Sponsor

AD BANNER

Últimas Postagens

Só para fumantes [Vanessa Ferrari]

Só para fumantes


Que me perdoem os assépticos, os puristas e o Ministério da Saúde. E também os alérgicos, os não compulsivos e os higienistas, mas a verdade nua e crua é que fumar é muito bom. Se Deus realmente existisse os prazeres não teriam custo, o cigarro não daria chiado no peito e só os perversos morreriam de enfisema pulmonar.

Eu fumei por muitos anos e agora não fumo mais. Não me orgulho de ter fumado, tampouco me orgulho de ter parado. Simplesmente parei porque assim me pareceu melhor, porque todo viciado leva até onde dá o seu romance com o tabaco. E como todo romance é terreno fértil para a miséria humana, posso dizer que tive lá os meus momentos.

Na literatura nunca celebramos o tabaco como já fizemos com o álcool. Quem disse isso foi Julio Ramón Ribeyro, no seu excelente Só para fumantes. Ele conta que na dureza extrema catou guimbas no chão, comprou cigarro fiado, a granel, fumou as piores marcas, topou qualquer emprego só para manter o vício. E fumou no banheiro do hospital nas inúmeras internações a que foi submetido (por causa do cigarro). E mentia para o médico, e enganava a mulher. Só para fumantes não é, no entanto, uma crônica da autocomiseração nem um acerto de contas com o próprio vício. Ainda bem. O que ele fez foi um relato amoral da relação de um fumante com o cigarro.

Mas agora, ao que tudo indica, os tempos são outros. A vida está repleta de saúde e bem-estar. E já que estamos varrendo o mal do mundo, e bebendo litros de água, e torcendo o nariz para as frituras, eu me pergunto se temos um plano mais convincente sobre o que fazer com a própria vida. Porque salvo raras exceções, os defeitos que na juventude eram até bonitinhos vão se tornando constrangedores, e os recalques vão se acumulando num relicário de fardos, fardos que se tornam tiques no corpo, corpo que agora rateia e carrega visíveis marcas de uso.

Na maturidade as pessoas falam sozinhas, são um tanto céticas e têm muitas certezas. E também nutrem certo fastio pela família. Depois de décadas de convívio, cada um atuando em seu papel imutável, promovem encontros ocasionais por automatismo ou porque simplesmente parece impossível se opor a eles. Com o tempo, na melhor das hipóteses, entristecemos. Na pior, ganhamos um olhar vidrado de espanto.

Sandór Márai, autor de As brasas, se suicidou aos 89 anos. A morte dele sempre me impressionou, não pelo suicídio em si, mas porque ele foi construindo essa ideia ao longo dos anos, aos poucos, assim como os seus romances. E não havia nessa arquitetura da morte nenhum indício de que ele quisesse ferir alguém. Somado a isso, um suicídio nessa idade é, por si só, algo inesperado, como se houvesse uma faixa etária adequada para tirar a própria vida. No entanto, ao ler o seu diário, em que ele narra os últimos anos de vida, tudo faz sentido.

Sua mulher e todos os amigos estavam mortos, ele era um exilado nos EUA e assistia impotente à sua cegueira progressiva. Deixara de viajar, a única e verdadeira paixão de sua vida. Não havia mais “viajar como uma aproximação sensual do mundo, no sentido de Ulysses”. Não escrevia mais, mal conseguia ler. Fumava apenas dez cigarros por dia e bebia pouco.

Não me parece que Márai tenha tido uma vida especialmente alegre ou triste. A sua morte não tem nada a ver com as coisas que viveu mas com aquelas que não conseguia mais fazer. Sobre o seu aniversário de 85 anos disse: “Meu octogésimo quinto aniversário não me causa alegria alguma porque, apesar de estar vivo, não me lembro do que é bom ou ruim. Só sinto que estou muito cansado”.

Agora que parei de fumar é possível que eu chegue aos 85 anos. É possível também que eu chegasse nessa idade fumando. E, nessa hora, ter sido fumante ou não fumante, ter se inclinado politicamente mais para a direita ou para a esquerda, ter sido a favor ou contra o suicídio, entre outras tantas convicções do cotidiano, provavelmente represente muito pouco diante do fato de que com sorte (ou azar) estaremos todos, em algum momento, muito cansados.


Vanessa Ferrari é editora da Penguin-Companhia e mediadora do clube de leitura na Penitenciária Feminina de Sant’Ana. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.



Nenhum comentário