhor forçou contra a ditadura. Está satisfeito com a democracia?

I.L.B. – Médio. Ainda não chegamos ao ideal, mas caminhamos. O julgamento do mensalão é um passo. As investigações da Polícia Federal, outro. Já o congresso é canalha, vendido, entregue. Mas há forças que resistem contra a democracia e infelizmente uma dessas forças vem de certa liderança petista. O PT, que surgiu como esperança e mudança, vendeu os sonhos dos brasileiros, esquecido de todos aqueles que morreram durante a ditadura resistindo e tentando mudar o país.


Estamos na era da superabundância de informação e da enganação travestida de informação. Qual a compreensão do senhor?

I.L.B. – Sempre pergunto: o que fazemos com o acúmulo de informações que nos chegam diariamente, a cada hora, minuto, segundo? No que melhoram minha vida, melhoram o ser humano? As melhores informações não nos vêm da mídia, da internet. Vem do dia a dia, quando você olha para as pessoas, sente as mudanças, ouve, conversa, troca, interage.

O senhor ama o cinema e já foi crítico de. Cacá Diegues disse, em entrevista aO TREM, que o Brasil tem vocação para fazer uma cinematografia que seja para o século 21 o que Hollywood foi para o 20, mas que o país vive traindo seu destino de grandezas. Por que o cinema no Brasil ainda é capenga, não é o que poderia ser?

I.L.B. – Porque quase ninguém sabe fazer. Capenga porque aqui nunca teve indústria, produção corrente, formação de técnicos, atores, diretores. Os que vêm da televisão fazem cinema? Fazem comediazinhas que não passam das velhas chanchadas coloridas. Fazem TV em tela grande. Outro dia me perguntaram se eu faria um roteiro. Disse que sim, perguntei o prazo. Responderam: “Dois meses”. Está aí. Acrescentei: “Dois meses é o tempo para pensar. Seis meses para alinhar as ideias. Dez meses para começar a pensar em estruturar o roteiro. Dois anos para escrever, reescrever, escrever de novo”. Disseram: “O senhor está louco. Dois anos para fazer um roteiro? Pensa que é o Titanic?” A base de um filme é o roteiro. Precisa ser pensado, discutido, elaborado, reelaborado. Nem programa de TV se faz em um mês.

Digamos que alguém – pode ser filho de Araraquara – inventou uma máquina por meio da qual é possível falar e ser escutado simultaneamente por todos os brasileiros. Se fosse usá-la para falar uma verdade importante, o que todos ouviríamos?

I.L.B. – Puta que o pariu, como sair dessa mediocridade política?

 [Marcos Caldeira Mendonça é editor d’O TREM Itabirano)

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