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Desfaz o jogo [Tatiana Alves]


Desfaz o jogo


Fim de tarde na grande metrópole. Um acidente envolvendo um caminhão causava retenção no trânsito, gerando um engarrafamento que parecia dar um nó na cidade. Além do monóxido de carbono, a briga das buzinas tornava tudo ainda mais irritante. E, como diz um velho amigo niilista, filósofo de botequim, tudo sempre pode piorar. E foi aí que o carro morreu.

– #$@%*@!!!!!! O carro morreu. – o sujeito foi mais categórico do que médico desenganando paciente terminal.

– Por quê? Como assim, morreu? – ela, que de carro só conhecia volante e rodas, perguntou, mais assustada pela fatalidade do termo do que propriamente por perceber o transtorno criado. 

– Não sei. – a voz dele denotava impaciência, e tinha o tom irascível que ele manifestava em situações de estresse.  – Acho que não pode ser a bateria. Troquei no mês passado. Também não é falta de combustível. Acabei de abastecer. Deve ser o motor de arranque. Bem que o Alemão me avisou. Devia ter trocado. – a cada frase, o tom de voz ia subindo, assim como o carro fizera antes de falecer, digo, morrer.


– #@#%*&##@!!!!!!!!!

– O que é que a gente vai fazer agora? – perguntou ela, arrependendo-se na hora por ter proferido uma questão tão complexa.

– Eu não mereço!#+*$*#@! Não é justo! Que @#$@#!!!!!! – vociferava ele, enquanto batia com as duas mãos no painel. Praticamente um Incrível Hulk em versão motorizada. A cada tentativa de ressuscitar o motor, todas as luzes do painel se acendiam para, imediatamente, se apagarem, frenesi dos estertores de um motor fatigado. Os ruídos emitidos pelo veículo tinham um ritmo de agonia moribunda que chegava a ser engraçado. Um lamento triplo, como uma tosse seca, e um suspiro. Um lamento triplo, e outro suspiro.

– Não é melhor ligar para o reboque? – sugeriu ela, tentando ajudar.

– Liga, #@$%#! – bradou ele, jogando a carteira com os telefones no colo dela, que, nervosa diante do caos que se formava, teve um histérico acesso de riso.

– Para de rir! PARA DE RIR! Qual é a graça?

Ela, tentando inutilmente conter a crise que a acometia nos momentos mais difíceis, emendou com choro, que se tornava grotesco porque se intercalava com as gargalhadas.

Um carro enguiçado na subida de uma ponte, uma mulher em crise nervosa, um homem impaciente aos berros e um trânsito caótico. Isso para não mencionar os comentários dos carros que passavam por eles:

– Brincadeira, hein?!

– Parou mal pra caramba, amigo... – e, em meio ao burburinho, as palavras encorajadoras do marido:

– Para de chorar, que você está me irritando.

Enquanto tentava ligar para o serviço de assistência a fim de solicitar o reboque, ouvia a sinfonia nada harmônica de buzinas, paralela à mensagem-padrão de atendimento.

– E aí, atenderam?

– Já vão atender – dizia ela, agora uma Amélia pós-moderna, capaz de concordar com tudo o que ele dissesse, só para acalmá-lo.

– Boa-noite, senhora. Qual o seu nome?

– Olha. O carro morreu aqui na subida da ponte, e eu preciso solicitar um reboque... Estamos no meio do trânsito, e...

– Qual seu nome e CPF, por favor? – a atendente não a deixou terminar a frase.

– Vão mandar a @#$# do reboque ou não vão? – gritava ele, acrescentando um tenor em dó maior às buzinas, que faziam coro aos seus berros e ecoavam lá e cá.

– Fulana de tal, número tal. Olha só: nós estamos em lugar perigoso, e...

– Entendo, senhora, mas eu tenho de preencher o formulário de solicitação.

– E aí? – novo grito.

– Vão mandar, sim – dizia ela ao marido, agora uma espécie de mediadora entre a atendente e ele, irracional pela raiva.

– Senhora, não estou conseguindo ouvi-la. A senhora pode acalmar o cavalheiro, por favor?

Estou tentando, pensava ela. Como estou!...

– Senhora – prosseguiu a atendente – o que a senhora é do titular do seguro?  – Taí! Boa pergunta, pensou ela, ainda mais àquela altura... – Eu sou mulher dele. O carro está no meu nome.

– Senhora, vou estar transferindo a sua ligação, e...

– Não! Pelo amor de Deus, não sai da linha! – o tom da mulher beirava o desespero.

– Senhora, o procedimento...

– Eu não quero “procedimento”, moça, eu quero ajuda – ela implorava, clamando que aquela tábua-de-salvação-telefônica lhe trouxesse alguma saída.

– Qual o número do chassi do veículo, senhora? – ela pareceu se comover.

– Hã? Chassis? – será que as atendentes agora falavam Francês? Não. Se fosse Francês, ela entenderia. Até Grego. Talvez aquilo fosse Aramaico. Ou alguma linguagem de outra dimensão.

Essa não! Enquanto ela se perdia em considerações linguístico-automobilísticas, a ligação havia caído. Talvez a ET-atendente tivesse desistido dela, afinal.

– Caiu a ligação, – informou ela, com o ar de quem carregará mais uma culpa pela eternidade.

– Caiu??? Como assim, caiu?! – berrava o sujeito.

– Não sei, dizia ela, examinando o telefone, que estava desligado. – Acho que a bateria acabou, informou, temendo acrescentar mais essa falta grave aos pecados que havia cometido. Algo cármico, de encarnações pregressas, talvez pudesse explicar aquele inferno dantesco em que o seu dia se havia transformado.

– Liga de novo – o sujeito jogou o celular em seu colo. – Usa o meu.

– Ahnnn. Moça, eu liguei ainda agora...
...

Ligação feita, reboque agendado. A paz começava a querer retornar. E foi então que ele proferiu a frase lapidar, solene como um oráculo das tragédias gregas:

– Você vai ter que encostar o carro.

– Hã? Eu?! – ela não acreditava no que ouvia. Ela, que precisava de copiloto em pista de parques de diversões; ela, que ficava atolada naqueles carrinhos que batem uns nos outros, e que às vezes tinha pesadelos homéricos em que se via ao volante de um carro, sem saber conduzi-lo. Mas isso era muito pior do que os seus pesadelos mais tenebrosos. – Mas eu não sei nem ligar o carro.

– É isso ou empurrar, aqui na subida. Se você errar, o carro vai descer, e a gente vai bater no carro de trás. Vou contar até três. No “três”, você solta o freio de mão, e joga o carro pra direita.

– Mas eu...

– 1, 2..3!!!! Solta o freio de mão!!!

– Não consigo. – dizia ela, não sabendo se era para cima, para baixo ou para trás que deveria fazer força.

– Você não sabe soltar o freio???@#%&#!!

– Não! Como é? Ah, consegui.

– Vira o volante pra direita ao mesmo tempo.

– Tá... – ela tremia e suava, desesperada.

– Vai! Continua! – gritava ele.

– O volante não vai mais... – não podia chorar, e muito menos rir.

– Tá. Agora desfaz o jogo – gritou ele, enquanto empurrava.

– Ahnn???

– Desfaz o jogo, #@@#%$!

– O que é isso?  – perguntou, desesperada. Ela sabia o que era jogo-duro, jogo sujo, jogo marcado, e até jogo fechado. Mas como desfazer um jogo que ela não sabia ter feito?

– Vira pro outro lado. Você virou pra direita, agora vira pra esquerda! @##@!!!!

– Tá. – obedeceu ela, que nunca pensara que um volante pudesse ser tão pesado.

– Agora bota reto.

Como se bota um volante reto, meu Deus? – mas isso ela não teve coragem de perguntar. Não devia ter matado aula de geometria. Volante reto. Volante reto. Quase um mantra.

– Eu disse RETO!!!

– Eu não sei como se faz isso!

Os curiosos olhavam e riam, e ele gritava, defendendo-se:

– Ela não sabe dirigir!

Isso era tudo o que ela precisava: parecia que eles estavam naquela situação por alguma incompetência ou erro dela, o que agora vinha se tornando muito comum. Quando irritado, ele agia de um modo que fazia parecer que a culpa era sempre dela, até em relação a coisas imponderáveis ou aleatórias. Não preciso passar por isso! Não preciso passar por isso!, bradava a voz interior, liberta do caos circundante.

Do meio do apocalipse em que aquele trecho se transformara, surgiu um ambulante-faz-de-tudo cheirando a bebida. Como aqueles maltrapilhos dos contos de fadas, aquele eremita contemporâneo prontificou-se a fazer o carro pegar no tranco. Outra expressão para checar no Aurélio, pensou ela, antes de perceber, com os sucessivos trancos, aquilo a que ele se referia. O sujeito trazia mais quinquilharias dependuradas do que militar em festa de gala. Carregadores de celular, guarda-chuvas e biscoitos de polvilho adornavam-no do pescoço à cintura.

– Fica calma, dona, que eu vou dar um jeito nisso. – o mau-hálito do sujeito deixou-a embriagada. É bom que eu relaxo, pensou ela, enquanto catava o Lexotan no fundo da bolsa.

– É só mais um pouquinho, dona. Dick, para com isso.

– SLURP! O vira-lata do Bigode acabara de lamber-lhe a boca.

– Ele adora fazer isso. Dick, deixa a moça!....

– Não, moço. Tudo bem. – se ele fizesse o carro pegar, ela até beijaria de bom-grado aquele cachorro morrinhento. O pensamento desencadeou nela nova crise de riso. A cada tranco, Dick – que era, na verdade, Richard, numa pronúncia irreconhecível – pulava e continuava no seu colo. Vou evitar contato visual, senão o cachorro me lambe de novo.

– Pronto. Agora é deixar solto, e descer de ré.

– Daqui eu levo, obrigado. – o marido era só gentilezas com o homem-bafo. Deu-lhe uns trocados para a cervejinha, como se ele precisasse de mais uma.
 – Valeu, sangue! Até a próxima. – agradeceu o faz-tudo, com Dick pulando ao fundo, saudoso do perfume dela.

– Próxima?! Como assim, próxima? – por ela, nunca mais passaria por aquele caminho amaldiçoado. Só vou de barca. Isso se voltar lá.

– Que beleza, né? Voltou a funcionar. – o doce de marido agora puxava conversa. Depois que o tsunami urbano estourou, uma calmaria cabralina apossou-se dele. Tentou até desanuviar o clima, ensaiando uma brincadeira, que ficou sem resposta. Para ela, não havia mais brincadeira possível. Agora se tratava de aprender a guiar, fosse um carro, fosse a vida. Mesmo que para isso precisasse desfazer o jogo.


Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

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