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XICO SÁ AND THE BEATLES [Raul J.M. Arruda Filho]

XICO SÁ AND THE BEATLES

Pitoresco, picaresco, fescenino, pornográfico, escatológico, barroco, hiperbólico, bagunceiro, maluco – a lista de adjetivos parece interminável quando se trata de Xico Sá, dublê de jornalista e sátiro viciado em mulher e palavrão, nascido no Ceará e radicado nas radicais raízes que decompõem São Paulo. Alguns dos epítetos, embora pareçam exagerados, servem de estímulo para que uma nova fieira de impropérios preencha o vazio da folha em branco e forneça cor aos acontecimentos ordinários (vá lá, de vez em quando, extraordinários) que se desenvolvem nas so(m)bras que enfei(t)am a urbe.

Escritor de outra têmpera, desses que temperam a vida com o sal da terra, o cearense colocou no mundo mais um livro, como que a querer se livrar das obsessões que cutucam a cachola daqueles que são capazes de virar de pernas pro ar toda e qualquer estrutura, enredo, narrativa, conto, causo, dedo de prosa, glosa do viver.
O romance Big Jato celebra, em 182 páginas, o inevitável de inflexão do homem maduro que olha para trás e vê como foram árduos os rituais de passagem, a história do menino que precisa deixar de ser menino diante de um mundo assustador.

Longe de fazer desse trauma tragédia ou ópera bufa, Xico Sá articula o confuso discurso com que gosta de confundir a plebe ignara e, entre episódios pouco ortodoxos, raras vezes conectados com a limpidez (em diversos sentidos), vai descarregando figuras de linguagem, citações literárias e musicais, ensinamentos populares, divagações cheias de graça.

Incont(rol)áveis gargalhadas acometem os leitores, comprovando que a vida conjuga uma festa interminável.
Em selvagem ordem cronológica, um acontecimento empilhado depois do outro, o ocre do sertão vai desbotando os protagonistas dessa farsa narrativa. Em 1970, entre o fenemê e seu motorista (o homem que atende pelo título de pai), o menino, fazendo companhia na boleia do caminhão, vai descobrindo as verdades e as mentiras que envolvem o existir.

Unidos pelo desacerto de limpar as fossas da cidade de Peixe de Pedra (ex-Desterro, ex-Santana de não sei quantas), provavelmente localizada no Vale do Cariri, os dois estão impregnados de merda até os últimos fios de cabelo.

Entre o ganhar o pão de cada dia e limpar a sujeira do mundo, Beatles. Mas somente fora do perímetro urbano, lugares ermos onde a antena do rádio do caminhão (para os íntimos, Big Jato) consegue captar o ritmo chicletão das músicas dos cabelim pastinha.

Foi assim que aprendi a gostar dos Beatles, sem o velho dizer nada, sem eu entender uma palavra de inglês, mas sacando tudo, um certo estado de espírito, como diz meu tio, o meu tio Nelson que tanta falta nos faz no serviço de alto-falante, com suas traduções, loas e mentiras. Um sertanejo ou um esquimó se emocionam do mesmo jeito, dizia ele, quando ouvem os rapazes de Liverpool.
Enquanto a fedentina se espalha pelo mundo, o menino vai obtendo outros entendimentos da vida: o colégio, a escola de datilografia (que o encaminhará para o reino literário), as punhetas (– Meu filho, você está entrando no maravilhoso e viciante reino da boceta – berra, inconveniente, o velho), as aulas de filosofia existencial do tio Nelson (O trabalho danifica o homem), a primeira trepada na zona, a primeira vez que olhou com interesse para uma mulher – e, como poderia ser diferente?, o primeiro pontapé do amor na bunda. Para quem lidava com merda todos os dias, um pouco mais não fez muita diferença, apesar do choro, dos esforços desesperados, do orgulho ferido e da falta de orgulho.
Foi quando o pai ficou doente que o ordenamento mudou. Outro caminhão, mais moderno, mais eficiente, invadiu a área e tomou os clientes do Big Jato. Depois de ouvir o noticiário econômico no rádio, o pai saltou da cama e, mostrando um tino empresarial inusitado, mudou de ramo comercial. Investiu o dinheiro familiar em porcos. A mãe, ao ver o marido que estava desaparecido há vários dias, não o poupou: – Por que esse miserável volta mais sujo ainda, é? É sina?

Sina, sinal, farol aberto para novas aventuras. Nada é mais inevitável do que desentendimento com o pai. Uma surra de relho de couro cru para aprender a ser homem, e o Guia Kerouac de cair na vida, o fizeram ver o horizonte.

Muitos anos depois, o menino narrador se transforma em escritor, tornando realidade a profecia do pai: Livro é para quem precisa inventar a vida que nunca teve.
 

TRECHO ESCOLHIDO 

– "Let it be" é deixa estar, meu filho – ele aprendeu agora no rádio e se orgulha.

Até eu, leso de tudo, já sabia, papai. Minha mãe fica sem fôlego quando ele diz "let it be" e foge do bate-boca caseiro. Meu pai prefere não discutir nunca. 

– Leribi de cu é rola – diz minha santa mãezinha, perdendo a paciência, embora seja incapaz de dizer um nome feio, um palavrão que seja, nunca foi disso, ainda mais agora, cada vez mais nas orações, cada vez mais do lado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nessa hora vira uma mulher mais grossa do que lixa de parede ou papel de embrulhar prego. Ela doida por um bom embate, para consertar as coisas da vida, e o meu pai "let it be", ela na maior paz e o meu pai "a felicidade é um revólver quente". 

Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 

Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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