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O AMANTE DA RAINHA [Raul J.M. Arruda Filho]

O AMANTE DA RAINHA
 
O Amante da Rainha (En Kongelig Affære. Dir. Nicolaj Arcel, 2012), que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2013, inicia com uma longa carta ao príncipe Frederick (15 anos) e à sua irmã Louise Augusta (12 anos). Exilada, a rainha Caroline Mathilde (Alicia Vikander) relata aos filhos a sua versão de alguns acontecimentos da história do reino da Dinamarca.

No final do século XVIII, a princesa inglesa, prometida desde sempre para ser esposa do rei da Dinamarca Christian VII (Mikkel Boe Følsgaard), esperava encontrar um homem sadio, gentil, apaixonado por literatura. Encontra um homem com graves problemas psíquicos, quase alcoólatra e que costuma se divertir em bordéis. Além disso, o monarca não demonstra o mínimo interesse pelas questões políticas. Prefere viajar pela Europa, deixando o reino nas mãos do Conselho de Estado, que é sutilmente controlado pela rainha-mãe Juliane Marie. 

A noite de núpcias foi praticamente um estupro. Depois, nas poucas vezes em que consumaram as obrigações matrimoniais, foi o nascimento do príncipe herdeiro que consolidou o casamento – e afastou um do outro. Em alguns momentos, o rei demonstra mais afeto pelo cachorro do que pela esposa. 

Ao descobrirem que Christian VII estava na Alemanha, o conde Rantzau (Thomas Gabrielson) e Brandt (Cyron Melville), dois assíduos membros da corte dinamarquesa e que (momentaneamente) estavam em desgraça, contratam um médico alemão, Johann Friedrich Struensee (Mads Mikkelsen), para examinar o rei – que está descontrolado emocionalmente. Struensee acalma Sua Majestade rapidamente. Parte da consulta se resume em citações teatrais. Christian e Johann descobrem afinidades mútuas em William Shakespeare. Em seguida, o médico completa o exame receitando para o soberano escandinavo uma visita ao prostíbulo mais próximo.

Em København, Johann Struensee encarna uma nova versão do mito do anjo da anunciação. Sua presença – e as ideias iluministas que defende – destrói a ordem vigente. A contrarreação ocorre quase que imediatamente. Aqueles que governam o país não querem dividir o poder. Tampouco desejam introduzir avanços sociais na estrutura socioeconômica primitiva que caracteriza a Dinamarca.

Eminência Parda do rei, Struensee, pouco a pouco, vai assumindo o governo. O momento crucial dessa transformação ocorre quando, durante uma epidemia de varíola, inocula o príncipe herdeiro com uma vacina. Recebe, entre outras benesses, a gratidão da rainha Caroline Mathilde.

Durante uma festa, ao ver o conde Rantzau com a nova amante, Johann Struensee diz para Brandt:

– Notou que ele (Rantzau) quase não xinga quando está com ela?

– Ela só quer o dinheiro dele. A família dela acabou de perder a fortuna.

– Contanto que ele esteja feliz...

– Os homens têm a estranha capacidade de ignorar a razão com mulheres bonitas. A Morte de Arthur. Já leu?

Struensee balança a cabeça negativamente.

– Thomas Malory.

– Já ouvi falar.

– O cavaleiro do rei Arthur, Sir Lancelot, tem um caso com a rainha Guinevere. O rei descobre, manda matar os dois e o reinado é abalado.

Struensee olha para Brandt, que arremata a lição:

– Você é um tolo. Gosto muito de você. Não quero chorar ao lado de sua cabeça decepada.
Johann Struensee, depois de alguns segundos, se afasta do amigo.

Como é do conhecimento dos historiadores, as previsões de Cassandra resultam em tragédia. Em lugar de rechaçar a desgraça, chamam-na para perto de si. Algum tempo depois desse diálogo, durante um baile de máscaras, enquanto o médico e a rainha estão dançando, o desejo se estabelece. As quatro letras da palavra amor carregam um turbilhão de sentimentos e sofrimentos. Impossível resistir.

O que se segue é simples e dispensa explicações – exceto por um acidente de percurso. Caroline Mathilde fica grávida. E o pai da criança não é o rei. Foi necessário forjar um pequeno ardil para manter as aparências, para salvar tudo o que estava em jogo. Simultaneamente, o governo entra em crise. Christian VII, em um momento de rebeldia, dissolve o Conselho de Estado e outorga poderes extraordinários para Johann Struensee, que se torna uma espécie de Primeiro-Ministro.

Várias mudanças políticas são implementadas: proibição da tortura, aumento de impostos sobre a propriedade privada, ausência de censura literária, diminuição da influencia religiosa. A Dinamarca começa a deixar para trás o feudalismo.

No entanto, por maiores que sejam as boas intenções de Johann Struensee, ele não possui talento suficiente para interpretar Fausto. Os iluministas não acreditam na venda da alma. Ou que um dos sinônimos da política é terreno minado. Desconhecem um princípio básico da sobrevivência: ideias não movem o mundo – embora o tornem mais bonito.

Quem desagradou a nobreza, a burguesia, a igreja e o exército, não deveria esperar pela felicidade com um sorriso no rosto. Bastou um pequeno descuido e a Rainha-Mãe descobriu a chave que abriu as portas para a retomada do poder. Com o auxílio de todos os setores que haviam sido despejados do governo, além do conde Rantzau (que aceitou as primeiras trinta moedas que lhe foram oferecidas), tornou pública a traição da rainha. Em seguida, aproveitando as fraquezas emocionais do rei, promoveu um golpe de Estado. Struensee e Brandt são presos. A rainha, junto com a princesa Louise Augusta (que ainda estava sendo amamentada), parte para o exílio.

Fábula política de primeira grandeza, O Amante da Rainha esboça um amplo painel da ingenuidade humana. Em 1783, depois de ser torturado barbaramente, Struensee confessa por escrito seus crimes e aceita participar de uma farsa: ser conduzido até o cadafalso, onde será perdoado pelo rei no último instante.

No meio do caminho, percebe que foi enganado. Nada há mais possibilidade de reversão. Pateticamente, Struensee grita para a multidão que irá aplaudir a sua morte, Eu sou um de vocês. Não é. Jamais foi. Mas, em algum momento, talvez depois de ter lido algum trecho filosófico iluminista, imaginou essa possibilidade.  

Doente, sentindo que a morte se aproxima, Caroline Mathilde escreve aos filhos. É forma que encontrou para reverenciar a memória do amante, para impedir que o passado soterre a História.  


Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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