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Precisa-se de uma vaca por dia [Cinthia Kriemler]


Precisa-se de uma vaca por dia

E lá vamos nós sair para o pastinho. Seis da manhã, friozinho de seis da manhã e a gente vestida de calça comprida, blusinha e casaco, cabelo preso em rabo de cavalo, franjinha de índio e olhos de sono interrompido ― olhos de seis da manhã. No pastinho tem vaca. A vaca que vai dar leite morno tirado na hora. O gosto é diferente do leite da garrafa de vidro. Elas dizem que é. Minhas primas. E eu posso jurar que é. Mas não sei. Nunca tomei. E lá vamos nós, de novo, caminhando para o pastinho. Mas eu nunca chego. Tenho medo de vaca. Elas sabem. As vacas. Uma já correu atrás de mim. Acho que queria muito me mandar embora. Alguma coisa do tipo "menina medrosa não merece o leite morno das minhas tetas". Nem das tetas das parentes. Eu nunca vi uma teta esguichando. As primas contavam como era. Eu repetia no colégio, quando as férias acabavam. Mentira de criança com vergonha de ser covarde. E às seis da manhã, nas férias de todos os anos, as vacas continuavam me pondo para correr. Porque eu tinha medo delas. E elas pensando que meu medo era rejeição. Não era. Aliás, nem sei se as vacas pensam ou se agem por impulso. A que correu atrás de mim devia pensar.  E tinha olhos lindos. Imensos. Com um olho daqueles, com aqueles cílios enormes eu ia fazer um estrago por aí. No agora. Mas isso foi antes. Quando eu era menina. Quando tinha o pastinho às seis da manhã e eu fazia questão de me levantar cheia de sono e me vestir e prender o cabelo e caminhar até o fim do asfalto da rua que ia dar no caminho de terra. A terra era a fronteira do pastinho. Elas prosseguiam. As primas. E eu ficava. Primeiro, indecisa, vendo as caras de muxoxo, ouvindo os comentários sussurrados: "Bobona! Covarde! Menina de cidade!". Depois, com medo. Medo de ser bobona. Daí o olhar mergulhado no choro me prendia por lá uns 5, 10 minutos, vendo as primas corajosas irem descendo pelo caminho de terra até o curral. Então, meus passos apressados retornavam à cozinha da casa da tia, sem leite tirado na hora. Amanhã eu vou, juro que vou. Nunca fui. É triste ser covarde. Continuo com medo de vaca. E não tomo leite. Impliquei. Leite é meu atestado de covardia. Só sinto é falta do tentar. Daquele levantar às seis da manhã, daquele achar que ia poder, que dava conta. Sinto falta de invejar aqueles olhos grandes com cílios imensos. De chegar até a fronteira do asfalto, pensar, chorar e dar meia-volta. Jurando que ia voltar. E voltava. Sinto falta de enfrentar uma vaca por dia.


Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.

2 comentários

Tatiana disse...

Irretocável. Corajoso é escrever sobre o medo, num mundo de leite morno para poucos...rs.

Cinthia Kriemler disse...

Tati, linda! Obrigada!