Precisa-se
de uma vaca por dia
E lá vamos nós sair para o pastinho. Seis da manhã,
friozinho de seis da manhã e a gente vestida de calça comprida, blusinha e
casaco, cabelo preso em rabo de cavalo, franjinha de índio e olhos de sono
interrompido ― olhos de seis da manhã. No pastinho tem vaca. A vaca que vai dar
leite morno tirado na hora. O gosto é diferente do leite da garrafa de vidro.
Elas dizem que é. Minhas primas. E eu posso jurar que é. Mas não sei. Nunca
tomei. E lá vamos nós, de novo, caminhando para o pastinho. Mas eu nunca chego.
Tenho medo de vaca. Elas sabem. As vacas. Uma já correu atrás de mim. Acho que
queria muito me mandar embora. Alguma coisa do tipo "menina medrosa não
merece o leite morno das minhas tetas". Nem das tetas das parentes. Eu
nunca vi uma teta esguichando. As primas contavam como era. Eu repetia no
colégio, quando as férias acabavam. Mentira de criança com vergonha de ser
covarde. E às seis da manhã, nas férias de todos os anos, as vacas continuavam
me pondo para correr. Porque eu tinha medo delas. E elas pensando que meu medo
era rejeição. Não era. Aliás, nem sei se as vacas pensam ou se agem por
impulso. A que correu atrás de mim devia pensar. E tinha olhos lindos. Imensos. Com um olho
daqueles, com aqueles cílios enormes eu ia fazer um estrago por aí. No agora.
Mas isso foi antes. Quando eu era menina. Quando tinha o pastinho às seis da
manhã e eu fazia questão de me levantar cheia de sono e me vestir e prender o
cabelo e caminhar até o fim do asfalto da rua que ia dar no caminho de terra. A
terra era a fronteira do pastinho. Elas prosseguiam. As primas. E eu ficava.
Primeiro, indecisa, vendo as caras de muxoxo, ouvindo os comentários
sussurrados: "Bobona! Covarde! Menina de cidade!". Depois, com medo.
Medo de ser bobona. Daí o olhar mergulhado no choro me prendia por lá uns 5, 10
minutos, vendo as primas corajosas irem descendo pelo caminho de terra até o
curral. Então, meus passos apressados retornavam à cozinha da casa da tia, sem
leite tirado na hora. Amanhã eu vou, juro que vou. Nunca fui. É triste ser
covarde. Continuo com medo de vaca. E não tomo leite. Impliquei. Leite é meu
atestado de covardia. Só sinto é falta do tentar. Daquele levantar às seis da
manhã, daquele achar que ia poder, que dava conta. Sinto falta de invejar
aqueles olhos grandes com cílios imensos. De chegar até a fronteira do asfalto,
pensar, chorar e dar meia-volta. Jurando que ia voltar. E voltava. Sinto falta
de enfrentar uma vaca por dia.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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2 comentários
Irretocável. Corajoso é escrever sobre o medo, num mundo de leite morno para poucos...rs.
Tati, linda! Obrigada!
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