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Por que Eça ainda deve ser lido [Paulo Nogueira]

Por que Eça ainda deve ser lido
 

por  Paulo Nogueira 

Artigo publicado no DCM 

Poucos finais de romances são tão pertubadoramente belos e filosoficamente profundos como o de Os Maias, De Eça Queiroz.

Carlos e Ega, dois amigos de uma vida toda, erram pelas ruas de Lisboa. As ilusões da juventude já haviam sido trituradas pelo tempo, e eles constatam que quase nada do que sonharam tinha se tornado realidade. O grande livro que Ega escreveria – até título já tinha: Memórias de um Átomo – jamais chegou a ser escrito e publicado. Carlos não se recuperou de uma paixão alucinada, carnal por uma mulher que ele desconhecia ser sua irmã, Maria Eduarda.

A vida que se realiza não é aquela com que sonhamos, refletem. E então a frase que ficou permanentemente gravada em minha mente: “Ah, éramos jovens, éramos jovens.”

Eça é um autor fundamental. Numa vida breve – morreu em 1900, aos 55 anos —  construiu uma soberba pirâmide literária. O estilo exuberante, descritivo como mandava a escola naturalista à qual ele se filiou, se mesclou com características deliciosas em sua prosa. Eça, como os intelectuais progressista de seus dias, era fanaticamente anticlerical. Os padres e a igreja representavam, para ele, o atraso. E era absurdamente cru  na forma como tratava o sexo em seus livros. Os personagens de Eça são governados pelo anseio sexual.

O Crime do Padre Amaro, um de seus clássicos, traz tudo isso: a repulsão à batina e o império dos sentidos. Amaro seduz e consequentemente devasta uma jovem crédula, Amélia. Amaro era como a representação de todos os padres e em Amélia estava a sociedade portuguesa. Eça estava como que dizendo que Portugal fora sodomizado e atrasado pelos padres católicos.

O anticlericalismo está presente de forma bem mais divertida em outra obra de Eça, A Relíquia. Raposo é um espertalhão que pretende entrar na herança da tia rica e carola. Ele vai para Jerusalém para agradar a velha. Pega, no final da viagem espiritual, uma relíquia para ela, e tudo ia terminar bem se ele não tivesse colocado numa caixa exatamente igual a calcinha de uma mulher libertina que ele conquistara na viagem. Quando a tia abre o presente, não é a relíquia que ela encontra – mas a peça íntima de uma mulher lasciva. Antes de ser desmascarado, Raposo fizera coisas como pegar água da torneira e vendê-la em garrarinhas como se fosse água santa do Jordão.

Como outros grandes autores do século XIX, Eça criou uma adúltera notável. É Luiza, de O Primo Basílio. Basílio, um canalha total, se aproveita da fragilidade de sua prima, bem como da ausência prolongada do marido desta. O caso entre eles é descoberto pela empregada de Luiza, que a chantageia e tortura até virtualmente liquidá-la.

Machado de Assis, o grande contemporâneo brasileiro de Eça, escreveu uma crítica antológica sobre O Primo Basílio. Foi duríssimo. Disse que a única lição que se extraía do livro é que a “boa vontade dos fâmulos é essencial para a paz no adultério”. Foi a primeira vez que li a palavra “fâmulo” – empregado, servo. Machado evidentemente exagerou. Mas sua crítica, de toda forma, acabou por ampliar a repercussão do romance de Eça, em vez de diminuí-la. Outro contato extraordinário entre os dois se deu numa dedicatória que Machado fez a Eça num romance que lhe deu. É provavelmente a dedicatória mais seca que um escritor já fez: “De Machado de Assis para Eça de Queiroz”.

As comparações entre os dois gênios são inevitáveis. Machado era contido e sutil. Insinuava, em vez de afirmar. Eça jorrava. Não falava: berrava. A adúltera de Machado, Capitu, você nem tem certeza de que traiu o marido. A Luiza de Eça entregou a carne toda ao primo cafajeste. Cada qual de seu jeito, eram gigantes, e é simplesmente impossível dizer qual dos dois é melhor.

Li, em minha juventude, Eça com uma caneta ao lado para sublinhar e anotar as frases que mais me marcavam. Uma delas lembro ainda hoje com vividez: “Braços que se desenlaçam em despedidas supremas”. Visitei Póvoa do Varzim, a terra de Eça. Era janeiro, e o vento quase arrastava as pessoas. Fui a um cassino local jogar roleta e quase arrumo ao encrenca ao pegar, sem querer, fichas que não eram as minhas. Poucos meses atrás. numa ida a Paris em missão jornalística, acabei dando numa estátua de Eça num subúrbio. Eça viveu em Paris como diplomata. Sentei num banco e contemplei por alguns minutos Eça antes de partir.

Os Maias é meu Eça favorito.  Admiro o patriarca Afonso Maia, em cuja força interior inquebrável vejo algo de meu pai.  Tanto me marcou que quis muito dar a minha filha caçula o nome de Maria Eduarda. Fui batido pelo conselho familiar, representado por minha ex-mulher e meus dois filhos, então pequenos mas já cheios de opiniões próprias. (Acabou prevalendo Camila, e hoje digo que minha ruiva maravilhosa não poderia ter mesmo outro nome.)

Tantos anos depois de ter lido Os Maias, e ocasionalmente relê-lo, a cena final ainda me toca. Quantas vezes, ao olhar para trás, digo para mim mesmo: “Ah, éramos jovens, éramos jovens.”




O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

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