Uma mulher quer matar o
Machado
por Diego da Cruz
Artigo publicado no site Obvious
Ela é responsável por um
projeto que pressupõe a incapacidade de compreensão das pessoas mais comuns
brasileiras de textos complexos, e está distribuindo uma versão de "O
alienista" de Machado de Assis, reescrito de forma simplificada, de acordo
com a linguagem e os padrões editoriais atuais.
Espero que não seja fato
despercebido dos leitores deste texto que o Brasil não é um país de gente muito
amiga da leitura de ficção. Entre mil fatores que fazem de nós leitores abaixo
da média, com certeza não está entre eles o fato de não possuirmos capacidade
intelectual.
O projeto de uma mulher
chamada Patrícia Engel Secco, tem o pressuposto de democratizar a leitura no
Brasil, levando versões editadas, copidescadas, facilitadas, de clássicos da
literatura brasileira, gratuitamente às pessoas mais pobres.
Copidescar é interferir em
um texto de forma que ele se encaixe nos padrões editoriais. E o projeto da
Patrícia Engel Secco traz uma edição de “O alienista”, do Machado de Assis,
completamente editado “aos padrões atuais”. Quase linha a linha, as
transformações no texto são inúmeras. Ela ousou reescrever o Machado para que
ele “seja compreensível a todos”.
Pois bem, o Machado morreu
aí. A linguagem da época em que foi escrito foi padronizada à linguagem atual,
como o trecho “Mal composta de feições”, que vira “feiosa” na edição da mulher.
E morre então o valor da obra como documento histórico, que apresenta as formas
linguísticas da época e ainda a intenção perspicaz do Machado.
A literatura clássica
oferece uma crítica à situação atual pelo enraizamento histórico, não apenas no
nível do enredo, que relata os fatos à época narrados, mas também pelas
condições psicológicas e linguísticas inerentes aos sujeitos da narrativa,
compondo assim um plano estético que transporta e humaniza a gente que lê.
Já nessa nova versão de “O
alienista”, Machado teve seus característicos períodos longos encurtados, sua
escrita foi padronizada à pontuação editorial atual, e assim morreu o Machado
no seu viés complexo, questionador e ambíguo, também pelos seus ponto e
vírgulas terem virado pontos finais, infelizmente.
Como consequência o ritmo
machadiano também morreu, como se a música única fosse a música de atualmente,
não uma expressão universal atemporal, aquém das classes sociais, que o
brasileiro mais comum não conseguisse a sentir e precisasse de uma ajudinha
para isso. Como no trecho “O maior dos médicos do Brasil de Portugal e das
Espanhas”, que virou apenas “da Espanha”.
Essa postura maniqueísta
até piora o Machado na perspectiva atual, afinal para o que foi editado “Simão
Bacamarte recebeu [uma notícia] com a alegria própria de um sábio, revestida de
prudência até o pescoço”, no que o Machado escreve “Simão Bacamarte recebeu
[uma notícia] com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de
circunspecção até o pescoço”, percebe-se as palavras do Machado original muito
mais claras em colocar Simão Bacamarte como o sisudo que é, e morto portanto na
edição da mulher. Morreu também o termo “condições”, que virou
“características”, e nas primeiras trinta e cinco linhas são trinta e cinco
interferências do tipo.
Nas palavras do professor
da faculdade de letras da USP, Alcides Villaça, essa edição é um “monstrengo
cultural”, porque há um Machado ali sendo lido, para de repente de maneira
desavisada o leitor “despencar num abismo”, de coisas que o Machado jamais
faria.
Houve certa vez que
criticou-se o Jorge Luis Borges por ser demasiado erudito enquanto escritor
popular argentino, mas percebe-se que antes de um povo que fomente textos
genéricos, o escritor deseja um povo crítico, humano, livre e autônomo, a ponto
de conseguir entender o texto na sua complexidade mais ampla.
O texto é caminho para a
sanidade, e esse projeto parece se resignar à incapacidade de refletir, buscar
e aprender. Esse projeto portanto é simplista e subestima a capacidade dos
leitores. Como se a sanidade plena não tivesse mais espaço. Que os leitores
sejam melhorados, e não os livros piorados ou os nossos clássicos mortos!
Talvez essas pessoas
incluídas nesse projeto, por meio de tantas e duras críticas que vêm recebendo,
a exemplo de Simão Bacamarte, descubram que quem precisa de ajuda quanto às
articulações intelectuais não é o povo mais comum, mas elas mesmas.
Diego da Cruz
Já apodreci muito cadarço
e desfiz muita sola de sapato, mas a ideia de que "o caminho mais longo é
o caminho mais curto para casa" ainda não fez sentido para mim. Estou na
lida. .
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário
Postar um comentário