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"A ASSEMBLEIA DAS CHAVES" [Cinthia Kriemler]


"A ASSEMBLEIA DAS CHAVES"

— Eu fecho, eu fecho, me deixa fechar, deixa!!! — a vozinha alta, afinada e insistente chama a atenção da Assembleia das Chaves.

Interessados em descobrir a dona de tanto berreiro, as outras chaves se viram, procurando de onde partia tanta euforia.

— Eu... Aqui... Eu fecho!

Ah, lá está! No fundo, à esquerda de quem entra. Sentadinha ao lado da Chave de Parafuso. Imagina! Uma chavinha comum dessas, douradinha, gritando como se fosse uma Chave Allen!

— Cale a boca, pequena! Coloque-se no seu lugar!

— É isso mesmo, calada!

— Vamos fazer silêncio aí, criança! — esgoela uma Chave Inglesa esnobe.
O alvoroço é intenso. A Chave Mestra, que preside a Assembleia desde que a Chave do Paraíso se aposentou, decide intervir com urgência no desvario das insensatas.

— Ordem! Ordem! Ou eu vou mandar evacuar o recinto! Vou mandar chamar as Chaves de Armário e trancar todas vocês, suas tagarelas!

De supetão, o clamor se desfaz. Um ou outro “Oh!” se escuta no ambiente, mas logo o silêncio impõe-se absoluto. Nem um tilintar sequer! É que as Chaves de Armário são terríveis! Bloqueiam a passagem, recolhem e aprisionam tudo em lugares escuros... Ui!!! Quem não respeita uma Chave de Armário?

— Como é isso, pequenina? Você acredita mesmo que com esse corpinho frágil pode fechar o Portão dos Acontecimentos?

Risadas disfarçadas, muxoxos, deboches em sussurro se esparramam entre as chaves presentes.

— Posso! Eu posso sim! Ah, se posso! E fecho bem, viu, senhora Presidente!

— Não, pequenina, eu agradeço a sua boa intenção! Além do mais, desde ontem à noite, quando as irmãs Sete Chaves se esqueceram de trancar o Portão, eu não tenho notícias das consequências que tudo isso provocou. Por enquanto, não posso mandar ninguém lá pra fechar o Portão, porque é muito perigoso. Além do mais, como é que pode uma pobre chavinha querer cumprir uma tarefa tão grande? O Portão dos Acontecimentos é majestoso, imenso, misterioso. É lá que tudo começa para todo o mundo. Desista, querida, você é apenas uma chavinha dourada!

Nesse instante, interrompendo o solene puxão de orelhas da Chave Mestra na desconhecida chavinha dourada, entra correndo pela nave central a Chave Tetra, representante da Liga Antifurtos. Contorcida e rechonchuda, tropeça no tapete e cai de boca ao pé de uma Chave de Luz idosa e endurecida.

— Desculpe, desculpe mesmo! — enfrenta a cara feia da outra — É que a situação está crítica! Senhora Presidente, prepare-se para um grande problema!

Inquietação geral, novamente! A linhagem das Tetras é confiável, elas são seguras de si, não fazem alarde à toa. O que será que aconteceu? E a ansiedade se espalha da primeira até a última fila dos Assentos-Fechadura, provocando um ruído ensurdecedor de racs-racs e locks-locks.

— A Chave de Cadeia aproveitou que o Portão dormiu aberto e promoveu uma fuga em massa dos Maçaricos que estavam presos na Ilha dos Cofres! Escaparam muitos deles, os piores elementos do fogo organizado! Ai que azar, senhora Presidente!



— Azar? Uma tragédia, isso sim! Só podia ser coisa daquela bandida vulgar e espertalhona — diz a Chave Mestra, referindo-se à Chave de Cadeia.

— Ela deve ter ganhado muito com isso, senhora Presidente! Aquela... vendida! Mas deixa que eu dou um aperto nela e ela confessa tudo! — desespera-se a Chave de Braço.

— Isso é mais que tragédia, é uma desdita, uma desventura, uma infelicidade, uma calamidade, uma verdadeira catástrofe! Decerto que eles virão atrás de nós, aqueles Maçaricos marginais! — lamenta-se uma Palavra-Chave pernóstica. — Vamos ser derretidas, desmanchadas, consumidas pelas chamas...

— Cheeeeega! Caladas! — enfeza-se a Chave Mestra. — Relate tudo, Tetra, relate!

— Pois bem! As Chaves de Armário estavam no seu turno regular e havia ainda um pelotão de Chaves de Perna fazendo a vigilância, mas ninguém sabia que o Portão estava aberto...

— Descuido! Descuido!

— Não, não, senhora! A Chave de Cadeia raptou uma Chave de Dados e obrigou a coitadinha a decodificar os números da fechadura do presídio. Um horror!

Dessa vez, é difícil calar a plateia ensandecida pelo medo dos lança-chamas implacáveis. As chaves se levantam, sentam, rodam em seus Assentos-Fechadura, tremem, pensam em fugir. Espalha-se o medo.

Uma coisa dessas proporções é mesmo motivo para pânico. Já pensaram em quais seriam as consequências de um universo sem chaves? Portas sem abrir, diários lacrados para sempre, jogos sem solução, falta de eletricidade, carros com rodas frouxas, parafusos desajustados... Santos Segredos, seria o fim do universo livre!

— Uma terra todinha queimada! — diz uma Chave Yale da Liga Tradicionalista, como se resumisse os pensamentos das demais.

— Vamos parar de lamúrias! Temos que deliberar! — convoca a Presidente.


As chaves se reúnem circunspectas em suas respectivas Ligas e discutem soluções que vão do ataque à defesa. Batem-se umas contra as outras, andam, agrupam-se, dissolvem os aglomerados, saem, entram, até que, finalmente, a Informação-Chave pede a palavra.

— Deliberamos e decidimos, senhora Presidente.

— E...?

— Parceiros.

— Como...?!

— Temos que pedir ajuda aos parceiros, senhora.

— E quem são esses parceiros tão poderosos?

— A Comunidade das Portas e Portões; e o Sindicato das Chaves de Luz. O sindicato vai desligar toda a energia local, enquanto que a comunidade, com a ajuda de chaves diversas, vai instalar portas e portões intransponíveis ao redor da cidade. É essencial que cada instalação receba a visita das irmãs Sete Chaves, com urgência, para serem bem trancadas.

— Vou mandar uma Chave de Memória acompanhar as irmãs agora mesmo. Não dá pra confiar nessas esquecidas! — apressa-se a Presidente.

— Tem mais! Importantíssimo! Já que estamos online com todos os universos, a Liga das Chaves das Caixas de Correio Eletrônico vai enviar correspondência ao Universo dos Inflamáveis dentro de alguns minutos, informando sobre a rebelião dos Maçaricos e pedindo que seja interrompido de imediato o envio de óleos combustíveis para cá. Sem combustível, sem fogo. Embargo já!

— E estamos esperando o quê? Chaves à obra!

O alvoroço recomeça, mas, agora, cada chave está mais confiante. As gêmeas, Chave Bifásica e Chave Bipolar, não cabem em si de contentes, porque a solução dos conflitos dependerá da sua família elétrica. A Chave de Casa reza pelas portas e portões que fazem o cerco à cidade. E a Chave Mestra se pergunta se não é melhor ir dar uma ajudinha na periferia, na qualidade de Presidente da Assembleia das Chaves.

O plano mostra-se bem sucedido. As notícias estão chegando, comprovando que tudo está dando certo. Os desalmados Maçaricos não conseguem entrar na cidade e, um a um, estão sendo destruídos pela estratégia da falta de óleo prevista pela Organização dos Parceiros — fundada no último minuto para evitar vaidades e desavenças. A Chave de Cadeia foi capturada e emparedada pelo serviço secreto dos Molhos de Chaves de Armário e seu julgamento será marcado para depois que as coisas se acalmarem.

Em meio a tantas notícias picadas, chega a boa nova:

— Os Maçaricos foram aniquilados! Sem fôlego, sem óleo combustível, eles tombaram inertes na periferia da cidade!

— Urra! Urra! — grita a turba enlouquecida.

— Viva a Organização dos Parceiros!

— Viva!!!

— Viva a Assembl...

— Parem! Parem agora! — soa em tom menor o comando de uma Chave de Armário que entra apavorada.

— O que houve? — pergunta a Presidente.

— Um Maçarico escapou do cerco e se aproxima da cidade!

— Ohhhh! — exclamam vozes amedrontadas — Como foi que isso aconteceu?
— Tomou por refém um Cofre Indestrutível e se trancou dentro dele. Está gritando lá de dentro que não adianta a Chave Mestra tentar abrir o cofre, porque não tem fechadura. E que só ele sabe o segredo!

— Estamos perdidas! Não sabemos o segredo para entrar e não há nada que destrua esse cofre! Quando esse Maçarico abrir a porta, vai sair cuspindo fogo e liquidar todas nós! — diz, aos prantos, uma Chave de Carro.

— Estamos perdidas, perdidas! — ecoam todas.



Então, em meio ao caos do extermínio iminente, uma vozinha alta e afinada se repete:

— Eu fecho, eu fecho, me deixa fechar, deixa! Eu fui feita para abrir e fechar melhor do ninguém! — ela insiste.

— Maluca! Fechar o quê? Não fala coisa com coisa essa doida aí! Sua metida! Achando que dá conta do que nem os Parceiros conseguiram! A gente tem é que correr e tentar se salvar, porque nenhuma de nós resiste ao fogo de um Maçarico! — irrita-se uma Chave de Fenda nervosa e pessimista.

Porém, de forma surpreendente, pronuncia-se a favor da chavinha a Presidente da Assembleia:

— Deixem a douradinha falar! Vamos manter os direitos das chaves até o fim. E, afinal, nós não temos mais nada a perder! Diga, pequenina, o que é que tanto você quer fechar?
Nesse instante, ouve-se um som metálico espantosamente alto e no tapete da nave central começa a rolar, desajeitado, um pesado cofre. É o Maçarico!!!

Gritos! Correria! Angústia! Choros!

Então, ligeira como um olho que pisca, a chavinha dourada se aproxima do cofre, agarra-o e abraça com sua estrutura frágil a porta que o Maçarico tenta abrir a cada segundo. Luta por alguns momentos, se arranha, perde o ar, mas continua abraçada à porta até que, como por milagre, o painel eletrônico do cofre fica totalmente danificado e a porta não pode mais ser aberta nem por dentro e nem por fora. Pronto, o Maçarico foi detido! Ninguém entra; ele não sai. Fechado na prisão que arrumou para si mesmo, o lança-chamas não representa mais nenhum perigo.

Risos desenfreados de alívio, agradecimentos efusivos, dia de folga para todas as chaves! E quase ninguém percebe que lá se vai embora a chavinha dourada, porta afora, buscando apenas um pouco de descanso.Que dia agitado! Mas... Espere! Parece que alguém presta atenção a ela!

— Nobre amiga, nobre amiga! Antes de sair, por favor, preciso do seu nome para lavrar no Livro de Atas e Elogios da Assembleia! — pede-lhe, de longe, sorridente, a Chave Mestra.

Enquanto todas as chaves começam a aplaudi-la, ela responde:

— Meu nome, senhora Presidente? Ora, meu nome é Chave de Ouro.





Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.

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