AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (16) [Rubens Jardim]
de cor como receita de viver
e aqueles que sorriam pelas costas
recitarão meus versos sem os ler
Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que fui um mar misterioso
onde quem navegou não esqueceu
Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que era poesia e não loucura
meu jeito de sonhar todos vocês
Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
perguntarão por que vivi tão pouco
sem dar-lhes tempo de me perceber
— e aqueles que sorriam pelas costas
recitarão meus versos sem os ler
POEMA DAS MÃES
Para Lygia, Natália, Marina e Almenara
AS MÃES SÃO BONECAS QUEBRADAS QUE NÓS ESQUECEMOS NO SÓTÃO
UM DIA FORAM ROMÂNTICAS E AMARAM DESESPERADAS
RESPEITEM O SEU SEGREDO QUE EXPLODE EM SÚBITAS LÁGRIMAS
EMBORA PAREÇAM ESCRAVAS TODAS POSSUEM UMA ALMA
NA VERDADE SÃO MULHERES QUE SONHARAM APAIXONADAS
E UM DIA SEM TER REMORSOS DESPEDIRAM-SE DE CASA
NA VIDA E NO ROMANCE SÃO ESTRANHAS PERSONAGENS
PERDIDAS DE SEUS VOLUMES NA POEIRA DAS ESTANTES
EU SOU A QUE ENSAIOU O VÔO MAS PERMANECEU NA PRAIA
AQUELA QUE CRUZOU O PORTO MAS VOLTOU NA HORA MARCADA
SALVOU-ME A MARESIA DO CONVÉS DOS TRANSATLÂNTICOS
E O HÁBITO DE REGER OS PÁSSAROS AO CHEGAR A MADRUGADA
OS PARTOS COBRIRAM MINHAS ASAS DE RAÍZES E FOLHAS DE ÁRVORES
E TRÊS ROSTOS DIFERENTES COMPLEMENTAM MINHA FACE
O JEJUM ME DEVOLVEU A PRIMEIRA VIRGINDADE
E EU ME TORNEI A MÁRTIR DE UMA ESTÓRIA EXTRAORDINÁRIA
AS MÃES SÃO APENAS MULHERES ASPIRANDO À DIVINDADE
O ESPÍRITO DE AVENTURA SUBLIMADO NA PAISAGEM
CRITICADAS POR SUAS FILHAS SOBREVIVEM COMO FADAS
SÃO AS PRIMEIRAS MURALHAS QUE DESEJAMOS QUEBRADAS
ASSIM COMO ESSAS BONECAS QUE NÓS ESQUECEMOS NO SÓTÃO
Florbela Espanca, eu sou Virginia Woolf
amante de Essenine e Sá-Carneiro
sobre os campos; de trigo de Van Gogh
Compreendo mais Holderlin e Nietzsche
que a loucura de Kant ou de Descartes:
tudo que em mim pareça comedido
não, passa de uma máscara de vidro
Mato Grosso
Meu irmão é um cowboy guiando a kombi
calado,
premonitório.
Ele atravessa os véus dourados de poeira
estendidos na estrada a dois palmos do chão.
Outra vez é essa hora do dia
quando o olhar procura os últimos sinais de luz
entre a faixa violeta dos morros e a unha da lua
outra vez essa hora que unifica os mundos.
e em Minas Gerais, no Mato Grosso, litoral paulista,
em Manhattan que eu não vi, campos tristes,
outra vez, é essa hora,
quando as coisas se lamentam.
choro de bois, sinos graves,
mulher louca de sexo e tédio
desolada
porque tudo é tão lindo e nenhum deus existe.
Corte de cabelos para ficar triste
Tipo faça-você-mesma. Trabalho incansável.
Pode durar uma noite -- ou mais -- fio por fio --
a memória na ponta da tesoura,
obcecada,
Medo crescente. Medo até a paixão.
Ou até conferir pelo espelho:
aquela lá morreu mesmo.
Caminhar no escuro
À frente, nem o vulto de uma luz.
Breu sem meias medidas.
Atrás, nada que faça lembrar
o percorrido.
Só o coração, na caixa preta,
vibra a agulha da bússola.
Caminha-se assim,
nem tanto a esmo:
pode-se dar um nome a cada passo
assim como a cada dia
com seu colar de minutos
sua falta de começo
sua falta de fim.
na solidão das palavras
extravio-me
ondas de fogo
gestos estranhos a mim
um pavor de não ser eu mesma
Quinta
crianças se revoltam
no parquinho
lutam para se livrar das mães
opressoras
passantes cumprem seu papel e
passam
pássaros não voam às estrelas
na tosca aldeia
e o pinheiro
adentra galhos
ao shopping
dio mio, árvores
aderindo ao consumo?
caos interno
estilhaços
vazios
são navios
atracados
porto inseguro
viagem à vista
no veludo das mãos
na pata do tigre
na unha afiada e
filósofa
PRIMAVERA
Da página aberta
salta uma pétala seca:
Primavera antiga.
VERÃO
Cartão de Natal.
Jesus ainda está dormindo
no colo de Maria.
OUTONO
O velho espantalho
e o menino da cidade.
Ambos espantados.
INVERNO
Sem força nas asas
O marimbondo de inverno.
Sonhos do passado.
PARA ELIS REGINA
(Escrito no dia, mês e ano de sua morte, em 19 de janeiro de 1982)
Estavas aqui
há tão pouco...
Já não estás.
Será que já não és?
Tua voz me percorre
tua coragem
tua presença e tuas fugas
teus ritos
teu concreto e miragem.
O pouco do tempo que ficaste
vira caleidoscópio
do tanto que foste.
Aos poucos, muito aos poucos
vou aceitando
a certeza dessa ausência imprevista
vertigem, soco na alma.
Aos poucos, muito aos poucos
te sentirei
flor desabrochada
noutro espaço
que não sabemos.
Pássaro
voa sem medo
sem medo amplia
para além da garganta
os limites humanos
do teu canto.
Saudade
aceita em paz
os ritos desta passagem.
não sabe das estações
nas aprendi nomes
e o que sei deste momento:
Quero florescer no outono.
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