Psicanálise e Literatura: Diálogos Necessários*
* Texto que apresentei durante o Seminário de Christian
Dunker no Instituto de Psicologia da USP, dia 17/10/2013
Reiteradas vezes temos ouvido falar da importância do
diálogo entre a Psicanálise e a Literatura. Esta relação para nós psicanalistas
se tornou tão óbvia que esquecemos, por vezes, de pensar em suas causas. Certa
vez uma amiga de outra área me perguntou por que havia tanta possibilidade de
conexão entre as duas. Esta pergunta moveu do lugar aquilo que parecia ocupar
uma posição de obviedade, e me coloquei a pensar nas relações. Desde Freud, a
teoria psicanalítica tem sido elaborada com a constante recorrência a textos
literários: Jensen (Gradiva); Sófocles (Édipo), que dá nome ao famoso complexo;
Dostoievski (Irmãos Karamazov); Hoffmann (O homem da areia); Goethe; Schiller;
Shakespeare; dentre outros. Em Lacan encontramos Marguerite Duras (O
arrebatamento de Lol V. Stein - ela escreve sobre o que ele ensina);
Shakespeare (Hamlet, O mercador de Veneza); Racine (A tragédia de Athalie);
Paul Claudel; André Gide; Allan Poe; Rimbaud; James Joyce.
Para a psicanálise, a literatura foi e ainda tem sido
material necessário para as produções teóricas. Freud, como admirador da
literatura, reconhecia na fala de seus pacientes, os grandes dramas humanos
contados por obras literárias. Sua escrita teórica traz a marca desta relação
com a literatura, pois aos 74 anos recebeu o prêmio literário Goethe, da cidade
de Frankfurt. Depois de pensar em tudo isso, pude responder à questão da minha
amiga “Porque há tantas conexões entre psicanálise e literatura?”. Por que
ambas têm o mesmo material de base para suas criações: o humano com seus
desejos, suas paixões, suas tragédias, os dramas que se repetem, a loucura, a
morte e o medo do depois da morte, etc, ou seja, trata-se dos restos, daquilo
que a razão não coloca no centro de seu interesse. E não é isso o que ouvimos
em nossas clínicas? Por isso no texto A questão de uma análise leiga
(1926/2006), Freud propõe que a formação de um psicanalista inclua “a história
da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da
literatura” (p. 236). Deste modo, esta é uma das possibilidades de diálogo
entre a psicanálise e a literatura, um diálogo necessário. Para Pollo (2013),
“não é que a literatura ajude a psicanálise, é que uma, como a outra, são
feitas da mesma matéria prima, a que Freud deu o nome de desejo inconsciente”
(p. 4). E quais seriam as contribuições da psicanálise para a literatura?
Pensamos sempre no surrealismo como uma escola que foi grandemente influenciada
pela psicanálise, e temos também a escrita em “fluxo de pensamento”, que se
aproxima de uma livre associação de ideias. Este estilo pode ser encontrado nas
obras de Virginia Woolf, James Joyce, Clarice Lispector, dentre outros. Mas a
literatura já existia antes e não deixará de existir depois, quanto à
psicanálise, talvez não estejamos tão certos assim disso. Mas não podemos negar
que a psicanálise trouxe um novo paradigma, o descentramento da razão
cartesiana ao pensar numa razão inconsciente. Trata-se de uma contribuição para
a compreensão das mazelas humanas. O que não significa dizer que todos os
escritores se interessarão pela psicanálise.
Passamos a outra questão levantada por Freud,
trabalhada em seu texto Escritores Criativos e Devaneio (1908/2006), sobre o
processo de escrita criativa. O autor questiona sobre as raízes de uma criação
literária, curiosidade que, segundo ele, assola a todos com a pergunta que não
cala: De onde o autor tira inspiração para inventar histórias? Qual é o
material para as construções? “Como consegue impressionar-nos com o mesmo e
despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes?” (FREUD,
1908/2006, p. 135). Para responder à
primeira questão, ou seja, a partir de que material um autor cria, Freud nos
diz que é das fantasias infantis. Em geral os adultos se envergonham delas e as
escondem das outras pessoas, justamente por serem infantis e proibidas.
Entretanto, não basta narrar as fantasias, pois um simples relato não nos
causaria prazer, além de apresentar-se como algo causador de repulsa no outro.
É necessário algo mais na maneira de apresentar aquilo que julgamos ser seus
próprios devaneios, e é esse algo mais que nos causa prazer. Para Freud, o
segredo mais íntimo de um escritor é como ele consegue fazer isso. Seria algo
da ordem de um estilo, da estética.
A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso
sentimento de repulsa [...]. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios
egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer
puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas
fantasias. [...] a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária
procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte
desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em
diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou
vergonha. (FREUD, 1908/2006, p. 142-3).
Mas como falar cientificamente deste “segrego íntimo”
do escritor? Seria isso a sublimação? Transformar a fantasia fundamental em
algo compartilhável, ou melhor, socialmente aceitável? Será que um autor
escreve sempre com a intenção de que sua escrita seja aceita? Não nos
esqueçamos de que nem tudo cai imediatamente nas graças dos leitores. Um
exemplo disso é o livro Madamme Bovary, de Gustave Flaubert, que chegou a
levá-lo aos tribunais por ofender a moral e a religião. Diante da curiosidade
da época em saber quem era “Ema Bovary”, Flaubert responde apenas: “Madame
Bovary sou eu”. E quem irá dizer que não era? Para Lacan (1959-60/1991), o
aspecto sublimatório da arte é que se constrói algo a partir do nada, reparem
bem que eu disse DO nada e não DE nada. O nada, ou seja, o vazio, é que se
configura como sendo a base da produção artística para Lacan. Então, o material
da escrita criativa são os conteúdos inconscientes. Cito Manoel de Barros:
“Sou um sujeito cheio de recantos./Os desvãos me constam.”
(BARROS, 2010b, p. 339).
“Os delírios verbais me terapeutam.” (BARROS, 2010b, p.
339).
“Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que
são inventadas.” (BARROS, 2010b, p. 347).
Então, temos na escrita conteúdos de fantasias infantis
e proibidas, e há que se saber fazer com isso para que seja lido com enlevo.
Vejam outro exemplo:
Carrego meus primórdios num andor./Minha voz tem um
vício de fontes./Eu queria avançar para o começo./Chegar ao criançamento das
palavras./Lá onde elas ainda urinam na perna./Antes mesmo que sejam modeladas
pelas mãos./Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem./Pegar
no estame do som./Ser a voz de um lagarto escurecido./Abrir um descortínio para
o arcano.
Ou seja, a palavra tem que ir de volta às origens. Mas
a poesia não é pra ser explicada, é pra ser sentida. De acordo com Bento
(2004), “à semelhança de um espelho, a escrita permite ao homem pensar, mirar a
sua fratura.” (p. 210). Mas não basta mirar a fratura, os ditos traumas
infantis, há que se saber o que fazer com ela, ou ainda, a partir dela.
Pensando no que disse Manoel de Barros, se os delírios verbais terapeutam, de
que forma terapeutam? Isso significa que o prazer não é somente aquele sentido
pelo leitor, mas também, e talvez principalmente, de quem escreve. A escrita
comporta uma repetição, que nunca é do mesmo. A repetição é uma busca
incessante por algo perdido, e a cada vez que uma história escrita se repete,
há uma perda de gozo (conceito lacaniano). Seria isso o terapêutico? Mais uma
vez recorro ao poeta para buscar a resposta: “Repetir repetir – até ficar
diferente. Repetir é um dom do estilo.” (BARROS, 2010a, p. 300).
Assim como na escrita, em que há repetição, num
processo de análise o analisante se torna um escritor. Ou melhor, um
reescritor. Vejam como é no processo literário para Orham Pamuk:
O escritor é uma pessoa que passa anos tentando
descobrir com paciência um segundo ser dentro de si, e o mundo que o faz ser
quem é: quando falo de escrever, o que primeiro me ver à mente não é um
romance, um poema ou a tradição literária, mas uma pessoa que fecha a porta,
senta-se diante da mesa e, sozinha, volta-se para dentro; cercada pelas suas
sombras, constrói um mundo novo com as palavras. (2007, p. 12-3, grifo nosso).
Para Manoel de Barros: “Pelos meus textos sou mudado
mais do que pelo meu existir.” (BARROS, 2010c, p. 374). Mas por que um sujeito
em análise se torna reescritor? Todos temos nossas histórias, que se compõe
daquilo que vivemos, do que ouvimos contar de antes e depois que nascemos, ou
seja, estamos inscritos e enredados em um romance familiar, para usar o termo
freudiano. Alguma história já está escrita por nós na relação com os (O)utros,
cuja base é nossa fantasia fundamental. Então, em uma análise, o que se faz,
além de outras coisas, é recontar essa história, inúmeras vezes. Para Lacan,
fazer análise é escrever sem caneta. Movemos de lá pra cá e de cá pra lá os
personagens, mudamos as frases, as vírgulas, tiramos as aspas, repetimos,
repetimos, até mudar o enredo da história. Trata-se de um livro falado, que
talvez não seja possível passar à tinta já que essa história não se fecha
nunca, tal como é apontado por Freud em Análise terminável e interminável
(1937/2006).
Segundo Beckel, “um sujeito em análise, ao contar e
recontar a história de que é o protagonista, passa a interpretar com um novo
olhar o livro de sua própria vida, dando-lhe outro sentido, ao tempo em que
igualmente vai remodelando esse personagem.” (2004, p. 2). Para Manoel de
Barros, “a terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela
expresse nossos mais fundos desejos” (2010b, p. 347). Espere, mas não é isso
que fazemos também em análise? Desarrumamos a linguagem, tropeçamos nas
palavras, em nossos lapsos, atos falhos, para que possamos chegar um pouco mais
perto de nossos desejos. Costuramos palavras, mudamos a história e exigimos a
originalidade da obra, não aceitamos mais co-autorias.
O analista-leitor
Da mesma forma que um analisante é o
escritor-reescritor, um analista é sempre um leitor. Segundo a experiência
clínica, quando recebemos uma demanda, é demanda de que sejamos leitores. De
acordo com Bento, “no corpo físico e psíquico, o sujeito seria um ser escrito.
Como um suporte vivo, traria em si as marcas que possibilitam a sua leitura.”
(2004, p. 206). Um exemplo clínico:
Um paciente apresentou um “medo irracional da gripe
suína” e não via à sua volta ninguém com um medo tão exagerado assim. Temia que
a gripe suína fosse matá-lo ou matar algum parente próximo. Em análise, ao
falar que recentemente havia sentido uma intensa dor nas costas ao entrar no
avião, lembrou com temor, ter percebido que no aeroporto havia muitas medidas
de precaução e alerta contra a gripe suína. Até que fez a associação de gripe
suína – porco – lombo – dor lombar, e lembrou uma cena de infância na fazenda
em que os porcos eram castrados com um torniquete com o qual os testículos eram
arrancados, provocando guinchos insuportáveis de se ouvir. Eram porcos
escolhidos para a engorda e posteriormente para o corte. Ao fazer esta
associação, o medo da gripe suína se atenuou e a dor lombar desapareceu. No
entanto, vez por outra esse ponto de dor retorna. [...] As dores lombares o
acometem hoje em dia, principalmente nas férias. Não é coincidência se era nas
férias que ele ia para a fazenda e assistia ao ritual da castração suína. Era
lá também que comia lombo de porco, ou seja, os leitões castrados e engordados.
(QUINET, 2009, p. 74-5).
Deste exemplo, mas de inúmeros outros da clínica,
podemos dizer que o papel do analista seja o de engajar o sujeito nesta escrita
sem caneta, nessa costura de palavras. Para Lacan (1972-73/1985), devemos
engajar o sujeito a dizer besteiras, associar livremente, não a dizer tudo,
porque não se pode dizer tudo. Dizer besteiras é tentar ficar longe das
próprias censuras e julgamentos, é o que deve ocorrer, já que é quando os ditos
não são racionais que podemos trabalhar em psicanálise, esta é a regra do jogo.
Assim, o analista assemelha-se a um leitor absorto em uma poesia, um romance,
pois busca nas entrelinhas das palavras faladas o que escapa ao que é dito em
análise. Para Beckel, “pinçando os significantes nas histórias de vida que lhe
são contadas, capta o que não está sendo enunciado.” (2004, p. 1). Seria o
analista um co-autor dessa nova história sendo reescrita? Pergunta Beckel. E eu
me arrisco a responder que, se Manoel de Barros inventou o abridor de
amanhecer, nosso instrumento como analistas é o descascador de palavras. Se o
analisante faz a arte de costurar palavras, nós analistas fazemos a arte de
descascar palavras para que o sujeito possa construir um novo desejo, que seja
menos alienado ao Outro e, portanto, mais autêntico.
Qual seria então a diferença entre um processo de
escrita e de análise? Ou seja, por que não escrever e obter uma saída para
nossos sintomas ao invés de passar anos e anos num divã de analista? Ainda que
a escrita seja uma produção artística que se sustenta no fantasma, ou fantasia
fundamental (IZCOVICH, 2013), em análise ocorre um processo de travessia da
fantasia, necessário para que caiam as identificações, para que haja uma saída
da alienação ao desejo do Outro, implicando em uma mudança no posicionamento
quanto ao sintoma. Assim, tem-se a possibilidade de reinventar uma história. Se
por um lado a escrita se sustenta no fantasma, ao final de uma análise o estilo
do analisante seria sem as marcas do fantasma.
Como conclusão de tantos diálogos possíveis entre
psicanálise e literatura, digo que se trata de um amor eterno entre ambas,
eterno enquanto durar, posto que o amor é sempre chama. Se nada, inclusive a
psicanálise, pode nos salvar do desamparo, que a literatura nos permita
devanear. Ainda que não possa salvar nossas vidas, que ao menos nos salve da
vida. Tanto na literatura como na psicanálise, sempre é preciso haver um bom
encontro de escritores e leitores. Digo ainda que no processo de análise, o que
se faz é pegar a palavra, descascar e ir tirando a polpa até chegar ao caroço.
O descascador de palavras é, portanto, nosso instrumento como analistas, pois
descascamos as palavras para que o paciente faça da polpa o que quiser, até que
se chegue ao caroço. Na escrita literária, pegamos a casca e a polpa da palavra
e fazemos doces, sucos, geleias, tortas, etc. E ainda pegamos o caroço da
palavra, já gasto do processo analítico, e plantamos para que dê mais frutos.
Isloany
Machado
Referências
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Barros – Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010a.
______. Livro sobre nada. In: Manoel de Barros – Poesia
completa. São Paulo: Leya, 2010b.
______. Retrato do artista quando coisa. In: Manoel de
Barros – Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010c.
BECKEL, Gilcia Gil. Literatura e Psicanálise: qual a
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Psicanálise em 2004.
BENTO, Conceição Aparecida. A escrita e o sujeito: uma
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Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642004000100020&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 03 ago.
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LACAN, Jacques. O Seminário livro 7: A Ética da
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POLLO, Vera. Psicanálise e Literatura. Conferência
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QUINET, Antonio. Com lalíngua no corpo. Stylus, Rio de
Janeiro, vol. 19, p. 69-75, 2009.
Isloany
Machado - Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista,
membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo
Lacaniano de MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos
Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS.
Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção.
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