Menina Toc Ploc
Outro dia, passeando com
meu marido, de repente senti que tinha uma perna mais curta que a outra. Coisa
pouca, de uns dois centímetros. Não me desesperei. Simplesmente senti um
caminhar torto, manco. Quando criança, havia um amigo do meu pai que se chamava
“Zé Manquinho”. Eu nunca tinha visto um sobrenome daqueles: “Manquinho”.
Precisei de um tempo pra entender que era chamado assim porque mancava. Então,
ao sentir que era torta, fui invadida por uma poesia doce, e me lembrei de
Manoel de Barros:
“Prefiro as linhas tortas,
como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só para poder
andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco,
torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque. Se eu tivesse uma
perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto
subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc. Eu seria um destaque. A própria
sagração do Eu. (...)”.
E eu, com quase trinta,
repentinamente havia ganhado o privilégio divino de ter uma perna mais curta e
ficar torta. Depois de alguns minutos em explosiva glória interior, perguntei
ao meu marido: Às vezes você tem a impressão de ter uma perna mais curta que a
outra? Ele disse que “não, por quê?”. Ora, porque eu tenho essa impressão. “Você
acha que eu manco?”. Não, respondi. Eu tenho a impressão de que EU manco, e não
você. Dormi feliz pela sagração do EU. O Zé Manquinho, por que será que tinha
ficado manco? Nascera assim? Tivera paralisia infantil? Nunca saberei. Ele
andava segurando o joelho e seus passos eram assimétricos.
Muitos dias depois,
resolvi que usaria aquele mesmo sapato preto que estava no dia do passeio.
Quando fui calçá-lo, notei que havia algo diferente. Um salto estava gasto pela
metade. Com tristeza nos olhos, disse para meu marido: Veja, não tenho uma
perna mais curta, o salto é que estava estragado. “Em tempo de ter um problema
na coluna!”. Foi o que ele disse na tentativa de consolar minha decepção.
Decidi que deveria levar para o conserto. O sapateiro riu de mim e disse: “Como
foi que você não percebeu que estava com essa diferença toda de altura?”. Eu
percebi, mas achei que só estava andando certo em linhas tortas, como Deus
gosta. O sapateiro tem o ofício de corrigir o andar torto dos outros, como Deus
gosta.
Isloany Machado -
Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista, membro da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de
MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo
Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora
da ciência e costuradora de palavras por opção.
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