Leia conto inédito em português da Nobel de
Literatura Alice Munro
SOBRE O
TEXTO "O Olho", o conto reproduzido abaixo, integra a mais recente
coletânea de Alice Munro, premiada com o Nobel de Literatura na última quinta.
O conto é um dos quatro escritos de inspiração autobiográfica com que a
escritora canadense encerra "Querida Vida", volume de 2012 que a
Companhia das Letras lança em novembro.
*
Quando eu
tinha cinco anos, de repente meus pais apareceram com um menininho, que minha
mãe disse que era o que eu sempre quisera. De onde ela tirou essa ideia eu não
sei. Ela deu uma bela enfeitada naquilo, tudo inventado, mas difícil de
contrariar.
Aí um ano
depois apareceu uma menininha, e de novo foi uma balbúrdia, mas menos que da
primeira vez.
Até a época
do primeiro bebê, eu não me lembro de ter sentido algo diferente do que aquilo
que a minha mãe dizia que eu estava sentindo. E até aquela época, a casa toda
era tomada pela minha mãe, pelos passos dela, pela sua voz, por aquele cheiro
poeirento, mas funesto que ocupava todos os cômodos mesmo quando ela não estava
dentro deles.
Por que eu
digo funesto? Eu não tinha medo. Não é que a minha mãe me dissesse exatamente
como eu devia me sentir a respeito das coisas. Ela era uma autoridade no
assunto, isso nem se questionava. Não só no caso de um irmão mais novo, mas
também quanto ao cereal Red River, que me fazia bem e de que, portanto, eu
devia gostar. E quanto à minha interpretação do quadro que ficava no pé da
minha cama, que mostrava Jesus tolerando que as criancinhas viessem até ele.
Tolerar significava outra coisa naquele tempo, mas não era nisso que a gente se
concentrava. Minha mãe apontava a menininha meio escondida num canto porque
queria ir até Jesus, mas era tímida demais para isso. Aquela era eu, minha mãe
dizia, e eu achava que era, mas não teria entendido isso sem ela me dizer e na
verdade preferia que não fosse assim.
O que me
deixava tristíssima mesmo era a Alice no país das maravilhas imensa e presa no
buraco do coelho, mas eu ria, porque a minha mãe parecia estar adorando.
Mas foi com
a chegada do meu irmão e com aquele falatório todo sobre como ele era um tipo
de presente pra mim que eu comecei a aceitar o quanto as certezas que minha mãe
tinha a meu respeito diferiam das minhas próprias.
Acho que
isso tudo estava me preparando para o momento em que a Sadie veio trabalhar
para nós. Minha mãe tinha se recolhido para sabe-se lá qual território que ela
ocupava com os bebês. Sem ela por ali o tempo todo, eu podia pensar no que era
verdade e no que não era. Eu já sabia o suficiente para não falar dessas coisas
com ninguém.
A coisa mais
estranha da Sadie -apesar de não ser muito comentada lá em casa- era que ela
era uma celebridade. A nossa cidade tinha uma rádio onde ela tocava violão e
cantava o tema de abertura da programação, que ela mesma tinha composto.
"Olá,
olá, olá, todo mundo...".
E meia-hora
depois era, "A-deus, a-deus, a-deus, todo mundo." Entre um e outro,
ela cantava músicas que as pessoas pediam e também algumas que ela mesma
escolhia. As pessoas mais sofisticadas da cidade tendiam a rir das músicas dela
e da rádio toda, que diziam que era a menor do Canadá. Essas pessoas escutavam
uma estação de Toronto que transmitia canções populares da época - "Three
little fishes and a mommy fishy too..." - e Jim Hunter berrando as
desesperadas notícias da guerra. Mas as pessoas das fazendas gostavam da rádio
local e daquelas canções que a Sadie cantava. A voz dela era forte e triste e
ela cantava sobre a solidão e a dor.
Apoiada na
cerca fria
De um curral
imenso
Olhando pela
trilha ao fim do dia
É só em você
que eu penso
Quase todas
as fazendas daquele canto do país tinham sido desmatadas e ocupadas havia coisa
de cento e cinquenta anos, e de quase qualquer casa de fazenda dava para
avistar outra casa de fazenda a poucos pastos de distância. Ainda assim, as
músicas que os fazendeiros queriam ouvir falavam todas de vaqueiros solitários,
do encanto e da decepção de lugares distantes, dos crimes horrorosos que faziam
criminosos morrerem com o nome da mãe nos lábios, ou o de Deus.
Era isso que
a Sadie cantava com tanto sentimento num tom de contralto encorpado, mas
trabalhando com a gente ela era cheia de energia e de confiança, gostava de
conversar e em especial de conversar sobre si própria. Normalmente não tinha
ninguém para ouvir o que ela dizia, só eu. As ocupações dela e as da minha mãe
as mantinham separadas quase o tempo todo e de qualquer forma eu acho mesmo que
elas não teriam gostado de conversar. Minha mãe era uma pessoa séria, como já
insinuei, que tinha dado aulas na escolinha antes de dar aulas para mim. Talvez
ela tivesse gostado se a Sadie fosse alguém que ela pudesse ajudar, ensinando a
não dizer "Cês quer". Mas a Sadie não dava muitos indícios de querer
ajuda de quem quer que fosse, ou de querer falar de um jeito diferente de como
sempre falara.
Depois da
ceia, que era a refeição do meio-dia, a Sadie e eu ficávamos sozinhas na
cozinha. Minha mãe aproveitava para tirar uma soneca e, se estivesse num dia de
sorte, os bebês dormiam também. Quando ela acordava, punha um vestido
diferente, como se estivesse esperando uma tarde tranquila, mesmo que
seguramente fosse haver mais fraldas para trocar e também mais daquela
atividade desagradável que eu me esforçava para não ver, a menorzinha chupando
um peito dela.
Meu pai
também tirava uma soneca -talvez uns quinze minutos na varanda com o
"Saturday Evening Post" cobrindo a cara antes de voltar para o
celeiro.
A Sadie
esquentava água no fogão e lavava a louça, com a minha ajuda e com as persianas
baixadas para não deixar entrar o calor. Quando a gente acabava, ela esfregava
o chão e eu secava, com um método que eu tinha inventado - patinando de um lado
para outro com panos de chão nos pés. Aí a gente retirava as espirais de papel
pega-mosca amarelo e grudento que tinham sido colocadas depois do café da manhã
e que àquela altura já estavam pesadas, cheias de moscas pretas mortas ou que
zumbiam quase mortas, e pendurava as espirais novinhas, que estariam cheias das
recém-mortas na hora do jantar. Tudo isso enquanto a Sadie me falava da vida
dela.
Nessa época
eu não conseguia julgar com facilidade a idade dos outros. As pessoas eram
crianças ou adultas e eu achava que ela era adulta. Talvez ela tivesse
dezesseis, talvez dezoito ou vinte anos. Fosse qual fosse sua idade, ela
anunciou mais de uma vez que não estava com pressa de casar.
Frequentava
bailes todo fim de semana, mas ia sozinha. Sozinha e só para si, dizia.
Ela me falou
dos salões de baile. Tinha um na cidade, perto da rua principal, onde ficava a
pista de curling no inverno. Você pagava um dime por uma dança, aí subia e
dançava numa plataforma com as pessoas te encarando em volta, mas não que ela
se incomodasse com isso. Ela sempre gostava de pagar ela mesma o seu dime, para
não ficar em dívida. Mas às vezes um sujeito chegava antes dela. Ele perguntava
se ela queria dançar e a primeira coisa que ela dizia era, E você sabe? Você
sabe dançar? ela perguntava, seca. Aí ele dava uma olhada esquisita pra ela e
dizia que sim, como quem quer dizer senão por que eu estaria aqui? E no fim o
que ele chamava de dança em geral era um arrasta-pé com aquelas mãozonas
carnudas agarrando a Sadie. Às vezes ela simplesmente deixava o sujeito ali
perdido, saía dançando sozinha - que era o que ela gostava mesmo de fazer,
afinal. Ela terminava a dança, que já estava paga, e se o camarada que pegava o
dinheiro reclamasse e quisesse obrigá-la a pagar por dois quando ela era uma
só, ela dizia para ele parar com isso. Eles podiam ficar todos rindo dela
dançando sozinha se quisessem.
O outro
salão de baile ficava logo na saída da cidade, na estrada. Lá você pagava na
porta, e não era por uma dança, mas pela noite toda. O nome do lugar era
Royal-T. Ela também pagava sozinha, ali. Normalmente tinha uma classe melhor de
dançarinos, mas mesmo assim ela tentava dar uma olhada para ver como eles se
viravam antes de deixar que a tirassem para dançar. Em geral eram uns sujeitos
da cidade enquanto que os do outro salão eram mais country. Com passos melhores
- os da cidade - mas não era sempre com os passos que você tinha que se preocupar.
Era com onde eles queriam segurar. Às vezes ela tinha que mandar eles pastarem
e dizer o que ia fazer com eles se não parassem com aquilo. Ela deixava bem
claro que tinha ido ali dançar e tinha pagado ela mesma. Além de tudo ela sabia
onde acertar uma pancada. Aquilo deixava eles bem certinhos. Às vezes eram bons
de dança e ela conseguia se divertir. Aí quando tocavam a última dança ela
corria direto pra casa.
Ela não era
como as outras, dizia. Ela não queria ser fisgada.
Fisgada.
Quando ela dizia isso, eu via um anzol imenso descendo, com umas criaturinhas
malvadas na ponta te enganchando de um jeito que você nunca mais poderia sair.
A Sadie deve ter visto algo assim no meu rosto porque disse para eu não ficar
com medo.
"Você
não -precisa ter medo de nada nesse mundo, só se cuide."
"Você e
a Sadie vivem conversando," minha mãe disse.
Eu sabia que
viria alguma coisa que merecia cuidado, mas não sabia o quê.
"Você
gosta dela, né?"
Eu disse que
sim.
"Bom,
claro que gosta. Eu também gosto."
Eu torci
para aquilo ter acabado e por um momento pensei que tinha mesmo.
Aí,
"Você e eu não ficamos muito juntas agora que a gente teve os nenês.
Eles
não deixam muito tempo pra gente, né?
"Mas a
gente ama os nenês, né?"
Disse logo que sim.
Ela disse,
"De verdade?"
Ela não ia
parar se eu não dissesse de verdade, então eu disse.
*
Minha mãe
queria muito alguma coisa. Será que eram boas amigas? Mulheres que jogavam
bridge e tinham maridos que iam trabalhar de terno com colete? Não exatamente,
e nem adiantava esperar por isso mesmo. Será que era eu como eu era
antigamente, com os cachinhos no cabelo que eu não me incomodava de ficar bem
quietinha enquanto ela ajeitava, ou o catequismo que eu fazia direitinho? Ela
não tinha mais tempo para cuidar dessas coisas agora. E uma parte de mim estava
ficando traiçoeira, embora ela não soubesse por quê, e eu também não sabia. Eu
não tinha feito amigos da cidade na catequese. Em vez disso, eu idolatrava a
Sadie. Ouvi minha mãe dizer para o meu pai. "Ela idolatra a Sadie."
Meu pai
disse que a Sadie era um presente de deus. O que isso queria dizer? Ele parecia
animado. Talvez quisesse dizer que não ia defender nem uma nem outra.
"Eu
queria que a gente tivesse calçadas decentes para ela," minha mãe disse.
"Talvez se a gente tivesse calçadas decentes ela aprendesse a patinar e
fizesse uns amigos."
Eu queria
mesmo ter patins. Mas agora, sem saber por quê, eu sabia que nunca ia admitir
que queria.
Aí minha mãe
disse alguma coisa sobre ficar melhor quando as aulas começassem. Algo sobre eu
ficar melhor ou algo a respeito da Sadie que ia ficar melhor. Eu não queria
ouvir.
A Sadie
estava me ensinando umas músicas dela e eu sabia que eu não cantava muito bem.
Eu torcia para não ser aquilo o que tinha que ficar melhor ou acabar. Eu não
queria, de verdade, que aquilo acabasse.
Meu pai não
tinha muito pra dizer. Eu era problema da minha mãe, a não ser mais tarde
quando acabei ficando bem boca-suja e tinha que ficar de castigo. Ele estava
esperando meu irmão ficar mais velho e passar a ser problema dele. Menino não
tinha como ser tão complicado.
E claro que
o meu irmão não foi. Ele cresceu bem tranquilo.
*
Agora as
aulas começaram. Começaram tem umas semanas, antes de as folhas ficarem
vermelhas e amarelas. Agora elas tinham quase todas ido embora. Eu não estou
com o meu casaco da escola, mas com o melhor, aquele com os debruns de veludo
escuro no punho e no colarinho. Minha mãe está com o casaco que ela usa para ir
à igreja, e com um turbante que cobre quase todo o cabelo dela.
Minha mãe
está dirigindo para sabe-se lá onde é que nós estamos indo. Ela não dirige
muito, e sua direção é sempre mais solene e no entanto mais incerta que a do
meu pai. Ela buzina em tudo quanto é esquina.
"Isso,"
ela diz, mas leva um tempo para colocar o carro na vaga.
"Então
chegamos." Aparentemente, a voz dela quer ser encorajadora. Ela encosta na
minha mão para me dar uma chance de segurar a dela, mas eu finjo que não percebo
e ela tira a mão.
A casa não
tem jardim nem calçada. É bacana, mas meio feia. Minha mãe ergueu a mão
enluvada para bater na porta mas no fim nem precisamos. Abrem para nós. Minha
mãe acabou de começar a me dizer alguma coisa encorajadora - alguma coisa meio,
Vai ser mais rápido do que você pensa - mas ela não termina. O tom em que ela
falou comigo foi algo severo, mas levemente tranquilizador. Ele muda quando
abrem a porta e vira uma coisa mais contida, mais baixinha, como se ela
estivesse curvando a cabeça.
A porta foi
aberta para um pessoal sair, e não só para a gente entrar. Uma das mulheres que
estão saindo fala por sobre o ombro com uma voz que não passa nem perto de
tentar ser suave.
"É para
ela que a moça trabalhava, e para a menininha ali."
Aí uma
mulher que está vestida bem elegante vem falar com a minha mãe e ajuda a tirar
o casaco dela. Isso feito, minha mãe tira o meu casaco e diz para a mulher que
eu gostava especialmente da Sadie. Ela espera que seja tudo bem ter me trazido.
"Ah,
coitatinha," a mulher diz e a minha mãe encosta de levinho em mim para me
fazer dizer oi.
"A
Sadie adorava criança," a mulher disse. "Adorava mesmo."
Eu percebo
que tem mais duas crianças ali. Meninos. Eu conheço os meninos da escola, sendo
um deles da primeira série, comigo, e o outro mais velho. Eles estão espiando
lá de onde provavelmente é a cozinha. O mais novo está enfiando um biscoito
inteirinho na boca de um jeito cômico e o outro, mais velho, está fazendo uma
cara de nojo. Não para o enfiador de biscoito, mas para mim. Eles me odeiam,
claro. Os meninos ou te ignoravam quando te encontravam num lugar que não fosse
a escola (eles te ignoravam lá também) ou faziam essas caretas e te xingavam de
uns nomes horrorosos. Quando eu tinha que chegar perto de um deles eu travava e
não sabia o que fazer. Claro que era diferente quando tinha gente adulta por
perto. Esses meninos ficaram quietos, mas eu me senti um pouquinho mal até
alguém puxar os dois para dentro da cozinha. Aí eu me dei conta da voz
especialmente delicada e interessada da minha mãe, mais educada até que a da
porta-voz com quem ela estava falando, e pensei que talvez a careta tivesse
sido para ela. Às vezes as pessoas imitavam a voz dela quando ela ia me chamar
na escola.
A mulher com
quem ela estava falando e que parecia ser a encarregada de tudo ali estava
levando a gente para uma parte da sala onde um homem e uma mulher estavam
sentados num sofá, com cara de quem não estava entendendo bem por que estava
ali. Minha mãe se abaixou e falou com eles de um jeito muito respeitoso e me
apontou para os dois.
"Ela
gostava demais da Sadie," ela disse. Eu sabia que era para eu dizer alguma
coisa nessa hora, mas antes que eu conseguisse a mulher sentada ali explodiu
num urro. Ela não olhou para nenhuma de nós duas e o som que ela fazia parecia
o som que você faz quando algum animal te morde ou te rói. Ela batia nos braços
como se estivesse tentando se livrar daquela coisa, mas a coisa não ia embora.
Ela olhava para a minha mãe como se a minha mãe fosse a pessoa que tinha que
fazer alguma coisa para resolver aquilo.
O velho
disse para ela se acalmar.
"Está
sendo muito duro para ela," disse a mulher que estava conduzindo a gente.
"Ela não sabe o que está fazendo." Ela se curvou ainda mais e disse,
"Ai-ai-ai, você vai assustar a menininha".
"Vai
assustar a menininha," o velho disse obediente.
Quando ele
terminou de dizer isso, a mulher não estava mais fazendo aquele barulho e dava
tapinhas nos braços arranhados como se não soubesse o que tinha acontecido com
eles.
Minha mãe
disse, "Coitada."
"E
também filha única," disse a guia. Para mim ela disse, "Não se
incomode."
Eu estava
incomodada, mas não com os urros.
Eu sabia que
a Sadie estava em algum lugar e eu não queria vê-la. Minha mãe não tinha
chegado a dizer de fato que eu ia ter que ver, mas também não tinha dito que
não.
A Sadie
tinha morrido voltando do salão de bailes Royal-T. Tinha sido atropelada por um
carro naquela estradinha de pedra entre o estacionamento lá do salão e o começo
da calçada de verdade da cidade. Ela devia estar correndo como sempre, e com
certeza achou que dava para os carros verem que ela estava ali, ou que ela
tinha tanto direito de estar ali quanto eles, e talvez o carro atrás dela tenha
dado uma guinada ou talvez ela não estivesse bem onde achava que estava. Ela
foi pega por trás. O carro que a atropelou estava saindo da frente do carro que
vinha atrás, e esse segundo carro estava tentando fazer o primeiro entrar numa
rua da cidade. O pessoal tinha bebido no salão, apesar de não ter bebida à
venda lá dentro. E sempre tinha gente buzinando e gritando e saindo rápido
demais quando a dançaria acabava. A Sadie apressada sem nem ter farol ia agir
como se os outros é que tivessem que sair da frente dela.
"Uma
menina sem namorado indo nos bailes a pé," disse a mulher que continuava
sendo simpática com a minha mãe. Ela falou bem baixinho e minha mãe murmurou
alguma coisa lamentosa.
Era pedir
para alguma coisa dar errado, a mulher simpática disse mais baixo ainda.
Eu tinha
ouvido umas conversas em casa que não tinha entendido. Minha mãe queria que
fizessem alguma coisa que possivelmente tinha a ver com a Sadie e o carro que a
atropelou, mas meu pai disse para ela deixar de lado. A gente não tem nada que
se meter com as coisas da cidade, ele disse. Eu nem tentei entender isso tudo
porque estava tentando nem pensar na Sadie, muito menos no fato de ela estar
morta. Quando eu percebi que a gente estava indo para a casa da Sadie eu quis
não ir, mas não vi jeito de escapar a não ser me comportando de um jeito
imensamente feio.
Agora,
depois do ataque da mulher, parecia que a gente podia dar meia-volta e ir para
casa. Eu nunca ia ter que admitir a verdade, e a verdade era que eu me mordia
de medo de qualquer cadáver.
Bem quando
pensei que isso podia ser possível, ouvi minha mãe e a mulher com quem agora
ela parecia estar tramando alguma coisa falarem do pior de tudo.
Ver a Sadie.
Sim, minha
mãe estava dizendo. Claro, a gente tem que ver a Sadie.
Sadie morta.
Eu tinha ficado
com os olhos bem abaixadinhos, vendo quase nada além daqueles dois meninos que
mal eram mais altos que eu, e os velhos que estavam sentados. Mas agora minha
mãe estava me levando pela mão em outra direção.
Tinha um
caixão na sala o tempo todo mas eu estava achando que era outra coisa. Por
causa da minha falta de experiência eu não sabia exatamente a cara de uma coisa
dessas. Uma prateleira de acomodar flores, aquele objeto de que a gente estava
se aproximando podia ser, ou um piano fechado.
Talvez as
pessoas que estavam em volta tivessem dado algum jeito de disfarçar o tamanho e
o formato e a função real daquilo. Mas agora as pessoas estavam respeitosamente
abrindo caminho e minha mãe falou com uma nova voz, muito baixinha.
"Agora,
vem" ela me disse. A delicadeza dela me soou odiosa, triunfante.
Ela se
abaixou para olhar meu rosto, e isso, eu tinha certeza, era para evitar que eu
fizesse exatamente o que tinha acabado de me ocorrer - ficar com os olhos bem
apertados. Aí ela desviou o olhar de mim mas ficou com minha mão bem presa na
sua. Eu acabei conseguindo baixar as pálpebras assim que ela tirou os olhos de
mim, mas não fechei até o fim por medo de tropeçar ou de que alguém me
empurrasse bem para onde eu não queria ir. Pude ver só um borrão das flores
rígidas e o brilho da madeira envernizada.
Aí eu ouvi
minha mãe fungando e senti que ela se afastava. A bolsa dela se abriu com um
estalo. Ela tinha que pôr a mão lá dentro, então me soltou um pouco e eu
consegui me libertar. Ela estava chorando. Foi ela ter que cuidar das lágrimas
e da fungadeira que me deixou escapar.
Olhei bem
para o caixão e vi a Sadie.
O acidente
tinha poupado o pescoço e o rosto dela, mas eu não vi tudo isso de uma vez. Só
tive a impressão geral de que nada nela estava tão feio quanto eu tinha temido.
Fechei os olhos bem rápido, mas percebi que não conseguia evitar olhar de novo.
Primeiro a almofadinha amarela que estava embaixo do pescoço dela e que também
dava um jeito de cobrir a garganta e o queixo e a bochecha que eu podia ver com
facilidade. O truque era ver um pouquinho dela depressa, aí voltar para a
almofada, e na próxima vez dar conta de mais um pouquinho que não desse medo. E
aí era a Sadie, ela toda ou pelo menos tudo que eu podia esperar ver do lado
que estava à mostra.
Alguma coisa
se mexeu. Eu vi, a pálpebra dela que estava do meu lado mexeu. Não estava
abrindo ou abrindo pela metade, nada assim, mas erguendo só um nadinha como que
para permitir, se você fosse ela, se você estivesse lá dentro dela, que você
conseguisse enxergar por entre os cílios. Só para distinguir talvez o que era
claro lá fora e o que era escuro.
Eu não
fiquei surpresa na hora e nem um pouco assustada. Imediatamente, essa visão se
encaixou em tudo que eu sabia da Sadie e de alguma maneira, também, no que quer
que a experiência me reservasse de especial. E eu nem sonhei em chamar a
atenção de mais alguém para o que estava ali, porque não era para eles, era
completamente para mim.
Minha mãe
tinha pegado a minha mão de novo e disse que estava na hora de a gente ir.
Falaram mais umas coisas, mas antes que qualquer tempo passasse, pelo que me
pareceu, a gente já estava lá fora.
Minha mãe
disse, "Parabéns." Ela deu um apertão na minha mão e disse,
"Então. Passou." Ela teve que parar para conversar com mais alguém
que estava chegando na casa, e aí a gente entrou no carro para voltar pra casa.
Passou pela minha cabeça que ela ia gostar que eu dissesse alguma coisa, ou
quem sabe até que eu contasse alguma coisa para ela, mas não falei nada.
Nunca mais
houve uma ocorrência desse tipo e na verdade a Sadie desapareceu bem depressa
da minha memória, com o choque da escola, onde eu acabei dando algum jeito de
me virar com uma estranha mistura de viver morta de medo e viver me exibindo. A
bem da verdade um pouco da importância dela tinha desaparecido naquela primeira
semana de setembro quando ela disse que tinha que ficar na casa dela agora para
cuidar do pai e da mãe, então ela não ia mais trabalhar para nós.
E aí minha
mãe descobriu que ela estava trabalhando na loja de laticínios.
Mas mesmo
assim, por bastante tempo, quando eu pensava nela, eu nunca questionava o que
eu achava que me tinha sido revelado. Bem, bem depois disso, quando eu não
estava mais nada interessada em feitos sobrenaturais, eu ainda mantinha em
mente que uma coisa daquelas tinha acontecido. Só que eu simplesmente
acreditava, como você pode acreditar e na verdade até lembrar que um dia teve
dentes de leite, desaparecidos hoje, mas mesmo assim reais. Até que um dia, um
dia quando eu talvez já estivesse na adolescência, eu soube como que com um
buraco esquisito nas entranhas que agora já não acreditava mais.
ALICE MUNRO,
82, é escritora canadense, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2013.
Publicou, entre outros, "Felicidade Demais"e "O Amor de uma Boa
Mulher", ambos pela Companhia das Letras.
CAETANO W.
GALINDO, 40, é tradutor e professor da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Paraná.
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