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LÁGRIMA [Cláudio Portella]


LÁGRIMA

Estava triste, lendo o poema “Ismália”. Parei a leitura e passei a observar o que via. Pessoas passavam, borboletas voavam, crianças brincavam. Me senti feliz, mas não chorei.

Negras mulheres como a noite passaram com trouxas de roupa na cabeça sem perceber que a vida é um poço d'água profundo, que muitas vezes morremos sem beber. Estavam felizes. Pois gostavam de sorrir e banhar as roupas de vestir. Me senti muito feliz, mas não chorei.

Gotas caiam dos traços azuis das casas que se confundiam com os olhos do muno: o céu. Me senti profundamente feliz, mas de meus olhos nem uma lágrima caiu.


Crianças brincavam, a sorrir, a pular. Brincavam sem saber. Brincavam por que seu viver era simples, como a simplicidade de se sentir inexplicavelmente feliz. Mas não chorei. Percebi que aquela vida era um sonho, e de repente acordei. E de meus olhos nem uma gota nasceu.


De repente, ouço uma voz quebrar o silêncio do momento. Uma voz negra, uma voz branca, uma voz, apenas uma voz. Uma voz sem dono, uma voz sem eco que corria as ruas, entrava pelas janelas, nos ouvidos, entrava no coração: “Olha o picolé, olha o sorvete!”.

E de repente, da lição sabida de cor, cantava e sorria, sorria muito. Sorria como se a felicidade não passasse de um sorriso: “Quando a gente é criança, só quer brincar e não pensa em namorar”. “Olha o picolé!”. “A moça donzela não quis estudar. A moça era de família nobre. A moça fugiu com o pobre”. “Olha o sorvete!”.

E assim ia a esbanjar felicidade. E assim ia empurrando o carrinho de picolé com uma só mão, pois a outra, Deus não dera não!

E assim, sem saber, ia, não vendendo picolé, mas a semear no chão uma semente. Uma semente diferente. Uma semente que só nasce dentro da gente. Essa semente é a lágrima de alguém que estava triste e encontrou naquele pobre homem um motivo para chorar de felicidade.

A lágrima escorreu pela face, bateu no peito. Caiu na terra. E daí então nasceu outro pobre homem, que com jeito simples, saiu a semear outra lágrima de quem não sabe chorar.


CLÁUDIO PORTELLA (Fortaleza, 1972) é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor dos livros Bingo! (2003), Melhores Poemas Patativa do Assaré (2006; 1ª reimpressão, 2011; Edição em eBook, 2013), Crack (2009), fodaleza.com (2009), As Vísceras (2010), Cego Aderaldo (2010), o livro dos epigramas & outros poemas (2011) e Net (2011). Colabora nas mais importantes publicações do Brasil e do exterior. Ganhou o concurso de conto da UBENY - União Brasileira de Escritores em Nova York.

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