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Sua fachada está vazando [Denise Fraga]

Sua fachada está vazando

Meu vizinho pintou sua fachada de azul calcinha.

Pra quem não sabe, azul calcinha é um azul horrível. Azul de calcinha barata, que se compra de baciada. É um azul que não existe e, por isso mesmo, quando alguém resolve fazê-lo existir, é bom que o faça com parcimônia porque pode ser difícil de aguentar.

Pois meu vizinho quis que sua fachada existisse dentro da minha sala. Seu azul impossível ocupa agora boa parte da minha vidraça.

Sua atitude me fez voltar ao quintal da minha infância, que eu vi ser sombreado por um gigante cinza que foi surgindo atrás do abacateiro.


Eu era menina, mas me lembro muito bem de pensar no injusto direito que aquele homem, o construtor do prédio, teria sobre o nosso sol.

Será que existe alguma lei que proteja nosso lugar ao sol? E nosso campo de visão?

Sento para comer sempre na mesma cadeira e, levantando a cabeça do prato, dou agora de cara com o azul calcinha. Posso tocar a campainha e dizer "sua cor está vazando na minha sala" ou é melhor engoli-la a cada garfada?

Quem protege o nosso gosto das fachadas pintadas ao bel prazer? Sempre fui muito ligada no visual. Sou do tipo que levanta da cadeira pra ajeitar um objeto na estante. Fiz comunicação visual na faculdade e me pego em reformas visuais até olhando pelas janelas dos táxis.

Me desculpem a heresia, mas tenho sérias restrições ao projeto Cidade Limpa. Confesso que preferia ver a Gisele Bündchen a tapumes, canos, retalhos de reboco e novelos elétricos. Não temos fachadas preparadas pra tanta "limpeza".

O descaso com nosso campo visual vem de muitos anos e de pérolas arquitetônicas jogadas ao chão. Se a Gisele estivesse escondendo uma delas, até tudo bem, mas diante de tais corredores cinzentos e mal acabados, morro de saudades do "Times Square" da Consolação.

Engulo o azul calcinha, pensando na linda luminária que minha sala ganha quando acendem a torre da Doutor Arnaldo.

Um raro presente do descaso.



Denise Fraga é atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo). Escreve a cada duas semanas na versão impressa do caderno sãopaulo

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