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Os que ficam... [Maria J Fortuna]

Os que ficam...

Como pessoas ficam em nós?


Acredito que alguns  chegam de mansinho e vão semeando encanto na transparência do nosso tempo na Terra.   Isso pode acontecer  desde quando somos crianças e não vigiamos o coração como agora. Então nos pegam desprevenidos!  Mas este silencioso semear é complexo e nada linear.   Não sabemos muito bem a espécie de flor ou fruto que nos dará.  Mas se o permitimos, estaremos sujeitos a vê-lo brotar exatamente como sempre será para nós: especial presença no universo em nossas lembranças!


Nessa aceitação tão espontânea, ainda não há lugar para o  medo e nem temos ainda consciência de que o outro é nossa própria referência de vida. Como uma planta, aparentemente intencional, alguém pode crescer e florir dentro de nós e aí ficar, sem que  sequer percebamos. Para isso, depende do jeito do aproximar-se.  Como também de suas raízes que, se alongadas e profundas, trazem grande possibilidade de que ocupem o terreno de nossas lembranças por tempo indeterminado. Talvez por toda a existência! Quer queiramos ou não. Mesmo que seus frutos não sejam doces e aveludados, mesmo que se tornem amargos, permanecem. Não há como nega-lo.


Mas como as pessoas se tornam tão presentes? Depende do tecido do nosso coração. Se for rendado, cheio de brechas ilusórias, a pessoa pode escapulir por uma pequena fissura entre as veias. Se o tecido tornou-se árido, talvez de tanto remendo, ou de tantas cicatrizes, não permitirá,  muito fácil ,o brotar de outra semente. O coração humano tem suas defesas e caprichos. Não da, incialmente, acolhida a não identificado,  e até tenta expulsa-lo, como o faz o organismo em relação a um corpo estranho.


Afrouxamos a guarda e nos deixamos envolver, quando notamos algo luminoso nas entrelinhas daquele olhar, do sorrir, no estender a mão, que nos faz retornar a infância! Aquela pessoa  fala a mesma linguagem, com o mesmo código secreto que escondemos dos outros. Há  semelhança, entre nós, no jeito de sentir e olhar o mundo e de como estar nele.  Então vamos  lhe abrindo as portas da alma, uma a uma, revelando-nos mutuamente. Sabemos que haverá um curtir e tolerar as transformações mútuas que se processam no colorido de cada um. Há respeito pela essência do outro.


Mas não é só aquele para quem nos desnudamos que deixamos se hospedarem em nossas lembranças... Notamos essa semelhança de almas  com os que não conhecemos pessoalmente, mas nos visitam em pensamento e fazem parte de nossas vidas. Talvez um escritor, um ator ou atriz de teatro ou TV, um jornalista cuja coluna sai no jornal de domingo, por exemplo. Sonhei uma vez que estava tomando chá com Fernanda Montenegro e de outra vez que estava pintando no ateliê com Van Gogh.   


No sentido negativo, os que nos odeiam por algum motivo, também  ali estão, com sua presença insistente e desenxabida e seu colorido cinza.  Ainda existem aqueles que nos acalentaram nos momentos difíceis, ou nos apoiaram numa cumplicidade respeitosa, tornando-se inesquecíveis!  E os que surgiram não se sabe de onde, enxugando-nos suor e lágrimas. Eu me lembro de alguém que me entregou um prato de sopa quentinha quando eu estava num lugar frio, com sintomas de pneumonia, em Belo Horizonte.  Durante muito tempo procurei aquela mulher com os olhos, todas as vezes que passava por aquele lugar. Nunca mais a vi pessoalmente, mas ela é uma das que ficou.


E quanto ao outro? Será que também permanecemos em seu mundo?  Será que nos carregam em suas lembranças? Costumo fazer a pergunta: Como existo no coração das pessoas? Será que alguém me semeou? Será que sou doce ou amarga em suas lembranças? Será que feri o tecido do coração de alguém? Caso positivo, por que essa pessoa, em algum tempo, ter-me-ia escolhido?  Ainda sou, para ela, alguém do passado no presente?  Ou  não me aceitaria como agora sou? Será que consentiu  em suas próprias mudanças para aceitar as minhas?


Não há explicação para envolvimentos difíceis. Salvo, na revolução dos hormônios num existir ainda verde, muito cheio de esperanças... Ou numa carência afetiva maior do que a gente.  Contudo, um dia, aquela pessoa rasgou-nos as veias, insuflando-nos as artérias com sua presença pulsante e, para completar, partiu nossos corações indo  para outro lugar do planeta ou até para outra dimensão da vida. Contudo fazem parte.


A respeito da essência, do amor incondicional, posso vê-lo num estampado de fundo preto, num bolo de cenoura para tomar o café da manhã, numa pia lavada para não chamar baratas. Num afagar dos fios dos cabelos, e em especial através de uma música, de uma canção ou perfume... No meu caso, todas essas lembranças me reportam a minha  mãe, referência de bondade. Os que ficam podem estar aqui ou acolá. Podem morar do outro lado do Atlântico ou mesmo do outro lado da vida. Mas estão aí, deitando pétalas em nossas lembranças.Talvez nem saibam que permaneceram no tumultuado mundo dos nossos pensamentos.  Às vezes compreendemos o porquê, outras não.  Mas, para nós, o elo continua como um fio transparente, através do qual uma criança empina seu papagaio de papel de seda, que pode se estraçalhar com o vento e as chuvas, mas que continua, como um fantasma brincalhão que só traz boas lembranças.


O exercício do perdão a si mesmo faz parte nossos  relacionamentos e a medida que a gente perdoa e é perdoado, vamos soltando no infinito as amarras que nos prendem ao imutável. Afinal nenhum pintor deixa de errar no misturar das tinta e de  deformar a imagem na hora da criação.  Mas se para o ente em questão a culpa é atemporal, não há remédio.  Ficaremos em suas lembranças pintados de cores que nem mais fazem parte de nós.


Para deleite da alma, há aquela presença luminosa e perfumada


dos que ficam e que cultivamos no coração, pois seu frescor traz sentimento de amor e esperança, mesmo na melancolia da perda física, na saudade.  São os amigos evolutivos, independente de parentesco, em que nos espelhamos e sempre reconhecemos apesar das diversas vestes que trocamos ao longo do caminho.


Maria J. Fortuna-Nasceu em São Luís, Capital do Estado do Maranhão.
Escolhi Serviço Social como profissão. Com toda esta incursão no mundo das artes, descobri que não podia viver longe desse cenário. A literatura havia brotado cedo. Desde menina, sou fascinada pela palavra.
Ingressei na REBRA, onde recebi incentivo e divulgação do meu trabalho e resgatei alguns textos que foram escritos no desenrolar da minha existência, aos quais não dei muito valor na época em que foram produzidos. Recomecei a escrever poesias, crônicas e livros infanto-juvenis.
Publiquei cinco obras infanto-juvenis, ao longo dos últimos anos: O menino do velocípede,  A incrível estória de amor de Mimo e Dedé , ilustrados pela autora, ambos esgotados. O anjinho que queria ser gente, que está na 2ª edição e O pardalzinho desconfiado, com ilustrações de Josias Marinho. Os dois últimos pela Mazza Edições de Belo Horizonte. Em 2008, foi lançada em Portugal outra obra de minha autoria por essa Editora: A sementinha que não queria brotar, com ilustrações de Regina Miranda. Este livro foi adotado pela Prefeitura de Belo Horizonte para as crianças da rede escolar.
Participei de duas Antologias a convite da Editora Rosane Zanini: "A cidade em nós" - em três línguas (2010)," Um dia em minha cidade"(2012). Ambas com crônica. Neste último ano, participei da Antologia: "L´indiscutable talento des Écrivaines Brésiliennes" pela REBRA, com poesia.

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