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O (RE)ENCONTRO [Jean Marcel]

O (RE)ENCONTRO

Foi a primeira vez que o Afonso e a Clotilde se encontraram após a separação. 

Era manhã de um sábado ensolarado. Na verdade, foi um encontro fortuito. 

Ambos, outrora sedentários convictos, agora se esbarraram numa ciclovia contra todas as probabilidades. Ele a pé, vestido totalmente fitness dos pés à cabeça. Ela de bicicleta, luvas de couro cor-de-rosa combinando com a malha e com um top que revelava parte da sua barriguinha.

No princípio não se reconheceram. Pararam frente a frente, aguardando que o outro oferecesse passagem para continuar. No fundo até rolou, num breve instante, um certo clima de paquera, uma vez que acompanharam discreta e atentamente a movimentação um do outro enquanto se aproximavam. Por isso a surpresa com o reconhecimento mútuo.

– Afonso? – Pergunta a Clotilde descendo da bicicleta, enquanto retirava da cabeça o capacete de formato aerodinâmico com o qual se sentia um pouco ridícula.

– Clô? – Pede a confirmação o Afonso, ainda não acreditando no que via – Você vem sempre aqui? – Puxa assunto, ao mesmo tempo em que corria no lugar para mostrar que ainda tinha fôlego.

– Venho mais no final de tarde, mas hoje resolvi vir de manhã porque tenho um encontro à tardinha.

– Uhm... Encontro, é?

– Com as minhas amigas, Afonso.

– Amigas, é? – disfarçando o ciúme.

– A Paula e a Rafaela.

– A Paula e a Rafaela, é? – desconfiado.

– Você vai ficar repetindo o que eu digo? E por que você está gritando, Afonso?

– Ah, desculpa – tirando os fones de ouvido e mudando o rumo da conversa – É meu mp3. De última geração, sabe? Muitos giga! Você não tem?

– Mas você nunca gostou de ouvir música... Até brigava quando eu ligava o rádio do carro! – Aliás, lembrou silenciosamente, ele também odiava qualquer tipo de exercício. O máximo de atividade física que fazia era buscar a cerveja na geladeira quando ela se recusava a fazê-lo.

– Pois agora só faço exercício com “sonzeira” de fundo.

– Mmmm!

– Você está muito bem, Clô! Emagreceu, sabia?

É claro que ela sabia, depois da separação resolvera recuperar o tempo perdido em anos de displicência com seu visual. Agora acompanhava seu peso diariamente na balança do banheiro. Cada grama perdido, fruto de muito sofrimento e abdicação, sendo comemorado como uma pequena vitória. Ginástica, dieta da água, dieta da sopa, massagem, e agora, também, corridas de bicicleta.

– É mesmo? Não sei... Emagreci? Você acha?

– Verdade, está até com uma cor mais bonita!

Ela soltou um sorriso que foi prontamente interpretado pelo ex-marido como uma reação positiva ao elogio. Na verdade, ela estava era pensando como as sessões de bronzeamento artificial tinham sido um bom investimento.

– O cabelo! Você mudou alguma coisa no cabelo, acertei?

“Alguma coisa!”, pensou ela! Cortou pelo menos quatro dedos do comprimento, fez reflexo e chapinha japonesa! Mas só o fato de o Afonso ter identificado “alguma coisa” diferente já era um avanço considerável!

– Mudei um pouco o penteado – disfarçou.

– Você também está bem. Parece até que está mais forte.

Era tudo que ele queria ouvir. Estava inclusive conversando com os pulmões mantidos exageradamente cheios de ar, a fim de ressaltar esta sua nova característica.

– Cortei o consumo de carne vermelha e estou malhando todo dia!

– Jura? Nem picanha? E o salaminho que você adora?

– Nunca mais!

– Nossa, estou impressionada! Desde quando?

– Desde quarta-feira... Contando com hoje já são três dias, mas é pra valer!

– Puxa – exclamou a Clotilde, – eu estou querendo cortar os refrigerantes.

Quem sabe agora tomo coragem...

Ficaram se observando, extasiados, quase não reconhecendo um ao outro, tantas eram as novidades. Ele se sentindo o He-Man e ela a She-ha. 

Olhavam-se como se fosse a primeira vez. Agora foi o Afonso que quebrou o silêncio.

– Quantas molas tem o seu tênis?

– Como?

– O seu tênis. Tem quantas molas embaixo?

– Não sei, Afonso. – olhando pela primeira vez o solado por baixo – Acho que umas seis ou sete...

– Então são seis, é sempre número par. O meu tem dez! – disse orgulhoso, fazendo agora um estranho alongamento que deixou a Clotilde constrangida diante das outras pessoas que caminhavam próximo deles e que observavam divertidos de rabo de olho.

– Puxa, dez molas! Tudo isso, Afonso? – sem entender qual importância tinha essa informação. E sinceramente, pensou mas não disse, se tivesse sido consultada, certamente não o teria deixado comprar aquele tênis laranja com detalhes em vermelho. Achou um horror, mas preferiu não emitir nenhuma opinião.

Ainda pulando, ele olha o relógio atentamente e faz cara de preocupado.

– Está com pressa? Tem algum compromisso? – pergunta a Clotilde.

– Não, estou acompanhando minha frequência cardíaca! – Levantou a camiseta até em cima para mostrar a faixa peitoral que captava os batimentos e os transferia para o relógio de pulso.

– Uhm! Que chique!

– Você não tem? – voltando o olhar para a ex-mulher com a expectativa de que ela fizesse o mesmo, ou seja, levantasse um pouco seu top de lycra.

– Não! – olhando para si após notar o olhar curioso do ex-marido.

– Clô! Você está com um brinco no umbigo?

– Piercing, Afonso!

– Mas você não pegava no pé da Glorinha dizendo que isso era coisa de safada?

– A Glorinha é safada com ou sem piercing, Afonso! – A lembrança não foi bem-vinda e alterou imediatamente o seu humor. A Glorinha, colega de trabalho do Afonso, será sempre um calo no seu calcanhar. E depois, nunca confiou em mulheres cujos nomes eram pronunciados no diminutivo pelos homens. E sua tese nunca falhara!

– Acho que está no meu horário, Afonso!

– É, eu também! Tenho uma churrascada da turma e já estou atrasado.

– Mas você não cortou a carne?

– Lá vem você me controlando, Clotilde!

– Será que você podia me dar licença? – Pergunta a Clotilde, subindo novamente na bicicleta.

– Mas é você que está na contramão! – replica o Afonso.

– Não, não! Aqui é uma ciclovia. E eu é que estou de bicicleta. Você está a pé, portanto, deveria estar na calçada. Dá licença, Afonso?

– Eu corro aqui todo dia! Acha que não sei onde posso correr?

A tensão aumentou e o impasse durou por longos minutos. Nenhum dos dois querendo ceder. Saíram bufando, se esbarrando, irritados com a teimosia um do outro e concluindo que algumas coisas de fato nunca mudariam! Mas ao se afastarem, ele recolocando seus fones de ouvido e ela ajeitando o capacete, ainda deu tempo de ambos, discretamente, darem uma última olhadinha para trás, desejando, no fundo, que o encontro tivesse durado um pouquinho mais...


Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com

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