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Uma nova amizade [Maria J. Fortuna]

Uma nova amizade

Todas as madrugadas, eu ouvia a música que partia da caixinha encantada de minha vizinha predileta:  Madame De Marbaix! Por que será que, em horas tão preguiçosas, ela dá sempre corda em seu doce relicário? -  Não conseguia dormir bem,  penso eu até hoje.  Certa noite, matutei  em quantas eram as lembranças guardadas naquele  estojo, que eu imaginava de madeira polida, mas podia ter sido  feito de outro material como prata ou bronze, devido a seu ar aristocrático.  Talvez  bons momentos do passado nem estivessem colados no estojo, mas se despetalavam no tempo,  através da música que se desprendia dela e voava, em seu colorido invisível. Mexia comigo sim, de forma tão delicada,  por isso eu não  emitia um resmungo sequer de insatisfação. Nunca poderia chamar a leveza daquele som,  que se repetia todas as madrugadas,  de barulho. Por isso eu não me importava. Afinal, acabava por me embalar, na minha dificuldade em dormir. 

Minha vontade era conhecê-la melhor - a dona da caixinha.   Saber dos segredos de sua magra e majestosa figura! Afinal quem era na verdade aquela nobre anciã francesa,  de belos olhos cor de esmeralda, que viera de tão longe e vivia tão sozinha? Quando a encontrava na padaria, gostava de vê-la abrindo a "trousse" onde não havia pó de arroz, mas moedas, para comprar o pão de sua refeição matutina. Caladinha, ela estendia as moedas no caixa, a conta do preço do pão. Colocava a bisnaga comprada embaixo do braço e, silenciosamente, entrava no prédio. Arrisquei algumas vezes um sorriso para ela. Retribuiu com tanta delicadeza  quanto a música das madrugadas. Mas como iniciar a conversa com aquela dama?  Indagava a mim mesma.   Não costumava vê-la conversando com outras pessoas.  Confesso que o que me atraía nela era o jeito fidalgo de ser e o mistério que envolve as pessoas que vem do outro lado do Atlântico. Ou de mais longe... 

Um dia, enquanto eu vinha correndo para não perder a rotineira e maçante viagem vertical do elevador, dei com Madame Marbaix ali, ainda mais branquinha, segurando-se na parede.  Sentia tonteiras e então me ofereci para levá-la em casa. Ela estava mais pálida do que de costume, com os lábios arroxeados. Ofegava como um pássaro ferido. Fui buscar um copo com água em sua pequena cozinha, e ela ensaiou um sorriso. Disse poucas palavras com forte sotaque francês e, em agradecimento, convidou-me para um aperitivo na sexta feira às 18 h. 

Eu precisava preparar-me bem para atender a seu convite. Para mim, estava diante de uma princesa e para isso teria que me vestir discreta e elegantemente. Talvez comprar uma caixa de biscoitos finos, ou chocolates... Mas se ela fosse diabética? Enfim, confesso que teria que me armar de muita simplicidade para encarar aquele terreno desconhecido. 

No dia do aperitivo, a senhora recebeu-me com alegria! Não parecia a mesma que eu costumava encontrar. Deixou-me muito à vontade na sala ornamentada por papel de parede rosa com ramos verdes.  Sentada no macio sofá forrado de cetim, com linda manta chinesa caída nos braços. Um perfume de rosas desprendia-se da jarra no centro da mesa em estilo rococó. 

Falou-me de sua vida e do seu grande amor que se fora há vinte anos. Do primeiro encontro dos dois no Jardin du  Luxembourg em Paris, das dificuldades que teve com a filha que a abandonou e nunca mais deu notícias. Do seu grande amor pela poesia de Din Rumi, o maior dos poetas persas. Contou-me dos caminhos que percorreu em busca do Divino e das suas perdas e ganhos. 

Por um momento fiquei ausente do mundo, ouvindo  o  que  Madame De Marbaix dizia ao som do prelúdio da opera Parcifal, de Wagner, comendo  vários tipos de patês, biscoitinhos deliciosos e bebericando doce vinho francês. Tudo ali estimulava os sentidos para a beleza! Meu coração se encheu de imenso amor por aquela criaturinha, já tão idosa, que trazia   belos traços num dos mais perfeitos perfis  femininos que eu,  até então,   havia visto! E os mais verdes e ainda brilhantes olhos que fitaram os meus. 

Realmente não sei quanto tempo fiquei por ali sem me sentir inconveniente. Até que Madame De Marbaix   surpreendeu-me trazendo nas mãos uma linda e transparente garrafa. Tratava-se do caríssimo champagne Cristal,  da Maison Roederer que, como diz o nome, é  mesmo de legitimo cristal! Fiquei perplexa!

- Não tenho mais com quem comemorar datas festivas, falou nostalgicamente.
-   Guardava este para retorno de minha filha que não ocorrerá. Então brindemos a nossa amizade! 

As taças de cristal reluziram em nossas mãos com toda sua  transparência e beleza! . Naquele momento, lembrei-me da busca do Santo Graal, do encontro dos amantes: Deus e alma,  na caverna do coração, lenda contada pelos sufis, através dos tempos.  Daí a pouco  despedi-me  da nova amiga com um afetuoso abraço. 

Naquela madrugada a caixinha de música não tocou. Talvez ela tenha adormecido por causa daquele delicioso champanhe, pensei.  E com o espírito bem alimentado e quentinho, dormi até às 8,30 h. , quando ouvi barulho de vozes inflamadas no corredor do andar inferior. Pulei da cama com mau pressentimento. Vesti a primeira roupa que encontrei e desci. Lá estava Madame Marbaix, sentada no sofá,  ainda com a roupa que usava em nosso encontro, completamente desacordada. Levaram-na para a ambulância e daí não mais a vi. 

Eu me senti escolhida por ela,  não só para celebrar uma nova amizade, mas para sua despedida deste mundo. A filha saberia de sua partida? Não procurei saber. Para que? A gente tem sempre muitas perguntas...

Por que tudo isso aconteceu justo comigo? Não sei






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