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Ah! Lembra...? [Jean Marcel]

Ah!  Lembra...?

Veneza, Itália. No restaurante...

Oh, mio bambino... – Ela sempre o chamava assim. Ele odiava, mas nunca teve coragem de censurá-la – Oh, mio bambino... Está tudo tão perfeito! Parece um sonho... – suspira a Francesca, visivelmente emocionada com a surpresa – Esse jantar... – Ela não conseguiu terminar a frase, tamanha a emoção. Conhecendo-o como conhecia, nunca imaginou que o seu Paolo tivesse a iniciativa de preparar sequer metade do que estava vendo diante de si. 

– Paolo, questa cena... pra mim, parece que foi ontem! Nada mudou... 

– É mesmo! Parece que foi ontem... io e te... Quinze anos atrás... – devolve o Paolo, orgulhoso de tudo que providenciara para que aquela noite fosse inesquecível. 

Ele não era um sujeito romântico, nunca foi! Mas dessa vez caprichara de verdade na surpresa. Desde que esqueceu a data no ano anterior, provocando na Francesca, sempre muito exagerada, uma simulada tentativa de suicídio, jurou que no ano seguinte a faria chorar novamente... só que de felicidade. Portanto, não podia errar! 

– Só você mesmo, Paolo... Pra não esquecer de nada! 

– É... só eu mesmo! – sentindo-se vitorioso – non esqueci de nada! – repetiu pra si mesmo, com o peito inflado. 

– Que lindo...! – a Francesca suspirou com expressão apaixonada – Só falta agora tocarem a nossa música... Você lembra, bambino? Da nossa música... ?!  
– Umpf! – engasgando com um gole de vinho tinto, o restaurante, de repente, girando em torno dele. 

– Lembra? – ela insistiu. 

– Ãh... bem... – “Dio mio! Como não pensei nisso?!” – gemeu internamente – Bom, quer dizer... 

O jantar comemorava quinze anos passados do exato dia em que ele a pediu em casamento. Era uma data especial e como tal o Paolo queria que fosse tudo primoroso. Assim, planejou com antecedência cada detalhe: estavam agora no mesmo restaurante em que decidiram, anos atrás, unir seus destinos. Foi muita coincidência se conhecerem justamente em... Veneza! “Aaaah... Veneza!” suspiram até hoje ao lembrarem da magia do lugar. Alguns italianos acham que Veneza é somente para turistas... Eles não! Acreditam no feitiço de Veneza... do carnival, Da Piazza San Marco... Dos canais... E foi justamente num dos canais que se viram pela primeira vez... Suas gôndolas colidiram violentamente sob a luz do luar, por que os gondoleiros obedeceram cada qual à ordem de não desviar. Foi a primeira vez em muitas que o Paolo e a Francesca trombaram de frente por ambos insistirem estar com a razão. Foi um choque “muito romântico!”, julgaram imediatamente na ocasião, indo quase às lágrimas... Ele tentando desesperadamente tirar a água do barco; e ela enforcando seu gondoleiro com ambas as mãos... “Dio Santo, que mulher!” admirou-a enamorado, já com água pelas canelas. “Nem o Etna tem tanto vigor!” dizia o Paolo para o si mesmo, contemplando-a mergulhar à força a cabeça do sujeito na água escura, exigindo o seu dinheiro de volta. 

“Aquele encontro em Veneza foi certamente obra do destino!”, concluíram na ocasião, e desde então nunca mais se separaram. Naquela mesma noite, anos atrás, no restaurante onde estavam agora, ele a pediu em casamento e imediatamente juntaram suas malas num único quarto de hotel. Mais tarde, fumando na cama após o amor, ao trocarem sussurrados segredos, as outras coincidências vieram à tona: os dois eram da Sicília, ambos gostavam de fettuccine alla panna e funghi, no futebol torciam para o pouco conhecido Catania e a favor de qualquer outro time que estivesse jogando contra o Palermo. Enfim, nasceram um para o outro! Identificaram até mesmo, embora distante, um grau de parentesco entre suas famílias, sem falar nos amigos em comum que descobriram depois, inclusive na cosa nostra. Agora, quinze anos passados, o Paolo comprou secretamente as passagens, aprontou as malas de ambos sem que ela desconfiasse, reservou a mesma mesa de frente para a janela e solicitou o mesmíssimo prato e acompanhamentos que saborearam anos atrás... Até o antipasto de azeitonas fez questão de pedir novamente.

Nunca se esqueceu do preço que lhe cobraram à época por meia dúzia de azeitoninhas!!! Nessa noite, novamente engasgou olhando os preços no cardápio! Ah... Veneza! Enfim, tudo igual! Só o garçom que os atendia agora parecia bem mais velho que o da época! Ou será que era o mesmo e todos tinham envelhecido tanto assim?! De qualquer forma o Paolo sentia que estava no controle. Pelo menos até ela se sair com essa... 

– Lembra ou não lembra, bambino? 

Paolo pediu desculpas apontando para a boca pretensamente cheia – Mmmnmnnm mnm – murmurou, apesar de só ter uma azeitona dentro dela. 

– Você lembra da nossa música ou não?
“E essa agora?!”, lamentou-se apavorado, já enfiando mais três azeitonas na boca de uma só vez e sinalizando a impossibilidade de falar... 

– A música, Paolo! Tocou naquela noite em que jantamos aqui, bem na hora em que você me pediu em casamento.

De tão nervoso, Paolo engoliu as azeitonas com caroço e tudo. Uma lágrima rolou pela sua face. 

– Oh, querido, então você lembra...?! – julgando-o emocionado.

– Ah, claro, Francesca! A música... – balbuciou, suando frio. 

– Jura? Você lembra?! – ela sim emocionada. Jamais imaginaria que seu Paolo lembrasse desse detalhe.

– Uhm, claro que eu lembro, amore! – escaneando o cérebro a procura de qualquer informação que lhe desse alguma pista – Como é que eu poderia esquecer?! 

É vero? – abrindo um sorriso satisfeito – Então diz qual é!

– Veja bem... É aquela, non é? Inesquecível... Com aquele cantor... Aquele que você adora! – rezando para que não fosse com uma cantora. “Cinquenta por cento de chance!”, pensou, cruzando os dedos embaixo da mesa. – É linda, non é mesmo? Esses dias mesmo io a escutei no rádio... 

Mamma mia! Você lembra mesmo, Paolo?!

– Pois é, combina muito com esse gnocchi! – tentando desesperadamente mudar de assunto. – Foi o que comemos naquele dia... 

– Nem acredito! Então você se recorda, Paolo?!

– Do gnocchi? Claro! Io pedi alla bolognesa, veio ai quattro formaggi! Io queria devolver, você disse pra comermos tudo e só brigar na hora da conta... 

– Da música, Paolo... Você lembra?

– Ah... Imagina, Claro que sim! – mexendo as mãos como se fosse um maestro regendo sua orquestra particular. 

– Então canta um pedacinho! Só pra mim... baixinho... – pediu a Francesca, virando a cabeça de lado e piscando os olhos romanticamente.

– Ah... amore! Por que isso agora? Você sabe como io sou desafinado! 

– Só o refrão... per favore!

Io sou contra refrões! Não sei por que os autores querem que a gente fique repetindo as mesmas frases! 

– Diz o nome! – já desconfiada.

– O nome? 

Si, o nome... da música!

– Ora, Francesca. Você sabe que io confundo os nomes! Tem aquele primo seu que io sempre chamo de Frederico. E o nome dele é... é... Viu? Esqueci! – batendo na mesa. 

– Domenico!

– Isso, Domenico! Pois então... Não sou bom de nomes! Até dos filmes io esqueço... Você está de prova... Alugo várias vezes o mesmo filme justamente porque esqueço o nome dos que já vi! 

– Você não lembra da nossa música?!

– Imagina, Fran! Claro que lembro... Só não sei o nome! Mas a música eu sei!– batucando qualquer coisa na mesa. – Não é essa? Hein? Vai dizer que non começa assim? – o suor escorrendo pela testa. – Ein? Diz... – Pensando seriamente em simular um desmaio para ganhar tempo. 

– Uhm, – nem um pouco convencida – Então assobia!

– Como? 

– Assobia, Paolo! Se você sabe mesmo qual é: assobia!
... Silêncio de ambos. Ela esperando por ele e ele esperando por um milagre. 

– Tá bom, Francesca! – respirando fundo, tirou o guardanapo que estava preso no pescoço por uma das pontas e o jogou sobre a mesa. – io confesso: Non lembro! – confessou cabisbaixo – Non faço a menor ideia! Diz aí... Qual foi a música que tocava quinze anos atrás, quando io te pedi em casamento?

– Também non lembro, ... – Francesca disse, antes de sorver mais um gole de vinho – Por isso te perguntei!

Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com

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