“Uma boa curta é como um
bom poema”
Em Vila do Conde,
programadores de três festivais de primeira categoria defendem a curta-metragem
como um formato nobre e os seus autores como cineastas de corpo inteiro.
Anna Henckel-Donnersmarck
é peremptória. “Diz-se muitas vezes que uma longa-metragem é um romance, mas
isso não faz da curta-metragem um conto. Uma boa curta é antes como um bom
poema; tem uma voz muito própria, sincera, corajosa, terna, ousada.” As declarações
de uma das programadoras da competição de curtas do Festival de Berlim durante
o Curtas Vila do Conde 2014 definem por que é que a curta-metragem é um formato
tão digno, tão nobre como o filme de fundo.
É uma discussão subjacente
à própria existência do Curtas ao longo dos últimos 22 anos, mas ganha uma nova
dimensão no actual contexto da produção portuguesa. O formato curto ganhou
entre nós assinalável importância como “porta de acesso” para novas gerações de
cineastas – a “geração Curtas” de que Augusto M. Seabra falava –, mas continua
a ser percepcionado como “menor” ou como “cartão-de-visita”. É possível
ultrapassar essa “menorização” da curta?
Foi esta a questão
discutida num encontro promovido na passada quarta-feira pelo Curtas no âmbito
do seu programa de formação Campus, com a presença de três programadores de
festivais internacionais. A Anna Henckel-Donnersmarck juntaram-se Fabien
Gaffez, responsável pela secção de curtas da Semana da Crítica de Cannes (e
este ano membro do júri de Vila do Conde), e Peter van Hoof, director da secção
de curtas no festival de Roterdão.
Para todos eles, fazer
existir a curta-metragem pelo meio da barragem mediática de um festival de
primeira linha onde os holofotes estão sistematicamente assestados noutras direcções
é a batalha a travar. Sobretudo quando muitos têm tendência para considerar a
curta como um filme de “segunda classe” e se torna quase impossível viver só de
fazer curtas, como apontou Peter von Hoof. “Alguns conseguem vender os seus
filmes às televisões, ou ter alguma exposição em sala. Mas as curtas não têm a
possibilidade de uma exposição 'tradicional'.”
Precisamente por isso, a
visibilidade é o desafio principal, porque, como defendeu Fabien Gaffez, a
curta não é um formato menor, quem o faz não é um realizador de segunda classe.
“Os realizadores das curtas não são os realizadores de amanhã”, disse. “Já são
os realizadores do presente, já são cineastas.” Anna Henckel-Donnersmarck
explicou que a necessidade de fazer existir a curta-metragem como um formato
autónomo levou a uma redefinição da secção de curtas de Berlim a partir de
2006: em vez de serem mostradas em primeira parte de longas, os filmes
seleccionados passaram a ter sessões individuais abertas ao público (com grande
afluência) e a atribuição dos prémios foi incorporada na cerimónia nobre de
encerramento. (O que permitiu, por exemplo, a João Salaviza subir a palco em
2012 para receber o Urso de Ouro das curtas por Rafa, quando anos antes se
teria ficado por uma cerimónia discreta e pouco frequentada num anónimo salão
de hotel.)
Peter van Hoof não hesitou
igualmente em insistir na necessidade do grande ecrã, da projecção em sala,
como factor central dessa dignificação. Mesmo que Roterdão esteja
particularmente interessado em obras que existam no cruzamento intertextual com
artes plásticas ou performativas – evocando as exposições temáticas que o
Curtas mostra em simultâneo na galeria Solar – é na sala que o filme
verdadeiramente ganha existência. Para o holandês, a questão de a curta ser muitas
vezes entendida como mero “complemento” numa sessão de uma longa também não
resulta. “Não podemos pedir às pessoas que tentem digerir uma curta com mais de
dez minutos apresentada antes de uma longa-metragem, por exemplo.” (À atenção
dos distribuidores portugueses...)
A ideia, partilhada por
muitos espectadores e observadores portugueses, do Curtas como “lança em
África” ou “Dom Quixote lutando contra os moinhos” não é, como se vê, um
exclusivo nacional; antes pelo contrário, é comum aos festivais de “primeira
categoria” presentes neste encontro. Anna Henckel-Donnersmarck evocou a
insistência de Berlim em mostrar os seus filmes em sessões abertas ao público
não especialista numa das salas populares da cidade, o Colosseum, mas também a
parceria realizada com a edição online do jornal Die Zeit, que disponibiliza ao
longo de todo o ano as curtas seleccionadas para o concurso, com uma adesão
surpreendentemente elevada dos leitores.
Mas, em resposta a uma
pergunta da plateia, regressa a unanimidade: por estarem a trabalhar dentro de
festivais que já têm estruturas montadas e marcas reconhecidas mundialmente,
existe uma liberdade de programação e de sobrevivência difícil de encontrar em
certames mais pequenos. Mesmo que há poucos anos tanto Berlim como Roterdão
passassem a exigir o pagamento de uma “taxa de inscrição” que ajude a cobrir os
custos envolvidos, a sobrevivência das secções não está nunca posta em causa.
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