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Lázaro [Claudio Parreira]

Lázaro

“Não quer por acaso o senhor bispo um Lázaro ressuscitado de presente? Um homem da altura do senhor bispo pode muito bem transformar Lázaro num fenômeno das massas, num novo arauto da Palavra, e eu e a mãe não somos tão egoístas a ponto de querermos atrapalhar o seu futuro, que já se mostra tão promissor” 

Claudio Parreira 
Especial para o Jornal Opção 

Senhor Bispo, não sou católica nem religiosa, acredito um pouco em Deus e sou forçada a crer que é o diabo quem manda nas coisas aqui por estas paragens. E é por isso mesmo que lhe escrevo: às vezes acontecem coisas tão estranhas aqui nessa terra que a gente se vê obrigada a buscar o auxílio do céu. Minha mãe diz que é o papa quem representa Deus na terra; como não sei o endereço dele e nem tenho certeza de que esta carta vai chegar, faço meu o ditado popular e venho por meio desta me queixar ao senhor. 

O caso todo é por causa do meu irmão, o Lázaro. O pobre coitado nunca teve uma vida lá muito feliz, bebia como um alucinado, nunca arranjava emprego, vivia grudado nas pernas daquelas mulheres de grande generosidade mas de muito pouca vergonha, o senhor sabe. Sofria, coitado, da mesma forma que sofríamos eu e a mãe, desesperadas que ficávamos com o seu desespero.

Pois é. Cuidávamos de tudo, a comida sempre pronta e quente, os lençóis cheirando a lavanda na cama que ele mais gostava. Mas Lázaro sumia por cinco dias, uma semana, depois aparecia em casa todo estropiado, a barba enorme, os cabelos piolhentos. Pois é. Eu e a mãe lavávamos ele, curávamos os ferimentos, passávamos creolina na sua cabeça pra matar os piolhos. Lázaro então sorria (era tão bonito o seu sorriso!) e passava dois ou três dias conosco, contando histórias das ruas e das putas (senhor bispo: desculpe a linguagem chula que eu às vezes emprego nesta carta; ela não tem por objetivo ferir a sua dignidade.) Nesses momentos parecíamos até uma família de verdade e tudo estava bem. Bastava, contudo, que Lázaro sentisse o perfume de uma vagabunda passando na rua ou visse propaganda de cachaça na TV para que tudo voltasse a ser corno antes. A mãe e eu novamente desesperadas com o desespero de Lázaro.

— Isso aí não é homem, é coisa que não presta, vagabundo sem vergonha.

Era o que as vizinhas achavam dele. Mas não eu e a mãe. Lázaro, coitado, tinha problemas, problemas graves, e isso ficou bem claro na tardinha em que ele chegou em casa e disse:

— Arrumem um caixão que hoje eu vou dar uma morrida. A mãe riu, eu também. Nós amávamos aquele maluco.

— Morrida? — repeti.

— É. Mas não se preocupem, eu vou voltar.

Problemas gravíssimos. O álcool certamente havia cozinhado seus miúdos miolos e ele variava. Pois é. Eu e a mãe ficamos preocupadas, tão preocupadas que esquecemos de lhe servir o jantar. Quando entramos na sala com o leitão à pururuca, lá estava Lázaro, sentado, imóvel, duro como uma porta. Mortinho.

A mãe sacudiu a cabeça, eu sacudi a cabeça, as vizinhas, que já haviam se inteirado de tudo, sacudiram a cabeça. Fizemos então o necessário: montamos o velório para os amigos: putas, ladrões, cafetões, gente esquisita que habitava as noites, todos eles disputando o leitão que era para Lázaro. Vez em quando, uma ou outra vagabunda me puxava para um canto e confidenciava:

— Vou sentir saudade. Com ele eu gozava como mulher. Já com os outros ...
A mãe chorava, parava de chorar, chorava de novo. As vizinhas se acercavam, consolavam, e cravavam bem fundo o punhal no peito da velha:

— Foi melhor assim, Deus sabe o que faz. Ele só bebia, não dava tostão em casa, era só trabalho. Agora vocês podem viver, o desgraçado foi dessa pra melhor.

A mãe chorava.

O enterro, senhor bispo, foi cerimônia simples: as únicas testemunhas da última viagem de Lázaro fomos eu e a mãe e os coveiros que o enterraram. E tudo parecia ter acabado por ai.

Então o senhor se pergunta: por que parecia? Pois é. Sete dias depois da morte, a mãe encontrou Lázaro roncando em sua cama. Assustada, foi me chamar, e eu também vi.

— Vamos acordá-lo? — perguntei. 

A mãe concordou.

— Lázaro! Lázaro!

Ele abriu os olhos, mas uns olhos esquisitos: não eram mais vermelhos como antes: eram agora límpidos e cristalinos, olhos carregados de uma paz insuportável.

— Seus olhos — falei. — O que aconteceu?

— Querida irmã — disse ele —, eu fui purificado pelos filtros celestes, pela infinita bondade de Deus.

— Filtros celestes? Bondade de Deus? — falou a mãe. — O que é que andaram fazendo com você lá do outro lado?

— Me mostraram a luz, mãe! Por isso é que voltei: para dividir essa luz com aqueles que sofrem, com aqueles que precisam de um pouco de calor no coração.

A mãe foi taxativa:

— Você tá louco! Louquinho! — e saiu do quarto.

Eu fiquei diante de um Lázaro desconhecido. Onde fora parar o meu querido vagabundo, o delicioso mulherengo que povoava as minhas fantasias mais loucas, o devasso que tanto temor inspirava às castas famílias rigorosamente instruídas na Lei do Senhor? 

— Isso não é lindo, minha irmã?

— Lindo o quê?

— Ajudar os outros, confortar os oprimidos ...

— Sei. E as putas?

— Também são filhas de Deus.

— Não foi isso que eu quis dizer.

— Percebi. Aquele Lázaro ao qual você se refere, o Lázaro mundano, está sepultado, e com ele todos os seus vícios. Este que agora fala é outro, puro, limpo, um Lázaro que voltou à terra para semear a concórdia entre os homens.
Pois é, senhor bispo, um nojo. Em pouco tempo toda a vizinhança ficou sabendo do fato e agora as mais afoitas passam os dias diante de casa gritando milagre milagre milagre. Filas se formam pra ver o homem que retornou do além. Eu e a mãe achamos tudo isso um saco e já não suportamos mais a presença de Lázaro dentro de casa. Ele fede a bondade, a caridade, e seu antigo hálito de cachaça era bem mais agradável que esse de hoje, que mistura flores com palavras da Escritura. Mesmo as vizinhas que antes o detestavam agora o estimam muito mais que a seus próprios maridos, e ainda se derretem todas quando ele fala numa vida eterna ao lado do Pai.

Por essas e outras é que lhe escrevo, senhor bispo. Não quer por acaso o senhor bispo um Lázaro ressuscitado de presente? Ele é tudo o que eu já disse e suspeito que ainda possa vir a ser muito mais, desde que bem aproveitado, é claro. Um homem da altura do senhor bispo pode muito bem transformar Lázaro num fenômeno das massas, num novo arauto da Palavra, e eu e a mãe não somos tão egoístas a ponto de querermos atrapalhar o seu futuro, que já se mostra tão promissor.

Portanto, não deixe que essa oportunidade única lhe fuja das mãos, senhor bispo. Pense bem na nossa proposta. E não se preocupe com as despesas da viagem. Despacharemos Lázaro para o lugar que o senhor julgar mais conveniente, sem que isso venha a onerar os seus cofres sagrados.
Sem mais para o momento, só lhe peço que nos livre desse tormento.
Mãe e eu.

Fonte:


ClaudioParreira-Escritor e Jornalista
 -Mantém o BLOG PPC! http://claudioparreira.blogspot.com/
E @ClaudioParreira é o seu perfil no Twitter.


2 comentários

Beatriz Oliveira disse...

Excelente texto!!! Muito bem construído, lógico, divertido sem ser superficial.
Gostei demais da conta!!! Parabéns!!!

Me Segura Que Eu Vou Dar Um Troço disse...

acompanho a relatora, adorei a agilidade !