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Lima Barreto, mais feminista que as feministas [Elliane Vasconcellos]

Lima Barreto, mais feminista que as feministas


Lima Barreto atacou as contradições do nascente movimento pelas mulheres e fez contundente campanha contra o homicídio de adúlteras.


Falar de Lima Barreto é lembrar o romancista de Triste fim de Policarpo Quaresma e o contista de O homem que sabia javanês, ambos de 1911. Mas ele também teve longa experiência nas crônicas, empenhando sua ampla visão e atilado senso crítico no dever jornalístico de fixar os fatos do cotidiano.

Poucos foram os assuntos dos quais o Lima Barreto cronista não se ocupou. E não apenas fazia questão de demarcar sua posição, como temperava as crônicas com sarcasmo e zombaria – causando reações contrárias e aumentando sua fama de polemista. Foi o que aconteceu em torno dos temas relacionados à mulher.

Vivia-se, no início do século XX, o período da Belle Époque, em que se deu o começo do processo de emancipação feminina, com mudanças expressivas nas relações sociais entre os sexos. A elite das grandes cidades brasileiras procurava seguir os modelos de comportamento europeus, mas esbarrava nos conflitos entre tradição e inovação, entre a recatada mulher “do lar” e aquelas que conquistavam a independência e ocupavam novos espaços profissionais e públicos.

O cronista captou estas contradições da situação feminina, refletidas ora em críticas, ora em incentivos às transformações sociais em andamento. Por um lado, Lima Barreto vê com clareza a necessidade de instruir a mulher, é a favor do divórcio e do direito feminino de amar quem quiser. Por outro, questiona as capacidades do “belo sexo”. Não é contra a participação da mulher no mercado de trabalho, nem lhe nega o direito de exercer cargos públicos, mas acusa “a maneira irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses cargos”. Na crônica “A polianteia das burocratas”, publicada nos dias 26 e 27 de setembro de 1921, ilumina um problema que continua atual: o reconhecimento do trabalho da mulher como dona de casa. “Então a mulher só veio a trabalhar porque forçou as portas das repartições públicas? Ela sempre trabalhou, aqui e em toda a parte, desde que o mundo é mundo; e até, nas civilizações primitivas, ela trabalhava mais do que o homem”.

Não teve pudores em atacar o incipiente movimento feminista e suas representantes, as ligas de emancipação da mulher e suas reivindicações. Chegou a declarar-se “antifeminista” e criticou as líderes Berta Lutz e Leolinda Daltro. Lima Barreto percebeu que o movimento feminista coincidia com o sufragista. Assim, as feministas se esqueceram dos objetivos primeiros da luta da mulher, como a igualdade de oportunidades educacionais e profissionais, e seus olhos voltaram-se unicamente para o desejo de emancipação política.

A ironia estava em constatar a inutilidade das reivindicações feministas. Voltadas unicamente para si próprias, preocupavam-se com o movimento sufragista (direito da mulher ao voto) e só. O resto era perfumaria. No fundo, argumentava ele, o feminismo não queria a “dignificação da mulher”, mas tão somente abrir as portas do mercado de trabalho para aquelas das classes sociais mais altas. Era uma pauta parcial, que negligenciava pontos importantes, como a luta por direitos da classe operária feminina e o problema do ensino para a mulher. Até mesmo diante do crime abominável do uxoricídio (em que o marido mata a mulher), as nossas feministas se mantinham omissas.

A fina percepção de Lima Barreto levou-o a compreender que o amor eterno era quase impossível, pois todos nós – homens, mulheres e sociedade – sofremos mudanças. Seu pensamento é nítido neste sentido: “Estamos a toda a hora mudando. As variações do nosso eu, de segundo, são insignificantes; mas em horas, já são palpáveis; em meses, já são ponderáveis; e, em anos, são consideráveis. Que se dirá, então, no tocante às nossas inclinações sentimentais e, sobretudo, nesta parte tão melindrosa de amor, no que se refere à mulher?”.

As mutações dos sentimentos justificam também as transformações femininas. Elas têm o direito de mudar de parceiro sem que, por isto, mereçam ser assassinadas. Lima Barreto não via o casamento como uma instituição indissolúvel. Defendia a liberdade de escolha e culpava a educação feminina como uma das responsáveis por casamentos errôneos. Como soluções para este problema, sugeria, por exemplo, para as moças uma educação mais aberta, diferente da “educação estreitamente familiar e viciada” que “não [dá] às moças critério seguro para julgar os seus noivos”.

Despreparada para a vida conjugal e sem ter outro objetivo em sua existência, a mulher só tem uma saída quando o casamento fracassa: procurar outro companheiro – “Vai experimentar e, às vezes, é feliz”. A sociedade da época não era tão avançada quanto o autor: mulher adúltera merecia punição. Lima se insurge contra tal cultura. Apesar da fama de misógino e da fachada de antifeminista, dedica mais de uma crônica ao problema do uxoricídio (ou “uxoricismo”, como preferia), denunciando abertamente a sociedade e a justiça, que deixavam o marido impune.

O primeiro artigo sobre este tipo de crime foi “Não as matem”, publicado em 1915. O autor argumenta que atitude tão violenta por parte dos homens em relação às mulheres reside na ideia de que eles se sentem donos, proprietários das esposas – como tal, não podem admitir ser preteridos nem espoliados. Senhores absolutos da situação, não aceitam de forma alguma que suas mulheres se rebelem e decidam amar outros que não eles, a quem pertencem. Em resposta, Lima Barreto faz uma bela apreciação sobre a humanidade das mulheres, pois são “como todos nós, sujeitas às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores”. E termina a crônica com um grito em defesa do sexo frágil: “Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!”.

Em 1919, Lima Barreto publica o mais longo e importante artigo sobre o assunto: “Os uxoricidas e a sociedade brasileira”. Inicia relatando o hediondo assassinato de um filho pelo próprio pai, sob o pretexto de preservação da honra familiar. E parte do caso para provocar uma comparação: se crimes como este são imperdoáveis, como pode permanecer a aceitação destas nefastas execuções em nome da honra, quando aplicadas às relações sexuais entre marido e mulher? Como pode persistir a “tácita autorização que a sociedade dá ao marido de assassinar a esposa, quando adúltera”? O cronista enfatiza a necessidade de continuar escrevendo sobre o assunto, pois “as constantes absolvições de uxoricidas dão a entender que a sociedade nacional, por um dos seus mais legítimos órgãos, admite como normal e necessária” a punição de tal delito quando praticado por mulheres casadas.

Os julgamentos apenas reafirmavam as normas dominantes: o que era julgado num tribunal onde comparecia um uxoricida não era a conduta de um assassino, e sim a conduta sexual de sua mulher. De vítima, ela passava a ré. Isso ocorria porque o modelo ideal de mulher ainda era o de esposa doce e submissa, cujas principais virtudes seriam o recato, a dedicação e a fidelidade. Já para o marido tais qualidades não eram primordiais: dele se exigia, via de regra, não mais que dedicação ao trabalho, pois sua principal tarefa era prover o sustento da família. Para salvar o uxoricida, o advogado de defesa atacava a honra das mulheres, acusando-as normalmente de desavergonhadas. Por outro lado, “o trabalho do promotor [era] tentar provar que a assassina não era adúltera. Não podia ele, em sã consciência, desculpar o assassinato da mulher, por ser ela adúltera”, escreve Lima Barreto. Aos olhos de todos, a vítima do homicídio só não teria merecido a punição caso não fosse adúltera. Assim, o promotor se via obrigado a se ocupar não de incriminar o réu, mas sim de tentar provar que a vítima tinha um comportamento sexual lícito. O cronista aponta essa inversão de valores e de papéis, e argumenta que o julgamento de crimes de uxoricídio deveria ser desvinculado de qualquer apreciação da conduta sexual da vítima.

Ele termina sua denúncia com uma pergunta inescapável: qual o crime mais grave, adultério ou assassinato?

A leitura das crônicas de Lima Barreto é suficiente para torná-lo imune aos rótulos de seus contemporâneos. No lugar do suposto misógino e antifeminista, impõe-se o senso crítico de um livre pensador.  E dos bons.

(*) Eliane Vasconcellos é pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e autora do livro Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto (Lacerda, 1999).

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional

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