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O Homem Que Sabia Demais [Eduardo Moreira Lustosa]

O Homem Que Sabia Demais
                      
Em uma era e local incertos nasceu um bebê diferente de todos os outros. Tinha dois olhos, duas orelhas, um nariz, uma boca etc. Ou seja, fisicamente ele era igual, só que ele guardava um mistério. A parteira ficou estarrecida com aquela criança que veio ao mundo em completo silêncio e fitando aos presentes com seus grandes olhos negros de inquisidor. Os vizinhos ao tomarem conhecimento do incidente, acharam que era um sinal de mau agouro e não estavam muito errados...

Tudo na vida deste garoto acontecia rápido. Aprendeu a falar, andar, ler, escrever, calcular, compor muito antes de todos os seus colegas. Era sim, um gênio. Ia diariamente à única biblioteca do povoado e antes de completar doze anos já tinha lido todos os livros. Sabia que não conseguiria ficar por lá muito tempo e decidiu juntar dinheiro para, assim que possível, ir morar na cidade grande. Vendia pães que a mãe fazia, mas quase não lhe sobrava vintém. Quando começou a sentir sua tenacidade esmorecer, soprou-lhe um vento favorável. Um tio que mal conhecera morrera deixando-lhe considerável quantia sob seu quinhão. Mudou-se para a capital. Havia uma grande biblioteca que visitava assiduamente, da hora do abrir ao fechar. Não demorou para que dominasse vários idiomas e quase todos os assuntos. Sorvia o conhecimento dos livros como um glutão devora apetitosos quitutes.

Tinha uma memória vertiginosa. Era capaz de se lembrar de páginas inteiras de livros lidos há muito tempo. Fazia cálculos complexos de cabeça em instantes. Também tinha por hábito escrever belos poemas e serenatas em papelotes durantes suas bebedeiras. Passou a freqüentar locais onde os intelectuais se aglutinavam. Em pouco tempo granjeou alguma fama e tornara-se um boêmio inveterado.

Certa vez o alcaide da cidade, que soube de alguns de seus feitos, e curioso que estava, além de desejoso que comprovar a veracidade dos boatos, chamou-o a sua presença. A essa altura nosso herói já era um rapazola insolente e sublevado. Tinha uma filosofia própria segundo a qual tudo que a sociedade considera imoral possui uma virtude intrínseca. Chamava-se a si próprio “o último ímpio”.

A entrevista não transcorreu bem, nosso jovem sábio antipatizou de cara com a máxima autoridade local, pois achou-o nada senão um boçal da pior estirpe. O alcaide percebeu sua má vontade e expulsou-a do gabinete gritando-lhe desaforos. Ao sair, virou-se para trás e murmurou com desdém: nem toda Roma tem o César que merece.

Foi nessa época que ocorreu uma experiência dolorosa: seu primeiro amor. Ela era uma jovem da sociedade, vejam vocês. No princípio, os sentimentos pareciam ser recíprocos, contudo uma corte desastrada somada ao seu comportamento libertino findaram por assustar a jovem que sumiu de sua vida para sempre.

As orgias, bebedeiras e demais excentricidades não tardaram a cobrar seu preço. Ficou doente e a beira da penúria dependendo da caridade de alguns poucos amigos. Começou a dar aulas particulares, no entanto não era bom professor. Era rude e impaciente e por isso não conseguia muitos alunos. Também pegou algumas traduções, embora nunca as terminasse. Virava-se como podia, todavia foi inevitável que se afastasse da boemia e dos amigos. Foi-se isolando mais e mais.

Sentia-se póstumo. Sentia-se desperto em um mundo de sonâmbulos. Desenvolveu uma ojeriza pela sociedade e suas idiossincrasias. Os vizinhos enfastiaram-se de suas extravagâncias. Andava sujo e em trapos, quando não, nu pelos corredores da pensão. Levava ao quarto mulheres de categoria duvidosa em horários impróprios. Praguejava e fumava charutos fedorentos pela casa. Provocava a dona da pensão, que era uma devota fervorosa, virando o crucifixo da sala de ponta cabeça. Praticamente fora expulso aos pontapés, porém não se importou. Não tinha mais paciência para conversar com as pessoas e nem para ler livros, pois tudo isso o fatigava e entediava e, por fim, o exasperava. Apreciava apenas o silêncio e a solidão.

Passou a ser cada vez mais arredio, antissocial e irascível. Não demorou para também tornar-se neurastênico e provocador pertinaz. Dizia reiteradamente que o conhecimento é uma ilha e quanto mais conhecimento mais distante se está do continente.

Tronou-se um misantropo empedernido. Tomava anarquistas por preguiçosos, comunistas por gananciosos, capitalistas por inescrupulosos, liberais por irresponsáveis, conservadores por obtusos, intelectuais por presunçosos, artistas por bajuladores, homens práticos por egocêntricos, filósofos por superficiais, cientistas por míopes e assim por diante.

Decidiu que realizaria a grande empreitada que daria sentido à sua vida. Escreveria grossos compêndios de uma coleção definitiva destinada à posteridade aonde exporia suas idéias mais relevantes e originais. Sairia da cena da vida privada para entrar pela porta da frente nos anais da história.

Pouco foi visto desde então. Morava em um pequeno quarto, não mais que uma pocilga. Escassas vezes saía de casa, apenas para abastecer-se de víveres e os vizinhos notavam pela janela que passava toda a noite sob a luz do lampião.

Ao fim da vida, muito velho e seco, já quase cego e miserável como um cão, vivia em um local fétido e nauseabundo. Expirou no ápice da solidão numa noite fria de agosto. Dentre seu parco espólio encontraram um grosso volume cujas páginas, à exceção de um ligeiro prefácio, estavam em branco. Lia-se apenas: à Aretusa, meu único amor.


Eduardo Moreira Lustosa-Nascido em Barra do Garças (MT), mas morando há mais de vinte anos em Cuiabá, é advogado, articulista e contista.

Um comentário

Rosa Lía Cuello disse...

Gostei muito! ele tinha toda a sabedoria do mundo mas não o mais desejado pelos homens : O Amor.