"A ASSEMBLEIA DAS
CHAVES"
— Eu fecho, eu fecho, me
deixa fechar, deixa!!! — a vozinha alta, afinada e insistente chama a atenção
da Assembleia das Chaves.
Interessados em descobrir
a dona de tanto berreiro, as outras chaves se viram, procurando de onde partia
tanta euforia.
— Eu... Aqui... Eu fecho!
Ah, lá está! No fundo, à
esquerda de quem entra. Sentadinha ao lado da Chave de Parafuso. Imagina! Uma
chavinha comum dessas, douradinha, gritando como se fosse uma Chave Allen!
— Cale a boca, pequena!
Coloque-se no seu lugar!
— É isso mesmo, calada!
— Vamos fazer silêncio aí,
criança! — esgoela uma Chave Inglesa esnobe.
O alvoroço é intenso. A
Chave Mestra, que preside a Assembleia desde que a Chave do Paraíso se
aposentou, decide intervir com urgência no desvario das insensatas.
— Ordem! Ordem! Ou eu vou
mandar evacuar o recinto! Vou mandar chamar as Chaves de Armário e trancar
todas vocês, suas tagarelas!
De supetão, o clamor se
desfaz. Um ou outro “Oh!” se escuta no ambiente, mas logo o silêncio impõe-se
absoluto. Nem um tilintar sequer! É que as Chaves de Armário são terríveis!
Bloqueiam a passagem, recolhem e aprisionam tudo em lugares escuros... Ui!!!
Quem não respeita uma Chave de Armário?
— Como é isso, pequenina?
Você acredita mesmo que com esse corpinho frágil pode fechar o Portão dos
Acontecimentos?
Risadas disfarçadas,
muxoxos, deboches em sussurro se esparramam entre as chaves presentes.
— Posso! Eu posso sim! Ah,
se posso! E fecho bem, viu, senhora Presidente!
— Não, pequenina, eu agradeço
a sua boa intenção! Além do mais, desde ontem à noite, quando as irmãs Sete
Chaves se esqueceram de trancar o Portão, eu não tenho notícias das
consequências que tudo isso provocou. Por enquanto, não posso mandar ninguém lá
pra fechar o Portão, porque é muito perigoso. Além do mais, como é que pode uma
pobre chavinha querer cumprir uma tarefa tão grande? O Portão dos
Acontecimentos é majestoso, imenso, misterioso. É lá que tudo começa para todo
o mundo. Desista, querida, você é apenas uma chavinha dourada!
Nesse instante,
interrompendo o solene puxão de orelhas da Chave Mestra na desconhecida
chavinha dourada, entra correndo pela nave central a Chave Tetra, representante
da Liga Antifurtos. Contorcida e rechonchuda, tropeça no tapete e cai de boca
ao pé de uma Chave de Luz idosa e endurecida.
— Desculpe, desculpe
mesmo! — enfrenta a cara feia da outra — É que a situação está crítica! Senhora
Presidente, prepare-se para um grande problema!
Inquietação geral,
novamente! A linhagem das Tetras é confiável, elas são seguras de si, não fazem
alarde à toa. O que será que aconteceu? E a ansiedade se espalha da primeira
até a última fila dos Assentos-Fechadura, provocando um ruído ensurdecedor de
racs-racs e locks-locks.
— A Chave de Cadeia
aproveitou que o Portão dormiu aberto e promoveu uma fuga em massa dos
Maçaricos que estavam presos na Ilha dos Cofres! Escaparam muitos deles, os
piores elementos do fogo organizado! Ai que azar, senhora Presidente!
— Azar? Uma tragédia, isso
sim! Só podia ser coisa daquela bandida vulgar e espertalhona — diz a Chave
Mestra, referindo-se à Chave de Cadeia.
— Ela deve ter ganhado
muito com isso, senhora Presidente! Aquela... vendida! Mas deixa que eu dou um
aperto nela e ela confessa tudo! — desespera-se a Chave de Braço.
— Isso é mais que
tragédia, é uma desdita, uma desventura, uma infelicidade, uma calamidade, uma
verdadeira catástrofe! Decerto que eles virão atrás de nós, aqueles Maçaricos
marginais! — lamenta-se uma Palavra-Chave pernóstica. — Vamos ser derretidas,
desmanchadas, consumidas pelas chamas...
— Cheeeeega! Caladas! —
enfeza-se a Chave Mestra. — Relate tudo, Tetra, relate!
— Pois bem! As Chaves de
Armário estavam no seu turno regular e havia ainda um pelotão de Chaves de
Perna fazendo a vigilância, mas ninguém sabia que o Portão estava aberto...
— Descuido! Descuido!
— Não, não, senhora! A
Chave de Cadeia raptou uma Chave de Dados e obrigou a coitadinha a decodificar
os números da fechadura do presídio. Um horror!
Dessa vez, é difícil calar
a plateia ensandecida pelo medo dos lança-chamas implacáveis. As chaves se
levantam, sentam, rodam em seus Assentos-Fechadura, tremem, pensam em fugir.
Espalha-se o medo.
Uma coisa dessas
proporções é mesmo motivo para pânico. Já pensaram em quais seriam as
consequências de um universo sem chaves? Portas sem abrir, diários lacrados
para sempre, jogos sem solução, falta de eletricidade, carros com rodas
frouxas, parafusos desajustados... Santos Segredos, seria o fim do universo
livre!
— Uma terra todinha
queimada! — diz uma Chave Yale da Liga Tradicionalista, como se resumisse os
pensamentos das demais.
— Vamos parar de lamúrias!
Temos que deliberar! — convoca a Presidente.
As chaves se reúnem
circunspectas em suas respectivas Ligas e discutem soluções que vão do ataque à
defesa. Batem-se umas contra as outras, andam, agrupam-se, dissolvem os
aglomerados, saem, entram, até que, finalmente, a Informação-Chave pede a
palavra.
— Deliberamos e decidimos,
senhora Presidente.
— E...?
— Parceiros.
— Como...?!
— Temos que pedir ajuda
aos parceiros, senhora.
— E quem são esses
parceiros tão poderosos?
— A Comunidade das Portas
e Portões; e o Sindicato das Chaves de Luz. O sindicato vai desligar toda a
energia local, enquanto que a comunidade, com a ajuda de chaves diversas, vai
instalar portas e portões intransponíveis ao redor da cidade. É essencial que
cada instalação receba a visita das irmãs Sete Chaves, com urgência, para serem
bem trancadas.
— Vou mandar uma Chave de
Memória acompanhar as irmãs agora mesmo. Não dá pra confiar nessas esquecidas!
— apressa-se a Presidente.
— Tem mais!
Importantíssimo! Já que estamos online com todos os universos, a Liga das
Chaves das Caixas de Correio Eletrônico vai enviar correspondência ao Universo
dos Inflamáveis dentro de alguns minutos, informando sobre a rebelião dos
Maçaricos e pedindo que seja interrompido de imediato o envio de óleos
combustíveis para cá. Sem combustível, sem fogo. Embargo já!
— E estamos esperando o
quê? Chaves à obra!
O alvoroço recomeça, mas,
agora, cada chave está mais confiante. As gêmeas, Chave Bifásica e Chave
Bipolar, não cabem em si de contentes, porque a solução dos conflitos dependerá
da sua família elétrica. A Chave de Casa reza pelas portas e portões que fazem
o cerco à cidade. E a Chave Mestra se pergunta se não é melhor ir dar uma
ajudinha na periferia, na qualidade de Presidente da Assembleia das Chaves.
O plano mostra-se bem
sucedido. As notícias estão chegando, comprovando que tudo está dando certo. Os
desalmados Maçaricos não conseguem entrar na cidade e, um a um, estão sendo
destruídos pela estratégia da falta de óleo prevista pela Organização dos
Parceiros — fundada no último minuto para evitar vaidades e desavenças. A Chave
de Cadeia foi capturada e emparedada pelo serviço secreto dos Molhos de Chaves
de Armário e seu julgamento será marcado para depois que as coisas se
acalmarem.
Em meio a tantas notícias
picadas, chega a boa nova:
— Os Maçaricos foram
aniquilados! Sem fôlego, sem óleo combustível, eles tombaram inertes na
periferia da cidade!
— Urra! Urra! — grita a
turba enlouquecida.
— Viva a Organização dos
Parceiros!
— Viva!!!
— Viva a Assembl...
— Parem! Parem agora! —
soa em tom menor o comando de uma Chave de Armário que entra apavorada.
— O que houve? — pergunta
a Presidente.
— Um Maçarico escapou do
cerco e se aproxima da cidade!
— Ohhhh! — exclamam vozes
amedrontadas — Como foi que isso aconteceu?
— Tomou por refém um Cofre
Indestrutível e se trancou dentro dele. Está gritando lá de dentro que não
adianta a Chave Mestra tentar abrir o cofre, porque não tem fechadura. E que só
ele sabe o segredo!
— Estamos perdidas! Não
sabemos o segredo para entrar e não há nada que destrua esse cofre! Quando esse
Maçarico abrir a porta, vai sair cuspindo fogo e liquidar todas nós! — diz, aos
prantos, uma Chave de Carro.
— Estamos perdidas,
perdidas! — ecoam todas.
Então, em meio ao caos do
extermínio iminente, uma vozinha alta e afinada se repete:
— Eu fecho, eu fecho, me
deixa fechar, deixa! Eu fui feita para abrir e fechar melhor do ninguém! — ela
insiste.
— Maluca! Fechar o quê?
Não fala coisa com coisa essa doida aí! Sua metida! Achando que dá conta do que
nem os Parceiros conseguiram! A gente tem é que correr e tentar se salvar,
porque nenhuma de nós resiste ao fogo de um Maçarico! — irrita-se uma Chave de
Fenda nervosa e pessimista.
Porém, de forma
surpreendente, pronuncia-se a favor da chavinha a Presidente da Assembleia:
— Deixem a douradinha
falar! Vamos manter os direitos das chaves até o fim. E, afinal, nós não temos
mais nada a perder! Diga, pequenina, o que é que tanto você quer fechar?
Nesse instante, ouve-se um
som metálico espantosamente alto e no tapete da nave central começa a rolar,
desajeitado, um pesado cofre. É o Maçarico!!!
Gritos! Correria!
Angústia! Choros!
Então, ligeira como um
olho que pisca, a chavinha dourada se aproxima do cofre, agarra-o e abraça com
sua estrutura frágil a porta que o Maçarico tenta abrir a cada segundo. Luta
por alguns momentos, se arranha, perde o ar, mas continua abraçada à porta até
que, como por milagre, o painel eletrônico do cofre fica totalmente danificado
e a porta não pode mais ser aberta nem por dentro e nem por fora. Pronto, o
Maçarico foi detido! Ninguém entra; ele não sai. Fechado na prisão que arrumou
para si mesmo, o lança-chamas não representa mais nenhum perigo.
Risos desenfreados de
alívio, agradecimentos efusivos, dia de folga para todas as chaves! E quase
ninguém percebe que lá se vai embora a chavinha dourada, porta afora, buscando
apenas um pouco de descanso.Que dia agitado! Mas... Espere! Parece que alguém
presta atenção a ela!
— Nobre amiga, nobre
amiga! Antes de sair, por favor, preciso do seu nome para lavrar no Livro de
Atas e Elogios da Assembleia! — pede-lhe, de longe, sorridente, a Chave Mestra.
Enquanto todas as chaves
começam a aplaudi-la, ela responde:
— Meu nome, senhora
Presidente? Ora, meu nome é Chave de Ouro.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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