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Raymond Carver: observador de caipiras de shopping center [Ederval Fernandes]

Raymond Carver: observador de caipiras de shopping center



Raymond Carver foi um dos mais influentes escritores do final do século XX na literatura estadunidense. Sua obra poética e contística se detém na geração posterior à Grande Depressão, geração esta que ele ajudou a radiografar - e constatou que se tratava de caipirias de shopping center.

Caipiras de shopping center (em Portugal, dir-se-ia 'saloios'). Não fui eu, infelizmente, quem nomeou desse modo o vasto repertório de personagens criados pelo escritor estadunidense Raymond Carver (1938-1988). O responsável por este feliz conceito foi Gordon Lish, amigo, editor e figura fundamental no amadurecimento literário de Carver. Quando se fala sobre Ray Carver, dificilmente se ousa negligenciar algumas linhas sobre seu editor - entretanto, aqui, nos basta este conceito criado por ele: caipiras de shopping center. Vamos entendê-lo.

Por mais generalista que pareça à primeira vista esta categorização - já que tenta dar uma idéia homogénea de diversos tipos humanos retratados por Carver -, tal conceito me parece um belo ponto de partida para se entender boa dose da ficção carveriana. Explico. Se a geração que atravessou a Grande Depressão teve na pena afiada e honesta de John Steinbeck (1902-1968) um ótimo tratamento literário - podemos citar sua obra prima, As vinhas da Ira (1939) - coube a Ray Carver radiografar a geração posterior, a classe média baixa, instalada nos subúrbios, que gozou de um leve avanço econômico e social em relação a seus pais. Se a geração anterior teve que se adaptar forçosamente à vida urbana, esta, agora, transita pelo espaço das cidades (shoppings, bares, restaurantes, lojas de departamento, postos de gasolina, bancas de jornal) com alguma familiaridade.

A galeria de tipos criados por Ray Carver exibe figuras comuns, cidadãos médios, sem traços de genialidade, entregues a angústias cotidianas e a uma realidade pouco atrativa: trabalhos subalternos, aspirações não alcançadas, vidas conjugal e familiar dilaceradas.


Soaria desproporcional uma literatura que trouxesse no seu tratamento estético algo que não exprimisse o espírito melancólico destas situações cotidianas. E junto à idéia de melancólico, proponho uma afinidade com o simples e com o banal. E mais: seria estranho algo que fizesse destas situações mais do que são ou propõem ser. Este equilíbrio entre a extrapolação do real (que só há de maneira comedidamente lírica) e a realidade insossa que existe é o grande encanto de Ray Carver. Uma linguagem enxuta, clara, sem abdicar, porém, de certo lirismo angustiado, algo que herdara das inúmeras leituras de Tchekhov (1860-1904), a quem jamais deixou de admirar e ter como mestre, ao lago de Hemingway (1889-1961). Se de Hemingway ele aprendeu que “literatura é arquitetura e não decoração de interiores”, do escritor russo Carver herdou o tal “coração generoso” que tanto perseguiu em suas obras.

Podemos facilmente enxergar todos estes apontamentos materializados no conto Catedral, do livro homônimo (Vintage Books, 1983). O enredo é simples. Um homem tenta descrever a um cego como é afinal uma catedral. Até o momento ele nunca tinha parado para pensar como as pessoas que não conseguem ver existiram até ali sem saber como era uma catedral, e que para elas a linguagem era tudo. Afinal qual seria o outro meio de apreender a realidade?

O cego pede para o homem descrevê-la, a catedral. O narrador, extasiado, tenta sofregamente explicar ao cego a visão de uma catedral. “Como é que eu ia conseguir até mesmo começar a descrever aquilo? Mas digamos que minha vida dependesse disso. Digamos que minha vida estivesse sendo ameaçada por um maluco que dissesse que eu tinha de fazer aquilo, se não...”. Aí está a luta do homem com a linguagem, homem que até então não se dera conta de seu poder e imprecisão. “Virei para o cego e disse: antes de mais nada, são muito altas”. É tudo que ele consegue dizer. E aí está a beleza da vida que Ray Carver quer nos ensinar: sabemos que a vida é muito grande (“muito alta”) mas, no fim, é tudo o que sabemos sobre ela.

É famosa uma declaração de Carver: “a grande literatura tem que permanecer conectada à vida, enfatizadora e transformadora da vida”. E desse modo não existe o personagem ideal. Os reis, os heróis, os anti-heróis, os caipiras de shopping center: todos são, a seu modo, reféns da vida. E a vida, segundo Carver, nos comove. Sempre.


Veja abaixo a primeira parte de um documentário sobre Carver:


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