O BRASIL É BOM
Colocando no mesmo
balaio-de-gatos a realidade objetiva, o discurso hiperbólica, a ironia
desmedida e as contradições socioeconômicas e políticas da falsa burguesia que
sonha em desfrutar das delícias descartáveis que o capitalismo oferece de
bandeja para os tolos, o livro de contos O Brasil é Bom, do André Sant’Anna,
passa longe do que o senso comum considera como leitura fácil. O desconforto do
leitor se manifesta no ritmo repetitivo das frases, dos parágrafos, dos contos
(que parecem multiplicar ad aeternum o mesmo tema). Não é fácil se deixar
conduzir pela música dissonante, incompreensível para os ouvidos que foram
educados nos melhores colégios com os sons harmônicos da civilização ocidental.
É isso. Poucos leitores
conseguem evitar a sensação de que o ilegível se aproxima vertiginosamente em
cada um dos 23 contos que compõem o livro. Prosa labiríntica, repleta de frases
incompletas, balbuciar coloquial, ecos da realidade que poucos possuem
condições psicológicas para aguentar. Simultaneamente, incluído nesse
estranhamento, nessa distância envolta pelo fel da linguagem, há o
reconhecimento. Doloroso – como centenas de fragmentos de uma granada jogada no
meio da multidão.
Somos nós, o estrato
social que se alimenta com generosas porções de ressentimento, que repetimos
diariamente as agressões, os preconceitos. Somos nós, os racistas, que negamos
acesso escolar para os excluídos sociais. Somos nós, os que não possuem postura
política coerente, que negamos acesso aos serviços de saúde para as classes
subalternas. Somos nós, os pseudo-intelectuais, que usamos expressões
politicamente corretas – excluídos sociais e classes subalternas – quando nos
falta a cara-de-pau necessária para o exercício bem sucedido da arte cênica, ou
cínica, e, com o tom de voz neutro que caracteriza a canalhice, usar as
palavras que queimam nossa língua: pobres, miseráveis, mendigos, parasitas,
fudidos.
A delicadeza não faz parte
do patrimônio emocional brasileiro. Mas gostamos de fingir que somos educados.
Irrefutável. O Brasil é
Bom. A classe baixa-alta, que não gosta de ser chamada de média, mas saliva de
satisfação quando avança na escala social, transforma todos os males do mundo
na palavra gol, mantra religioso, explosão de alegria, a nível de Pra frente, Brasil
e rumo ao hexa. O futebol é anestésico.
Somos uma republiqueta de
vencedores. Ou de vendedores de bananas e banalidades.
São muitos os problemas e
poucas as soluções. Ou o contrário. A ordem dos fatores não modifica o
deslumbramento romântico de que quem imagina que a nacionalidade pode ser
resumida pelas histórias de esvoaçantes bundas – esparramadas pelas bordas a
bombordo e a estibordo do porto que é o corpo.
O Brasil é Bom material
literário para desconstruir as certezas de que somos bons. Como, certa vez, em
tom menor, pura agressão, tentou demonstrar o Diogo Mainardi no romance Contra
o Brasil. Ou o Cazuza, que, na canção Ideologia, implorava para o Brasil
mostrar a cara, esquecendo que as máscaras, mais do que enfeites, são
excelentes escudos contra tudo o que incomoda. O Haiti é aqui, Caetano Veloso
dixit.
O Brasil não é bom
material literário, segundo esses esquemas capitalistas que imaginam a
possibilidade de ganhar dinheiro com histórias românticas protagonizadas
além-mar, muito além das flexões do verbo amar.
As últimas cinco histórias
(depois da imensa porrada chamada Lodaçal, relato cruel dos desenganos,
protagonizado por duas crianças e seus delírios translúcidos nos abismos dos
paraísos artificiais), alteram um pouco o tom agressivo, violento, do livro. O
narrador mimetiza personagens da história “real” (seja lá o que isso for) e, ao
compor o próprio samba do crioulo doido, misturando ficção e autobiografia,
constrói um caleidoscópio de emoções afetivas. As figuras exóticas do pai, da
mãe, dos amigos do pai e da mãe, dos parentes, vão sendo misturadas com o
George Harrison (Beatles), com jogadores de futebol, com inúmeros personagens
do faz-de-conta, reconstrução de aventura ficcional particular. O efeito obtido
com esse traveling emocional é divertido. E bacana.
O Brasil é Bom. O André
Sant’Anna, também.
TRECHO ESCOLHIDO
O Chiquinho, sem nenhum
colesterol no sangue, doidão, olhando para uma lua enorme que clareava tudo,
uma noite que era um troço, tudo muito estrelado, dá pra ver muita estrela
cadente, satélites, disco voador de verdade e veículos aeroespaciais da Nasa
sendo testados no céu secretamente, um troço de poesia, o Toninho também, e o
Chiquinho, tão sem colesterol, tão sem palavras, tão sem conhecer nada, tão sem
precisar das coisas que a gente, animal, precisa, tipo comer, tipo reproduzir,
que o Chiquinho era só esse troço de poesia mesmo, de são Jorge, que é a coisa
mais cósmica, mais sensível, mais subjetiva, mais metafísica que ele,
Chiquinho, já tinha ouvido falar, por uma velha, a única velha do lodaçal, que
tinha falado lá, o Chiquinho sabia lá quando, o Chiquinho não sabia, o
Chiquinho sem ter a menor noção de coisa nenhuma, sem noção do tempo, sem tempo
dentro dele, sem nenhuma palavra dentro dele para explicar aquele troço que
dava, e era um troço que tinha a ver com aquele céu, tinha a ver com amor,
tinha a ver com aquele troço que o charutão de maconha dava, tinha a ver com
falta de mãe, tinha a ver com a necessidade de dizer para o Toninho que o
Chiquinho amava, que ele, o Chiquinho, estava sentindo falta de alguma coisa. O
Chiquinho pensando, cheio de vida interior. A bichinha do Chiquinho.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
Todos os
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Um comentário
O Brasil, passa por tempestades por culpa do próprio povo, tem nas mãos uma democracia e não sabe conduzi-la... a constituição muitos nem conhece realmente por falta de leitura mesmo...Mas vá lá fora e veja que estamos bem a frente de muitos países que você pensa que é mar de rosas...Devemos fazer e procurar consertar o que nos incomoda...criticar tudo bem desde que seja construtiva...Devemos deixar de eleger palhaços e corruptos, vamos ver nosso país com seriedade.
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