Sponsor

AD BANNER

Últimas Postagens

As alegrias de ser leitor [Celso Sisto]

Ilustração de Audrey Gessat
As alegrias de ser leitor


Celso Sisto 

Tenho pensado na leitura como um grande exercício de transformação. Tento forjar agora uma vida sem os livros e a leitura, só para ver o que poderia ser. Não consigo. E sou obrigado a confessar minha falência e minha nulidade sem os livros: sem tudo o que li, eu simplesmente não existiria.

Mapear esse leitor que fui (e sou!) é como abrir, sobre o tecido da memória, um grande álbum de fotografias. De repente uma infinidade de capas de livros invade a minha visão ulterior. E os príncipes e princesas, órfãos e cavaleiros dos Irmãos Grimm voam ao lado de anjos decaídos sob o comando de Caio Fernando Abreu. As estripulias de Tom Sawyer encontram consolo na companhia dos espectros que assombram o Natal de Scrooge. E Píppi Meialonga desafia a inteligência de Emília e ri de Polyana. Mas ninguém quer fazer o jogo do contente. O jogo aqui é o da importância! O jogo das marcas na memória. O reconhecimento dos caracteres, dos enredos, das mil vidas e lugares, tatuados na pele do leitor.

Ser leitor é exercer um papel especial. É atribuir-se uma flexibilidade capaz de ganhar os contornos que o enredo de uma obra exige. O leitor é também fotógrafo, pintor dos cenários das obras que lê. É um escultor sustentando principalmente a estrutura que permite um livro ficar de pé. O leitor é também o maestro que executa a partitura de uma narrativa, que determina os ritmos e pausas da leitura; um contador de histórias que tem o dever de dar à voz interior a medida certa para que o fluxo do contar obedeça às ondulações do encantar; um desbravador que entrou numa região desconhecida, carregando os apetrechos necessários para ter sucesso em sua expedição: o desejo de participar da trama até que tudo em volta não seja outra coisa senão sua própria ventura de viver o que lê.

Quantas artes contidas numa só ação! Mas o melhor de ser leitor é poder experimentar lugares, trocar de configuração, ter tantas personalidades... Como alguém pode não gostar disso?

Pois agora, já que inventaram no Brasil um dia para o leitor – 7 de janeiro – teremos enfim, uma data no calendário para dizer enfaticamente e com todas as letras, que ser leitor é tarefa de todo dia!

E depois, leitor não lê só livros! Lê lugares, olhares, pessoas, vozes, volumes, figurinos, cores, tempos, conflitos, temas, conteúdos, cidades, brincadeiras, formas, monumentos, jornais, revistas, bulas de remédio, receitas culinárias, manuais de instruções, discursos políticos, espetáculos de teatro, novelas de tevê, festas, folguedos, coreografias, rituais religiosos, apresentações circenses, letras de músicas, jogos eletrônicos, tanta tanta coisa, afinal, tudo é texto.

E antes que a celeridade contemporânea nos atropele, preciso lembrar que em tempos de outrora, líamos muita “revistinha”, que era como carinhosamente, na infância, chamávamos as Histórias em Quadrinhos. E isso também nos fez leitor. De repente, uma saudade doce me faz desejar ler de novo Brotoeja, Tininha, Luluzinha, Bolinha, A família Telerín... O mais lastimável é que nunca mais se pode ler como daquela primeira vez, naqueles idos de 70. Um misto de ingenuidade, crença e indomável expectativa guiava nossas mãos por entre as páginas. Irrepetível, apesar de se poder fazer de novo e de novo.

Sabemos que há todo tipo de leitor! Que a leitura é um desafio. Que dizer que a leitura alimenta a imaginação é dizer o óbvio; que a leitura não é uma atividade passiva, que aumenta nossa capacidade de expressão e de uso das linguagens, que afina nosso discurso, que refina nosso paladar para o trato com as palavras, que aumenta nossa capacidade crítica, blábláblá... Começar na infância, crescer abraçado aos livros, experimentar uma grande variedade, conviver com todos os gêneros textuais possíveis. Tudo isso importa na formação do leitor: a prática da leitura alimenta a exigência e a existência.

Mas, no fundo no fundo, o que importa mesmo é saber que cada sujeito tem sua biblioteca individual, pessoal e intransferível edificada na memória, construída em diálogo com sua própria história, resultante de sua experiência de vida; que nela existem livros (às vezes feitos de ar e ainda assim tão concretos!) que parecem que foram escritos exatamente para você, e que ter passado por eles é ter tido a chance de ganhar consistência.

Lembro-me agora, daquele livro raro de contos de Shakespeare, da editora Ebal, publicado pela primeira vez no Brasil, para crianças que como eu, tinham fome de leitura. Guardado e carregado anos a fio, um dia emprestei para uma aluna e o livro sumiu... Naquele dia parecia que tinham amputado o meu braço, que uma parte de mim tinha sido levada... Por sorte, anos depois, ao entrar num sebo, numa cidade distante da minha, eis que o mesmo livro me chama, gritando e acenando de uma prateleira:

- Eis-me aqui! Toma-me novamente em teus braços, “o meu amado é para mim como um ramalhete de mirra, posto entre os meus seios” (uma mulher com o seu amante, poderia dizer Clarice Lispector!).

Se os anos me engodaram, a leitura me deu sustento. Encheu-me de coragem para não desistir de encontrar respostas. Perder a possibilidade de ser um leitor é perder-se de si mesmo, o que momentaneamente até pode ser bom. Mas, com o passar do tempo, é o mesmo que constatar, com espantosa dor, que você tem um corpo sem alma.

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, crítico de literatura infantil e juvenil, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.

Nenhum comentário