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Histórias do povo da beira de um rio [Maria Inês Portugal]

Histórias do povo da beira de um rio



Costumo ler e escrever ao mesmo tempo. Confortos tecnológicos disponibilizados pelos escravos de Jobs. Gosto da modernidade. Escrevo para não morrer. Escrevo porque assim imagino-me conversando com mais gente. Driblo a solidão ou sou driblada pelo computador! Engano-me, crendo conversar com meus amigos velhos da aldeia. 


Sei que neste momento estão confabulando na esquina da padaria. Uma esquina da cidade onde habito tem o nome  de “Boca Maldita”. Nos cafundós do Mato Grosso também tem uma esquina semelhante – é o “Senadinho”- onde o papo rola em torno do mensalão, preçodasoja, joaquimbarbosa, dacarnedoboi,  primeiradama. Nossa esquina da padaria precisa rapidamente ser batizada! Afinal é lá que os assuntos tomam consistência na aldeia.

Ai como eu queria saber!!! o que dizem os aldeões sobre as novidades publicadas pelo Bajona no “Aqui”? que assuntos foram os mais comentados? quem morreu? e a ponte? cai já ou resiste aos caminhões de areia molhada? Na aldeia é assim. Os assuntos correm pelas ruas, quebram nas esquinas e colorem a vida do povo.

Vou jogar mais fogo nessa palha. Será que o fogo cresce se o assunto é papel, livro, jornal, poema, romance? Na minha aldeia tem uma cadeia que virou biblioteca. Será que alguém se interessa por este tema? Será que alguém vai querer discutir isso nas esquinas? Melhor tocar fogo no jornal... Tá velho mesmo! E mete a biblioteca na cadeia!  Livro velho, cadeia velho, novela sem graça, nem tem sexo!?

Vou jogar o papo na fornalha da esquina . Quem sabe rola papo!

Eu nunca me esqueci daquele dia em que “O Município” foi reduzido a nada, em um fantasmagórico incêndio na beira do rio, por detrás da igreja! Foi uma cochiladazinha do Senhor dos Passos e o inferno subiu para os ares! É, foi isso mesmo! Pareceu coisa do Dêmo! Só pode ter sido! Então tudo virou passado...

Na aldeia tinha a gráfica & editora. Max&Costa - alguém lembra-se deles? Dois homens sérios. Simples. Pobres. Educados. Éticos. Eu gostava deles!

Em 29 de julho de 1969“...nosso “O Município” completa mais um aninho”. Olha como seu Diretor tratava o jornal!...como um filho! Um filho pequenino!.- Caraca!  O jornal, naquele ano, comemorava seu próprio aniversário! Cinquenta e cinco anos.

Diga lá Trogo! 

... “De uma existência tênue, frágil, sem importunar os vivos, sem desrespeitar os mortos.
Assim somos nós, humildes, pequenos, porque quem nos vê, só vê o folhetim de quatro páginas, com noivados e batizados, com alguma morte sentida, com conselhos do Werneck, com recordações do Tavares, com mordacidade do Frasme e do Remada, com uma ou outra chorumela da responsabilidade desta direção, e com as notáveis remissões históricas do nosso H.F Portugal.

Assim somos nós! Poucos veem cada minuto destes cinquenta e tantos anos de pertinácia de editores pobres e simples que nunca cedem às ameaças dos grandes e nem batem palmas ao aplauso dos pequenos.
Só mesmo um fino manejo de convivência pode manter um jornal das proporções do nosso, assim tão presente, tão contínuo, tão sem desfalecimentos.
Somos a história de Rio Preto. O que Rio Preto é e for, nós o somos e seremos.
Somos possivelmente o único jornal no Brasil com existência tão longa e tão regular, com objetivos suicidamente desinteressados e com interesses desentranhadamente amadoristas.
Podemos dizer com orgulho, não há jornal no Brasil com a independência do nosso, pois, somos o único que não vive de assinantes, por tantos e tão longos anos.” 

A mesma voz de diretor retoma o assunto seis anos depois. Descreve suas colunas. Classifica-o de roscofe. Quanto censo crítico! Quanta dureza, Pai! Seu jornal estava antenado com a imprensa internacional. Até discutia psicanálise!? Estou falando sério!!! A grande imprensa brasileira vivia sob o tacão dos anos de chumbo. Mas noss”O Município”, era sobretudo consciente, o porta-voz das tristezas e alegrias de um povo. Do tamanho de nosso povo!  Dimensão do nosso afeto! 

“Duas folhas. Quatro páginas. Quinzenal. Rio, São Paulo, Belo Horizonte. Volta Redonda, Santa Rita. Qual tiragem? Mil e tanto. Jornalzinho roscofe. Dá aniversário. Mortes. Fala de uma ponte no Funil e das contas da Prefeitura. Editais da Comarca. Propaganda da Mercearia Progresso. Publica a lista de ouro. Informações da ACAR. Reuniões da Cooperativa. Memórias do Tavares. Discurso do João Duque. Divórcio do tempo em que Décio era menino. Pingo de notícia. Esporte. Cartas de deputado. Estrada Rio Preto-Juiz de Fora. Devaneios literários. Este é o miolo do jornal.

Nabor e Max todo dia se fundam ali, por detrás da Matriz, nas velhas oficinas de “O Município”. Labuta humilde e intransigente. É a cara feia de um chefe político que se sentiu ofendido com esta ou aquela notícia. É o preço do papel. É o atraso dos assinantes. São as dificuldades do correio, dos colaboradores. É duro dizer que tal artigo não dava prá ser publicado. E aqueles que querem tirar sardinha com a mão do gato? Querem ver uma denúncia publicada, mas cadê que assinam...

É “O Município”. Sexagenário!Cumprindo seu destino pequenino.

Se ele é pequeno, a culpa não é dele... Um jornal é a alma de um povo! E um povo é do tamanho de seus ideais.

Nós riopretanos não podemos transmitir aos estranhos a importância do nosso jornal. Não podemos dizer a eles porque, interrompemos o almoço, o programa de televisão, a conversa e jogamos de lado “O Globo”, o “Jornal do Brasil”, quando chega “O Município”. É questão nossa... questão muito nossa “O Município” é a quentura destas poucas ruas transitadas de Melos, Monteiros e Maias, Duques, Pereiras e Limas. É o povo embebido de seu passado. As lutas. Os ódios. As estórias... Os Portugais, os Guimarães, os Ferreiras. O povo, este misterioso povo... Lembra-se do “Tides” seu Joaquim Simões? O Pe Gomes?

Os sinos da Matriz. As festas de Santa Terezinha. Os dobrados da “Lima Santos”. As manhãs de azul e branco dos dias letivos. O centenário. Os nossos mortos... Isto é “O Município”! Pequenino! Humilde! Do tamanho de nosso povo! Dimensão do nosso afeto! Ele é o testemunho de nossas tristezas e nossas alegrias...

Cunha & Costa, como possessos, cumprem o destino do jornal. Fazem um jornal. Registram a história de um povo.” (O Município, 15/08/1975) 

O Município nasceu em 14 de junho de 1914 tendo como fundador o Dr Luiz Antônio da Costa Carvalho. Portanto, na edição de 25 de julho de 1970 comemoravam os 56 anos de sua fundação, reafirmado heroicamente: 

“...Os instrumentos de que os homens dispõem devem ser reunidos para o bem e para a sua prática. Cremos que este periódico tem [se] batido para o bem, para a sua prática, pelo bem estar do riopretano pelo progresso do Rio Preto.”

- Amém nós todos, Max & Costa!

EU paro um pouco. A emoção me sufoca. Vivi nesta aldeia. Sinto falta dela! Cresci vendo Seu Max, Seu Costa e o Nabor trabalhando naquela velha tipografia. Montavam o jornal e outros trabalhos gráficos letrinha por letrinha, com tipos móveis, reunidos manualmente como no tempo de Gutemberg. Até convites para enterro eram feitos na gráfica d’O Município. Não havia computador, mas gavetas de fontes. Alguém sabe o que é clichê? O maquinário em ferro. E nenhum trabalho solicitado sofria qualquer atraso na entrega. Já pensou se os convites para os enterros não fossem entregues na hora certa, Nabor?

Eu desafio nossos aldeões viventes de hoje. Vamos resgatar esta memória?

Isso é fazer História. É História de Rio Preto. É a História da imprensa, História do Brasil; são fragmentos da história da Humanidade. Ler “O Município” mesmo que em frangalhos é como jogar “puzzle”- quebra cabeça, com nossas vidas passadas. Falta uma pecinha aqui, sobra uma pedrinha ali. Mas aos poucos a gente recompõe uma bonita paisagem social.

E cada um de nós pode jogar, se quiser: É só remexer nossas gavetinhas, encontrar números do jornal, ali esquecidos. Por que entregar nossas vidas passadas à sanha dos ratos e das enchentes! Vamos juntá-los e recuperá-los. Podemos reproduzi-los com a tecnologia disponível hoje... podemos reeditá-los, disponibilizá-los em forma digital ou mesmo em papel... alguém pode organiza-los...

Quem se habilita?

Vamos juntos recolher os pedacinhos de uma história de Rio Preto? Se você tiver um pedacinho d’O Município participe do jogo. Coloque-o em um envelope, escreva seu nome, diga se é doação ou empréstimo e deixe-o na casa do Sr Rodney.

Quem somos nós, afinal?


Maria Inês Portugal-Pela manha alfabetizou adultos em Rio Preto-MG. Professora, durante o dia trabalhou em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Cuiabá. À tardinha, dizem ser historiadora. Desde sempre rola mundo em busca de saber e de escrever. Nasceu em Niterói e vive em Curitiba.

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