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A Vez de Morrer, o romance na era digital [Vilto Reis]

A Vez de Morrer, o romance na era digital


por Vilto Reis  
Artigo publicado Homo Literatus 

Esta é uma tentativa de pequeno ensaio/resenha/entrevista/matéria sobre o novo livro de Simone Campos: A Vez de Morrer (Companhia das Letras, 2014).

Booktrailer de “A Vez de Morrer”. Assista aqui!

1.

Na cultura indígena, a arara é considerada um símbolo solar por causa de suas exuberantes penas vermelhas. E os índios bororos acreditam que após a morte o espírito encarna nas araras.

Araras também é o nome do lugar onde se passa, em grande parte, o romance A Vez de Morrer. Mas não se pode dizer que a obra seja solar em si. O leitor atravessa o livro em meio a temporais e madrugadas ambientadas em bares, boates e festas particulares (apenas uma, na verdade). Sempre consultando um app no smartphone para saber quem está a fim de sair, de uma transa ocasional. O tom do livro tem muito mais a ver com a capa, de um azul cinzento mesclado com azuis mais escuros, em que figura a imagem de um mar agitado.

2.

Como um prólogo, o livro lança o leitor em um diálogo sobre corte de cabelo e, posteriormente, sexo. Sabe-se apenas que a conversa acontece em Toronto. Izabel, a protagonista, dialoga com um amigo, Greg. E esta abertura termina com uma mensagem no celular: “Minha querida, seu avô acaba de falecer. Me liga. Mamãe”.

A partir daí, acompanha-se a trajetória de Izabel em sua vida novamente no Brasil. Primeiro trabalhando na Vale como designer, porém dedicando seus finais de semana ao sítio onde o avô vivia, em Araras. Voltar a morar com a mãe não lhe agrada e, neste sentido, as fugas para a serra são seu próprio escape. Organizar o sítio se torna uma necessidade, realizada em solidão.


Em Araras, Izabel passa a se relacionar com os nativos, começando pela vizinha e sua pousada, mas nada muito pessoal, mais como uma tia distante. Há também um rapaz chamado Klay, que aparece num dia qualquer para lhe ajudar com questões do sítio. Além de uma busca constante para fugir de Marta, sua mãe, postas as diferenças de concepções de mundo, etc.  Porém, a relação mais interessante é a que vai se estabelecendo com Eduardo, dono de uma videolan local.

Eduardo também é focalizado como personagem, embora bem menos do que Izabel, e vez ou outra sua irmã, uma evangélica mãe solteira, Talita, da mesma forma. O rapaz toca a videolan, programa jogos e tenta viver a mediocridade das pessoas que o cercam. Tem um breve envolvimento com Sirlene, uma garota que participa de uma banda de rock cristão, mas ela é muito nova para ele, ou pelo menos assim lhe parece. O perfil de Eduardo é de um homem relativamente maduro, mas que não tem um objetivo de vida (talvez, à procura). 

3. 


Simone Campos (imagem: site da autora)

Conversa com a autora (em tempos de Facebook, isso fica mais fácil):

Simone, seu livro toca em pontos não tão convencionais na literatura – design, games, rock cristão (!?) –, mas essa mistura dá um up no contexto da história. Recentemente, falamos no site sobre a distância da tal “alta” literatura em relação à cultura pop. 

É comum os literatos associarem o que é visual à futilidade, e, se for visual e popular, como os games e quadrinhos, pior ainda. Por esse preconceito, um monte de áreas da experiência pós-moderna são classificadas como intocáveis e a literatura não trata dos problemas que acometem quem vive hoje – e depois reclama que perde relevância. Assim, vemos livros muito parecidos entre si, cujos personagens atormentados são dostoiévskianos, existencialistas ou beat. Vejo escritores inovando na forma (com livros interativos, por exemplo), mas ainda sendo conservadores nos temas – parece que ninguém tem celular com internet, ninguém liga pras redes sociais… não, eles não são fúteis assim. Eu tentei escrever um romance quase tradicional em que as pessoas fossem pessoas de hoje. Sinto falta de uma mistura mais integral e honesta. Afinal, um dos maiores inimigos da literatura é o lugar-comum. 

A Vez de Morrer também oferece um contraste interessante. Apesar de os personagens usarem muito a internet, como nós cotidianamente, parecem cada vez mais isolados em seus pontos de vista. Izabel, Eduardo, Talita, Marta, todos se mostram ilhados em suas próprias perspectivas (lembra um pouco o filme argentino Medianeras (2011)).

Na era dos smartphones, tudo anda mais rápido. Você não precisa encontrar as pessoas pessoalmente nem quando quer escolher um parceiro sexual (vide aplicativos de paquera). As pessoas aturam menos certos percalços da convivência que antes eram obrigatórios (como acordar cedo e ir ao escritório todo dia, ou ver um familiar com quem não se dá). Sendo assim, os motivos que sobram para desfrutar da presença e da companhia de alguém são a amizade, o amor, ou, sendo cínico, simplesmente o medo do isolamento. Para encontrar um amigo ou amor de verdade, ainda é preciso fazer do jeito antigo: transitar pelo mundo, conversar, ouvir, olhar… Acho que os smartphones nos liberaram para fazer isso mais tempo. Pode ser maravilhoso, mas aí você também está aberto a enxergar o pior das pessoas mais vezes. E é preciso se empurrar a sair para conviver, já que a tecnologia nos poupa até demais (no final, a Izabel entende isso e começa a encontrar com as pessoas mesmo sem “precisar”). 

Juro que me esforcei pra não fazer aquelas inúmeras perguntas bestas que sempre fazem pros escritores – tipo: por que você escreve? Desde quando? Sua protagonista é você? –, por isso, pra encerrar, peço que você seja legal com a gente e, além de já ter escrito um livro que fala pra nossa geração, indique alguns títulos ou autores que também têm essa pegada. 
Um livro que vai sair em português agora é o Infinda graça, do David Foster Wallace. É um livro gigante e mais com a experiência de quem cresceu nos anos 70-80-90, mas incorpora o pop sem medo e com ótimos resultados. Gosto de A menina sem qualidades, da autora alemã Juli Zeh, que trata de dois adolescentes niilistas tentando transformar o mundo a seu redor numa espécie de entretenimento, baseando-se em teoria dos jogos (ramo da matemática). É como se fosse um Ender’s Game na Alemanha atual, sem a ficção científica. Dos nacionais recentes, temos o Barba ensopada de sangue, do Galera. Tem presença de videogames e redes sociais, mas gosto mesmo é do tratamento honesto das facilidades e dificuldades que a vida moderna oferece a um homem solteiro hetero, de pornografia a bordéis, passando por namoradas cheias de subterfúgios. 

4. 

Medianeras (2011, dirigido por Gustavo Taretto) é um filme argentino que trata das relações amorosas na contemporaneidade. Na obra, temos duas personagens – Martín (Javier Drolas) e Mariana (Pilar López de Ayala) – na tentativa de buscar algo na vida, em meio à Buenos Aires prestes a engoli-los com sua arquitetura. A sensação ao assistir la película é de que quanto mais individualistas os personagens são, mais eles se tornam um padrão dentro da solidão urbana. Martín é um webdesigner que faz todo o possível para não sair de seu apartamento, organizando toda sua vida pela internet. E Mariana, apesar de ser formada em arquitetura, atua como decoradora de vitrines de lojas de roupa. Ambos vivem no mesmo quarteirão, caminham pelas mesmas ruas, mas não se encontram.



Cena do filme Medianeras 

Em Her (2013, dirigido por Spike Jonze), Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) é um escritor profissional de cartas sentimentais. As pessoas enviam pedidos de cartas para a empresa em que ele trabalha, e Theodore as escreve. Mas sua vida amorosa tornou-se um desastre após se separar de sua antiga esposa. Neste contexto, ele adquire um programa de computador capaz de se relacionar com pessoas. O filme foca neste relacionamento de Theodore com Samantha, o programa de computador. A direção de fotografia fez um trabalho primoroso, num visual retrô, pois é como se tivesse um filtro Instagram durante o filme inteiro.



Cena do filme Her
Por que citar estes filmes?

Pois eles discutem, embora de formas diferentes, as mesmas questões que aparecem em A Vez de Morrer.  Em menos de vinte anos, a humanidade foi afetada por, talvez, a mais violenta mudança nas formas de relacionamentos. Embora tenhamos acesso a quem quisermos apenas a um touch, parece que nos tornamos cada vez mais apáticos. Os efeitos dessas mudanças sociais serão perceptíveis apenas com o tempo, mas a arte já os tem abordado. 

5.

O romance na era digital seguirá existindo?

Numa das perguntas que fiz à Simone, ela respondeu: “Vejo escritores inovando na forma (com livros interativos, por exemplo), mas ainda sendo conservadores nos temas – parece que ninguém tem celular com internet, ninguém liga pras redes sociais… não, eles não são fúteis assim”. Realmente ainda falta, por parte de alguns escritores, uma maior sinceridade quanto ao que as pessoas estão vivendo e como elas se relacionam com estes problemas.

O romance sempre foi um gênero de recorte social, e a partir dele oferece ao leitor uma perspectiva de seu próprio tempo. Por que alguém enviaria uma carta, num romance contemporâneo, se pode enviar um WhatsApp? O gênero deve persistir sim, mas principalmente com o despertar literário para as possibilidades que o nosso tempo oferece.

Neste sentido, A Vez de Morrer, de Simone Campos,  cumpre exatamente o que se propõe, sem precisar se dedicar a páginas e páginas de existencialismo, e até com bom humor. #BomLivro.


Vilto Reis-Editor e idealizador do site Homo Literatus, vê na leitura uma das formas de suportar a vida (ainda não descobriu outras, mas para ter tanta gente viva, deve ter). É um escritor de ficção em formação.

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