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Lembrança de velhos [Roniwalter Jatobá]

Lembrança de velhos


Durante algum tempo da vida, realizei trabalhos fascinantes. Em um deles, coisa rara, reunia prazer, conhecimento e sabedoria. Foi num tempo em que colhia depoimentos de aposentados da antiga Light, pois pensava em fazer um paralelo sobre as profissões que se acabaram para sempre. Ideia louca? Tenho exemplos. O apagador de lampiões, no século passado e, mais próxima de muita gente, o motorneiro ou condutor de bondes. 


Muitos idosos por modéstia, no entanto, consideravam sem importância a sua vida pessoal e profissional. Quase sempre, convencia-os com uma história que ouvira em algum lugar e nem sabia se na verdade havia mesmo acontecido.

Era assim – eu contava. Um dia, o famoso pregador norte-americano Fulton Sheen solicitou a presença de um jornalista em sua igreja para uma reunião de fiéis. Surpreso, ele perguntou:

– Mas, haverá alguém importante nesta reunião?

O religioso, então, respondeu com entusiasmo:

– Sim, todos. Todos são importantíssimos.

A historinha funcionava. Depois, era só preparar o gravador e partir para o agradável bate-papo. Um chegou a me confidenciar que era prazeroso lembrar-se de coisas do passado. Quando findou seu depoimento, até ficou assustado com os fatos que havia presenciado na sua trajetória paulistana, e disse:

– Quem diria que a minha vida poderia servir para contar uma história.

Nesta época de Copa do Mundo, quando todo mundo só fala de futebol, lembro de José Penha.

– Tenho orgulho de ter sido um dos primeiros a jogar em campo iluminado. Sabe que o primeiro campo iluminado do mundo era da Light? Ficava na Várzea do Glicério e pertencia à Seção de Linhas e Cabos. O sistema de iluminação foi idealizado por um colega nosso, o Severino Gragnani. Foi ele, também, o primeiro a mandar fazer uma bola branca para jogos noturnos – me revelou.

José Penha nasceu no interior paulista, em 1915. Seis anos depois, a família mudou-se para São Paulo.

– As minhas primeiras recordações são do bairro da Luz, onde moravam meus avôs maternos. Eles forneciam aves e ovos para a Força Pública e eu, garoto, acompanhava a entrega das encomendas aos quartéis.

As lembranças chegavam à sua mente como densa garoa por uma São Paulo em pé de guerra: a revolução de 1924, quando mal podia dormir com o barulho das metralhadoras e, nas manhãs bem cedo, quando saía em busca de pentes de balas abandonados nas trincheiras; o susto na revolução de 30, quando soube que Getúlio Vargas mandou bombardear a Usina de Cubatão. A mais marcante, porém, foi a revolução de 32, ao assistir a morte de quatro estudantes na Praça da República.

Foi aí que contagiado pelo clima de patriotismo vivido em São Paulo, pensou em se alistar na luta. Com alguns amigos foi até a Faculdade de Direito do largo de São Francisco, onde funcionava um posto de voluntários. Mas, na hora, lembrou do pai já morto e da mãe precisando dele, e desistiu. Em vez disso, largou a escola e começou a procurar emprego, o que não era fácil. Acabou chegando na Light. Iniciou como mensageiro em agosto de 1932 — o prédio da empresa da Rua Xavier de Toledo, no centro paulistano, ainda cheirava a novo.

– Naquele tempo eu era muito inquieto e participava de tudo. Imagine que até ajudei a fundar o nosso sindicato. Lá, o meu número de inscrição era 210.

Conheceu sua mulher, Tereza, num baile carnavalesco.

– Os carnavais daquele tempo eram muito diferentes dos de hoje. Os casais dançavam fantasiados, faziam cordões… Todos levavam confete e serpentina para o salão.

Casou-se em abril de 1940, na igreja da Boa Morte, na Rua do Carmo.

– Foi tudo muito simples e, depois da cerimônia, fomos em lua-de-mel para Santos. O ônibus era movido a gasogênio. Era tempo de guerra, havia racionamento de combustível, e os veículos eram movidos a carvão. Todos possuíam um grande cilindro preto, colocado verticalmente na traseira, onde o carvão era queimado para produzir o gás que acionava os motores. Era muito sujo e queimava as pessoas.

Frequentava os bailes patrocinados pela Associação Atlética Light and Power (A. A. L. P.) no Clube Germânia, na 24 de Maio; no Clube Lira, na Rua São Joaquim; e nas estações de bondes da Vila Mariana. Também ia à sede da entidade no Sacomã, onde aos domingos sempre havia piqueniques.

– Um trem especial era contratado para nos levar a Santos. Descíamos a serra cantando e brincando. Quando chegávamos, bondes especiais nos esperavam para nos conduzir até a praia. A banda ia junto, tocando. Depois do banho de mar vinha o almoço e, num salão alugado pelas redondezas, promovia-se um baile. A volta era lá pelas cinco da tarde. Isso só acontecia aos domingos, pois nos sábados trabalhávamos até o meio-dia: era a semana inglesa.

Aposentou-se em 1983, depois de 51 anos de trabalho.

– Ainda me sentia muito bem. Pena que nesse período eu fui perdendo colegas. Sabe que me lembro de todos? Estou ligado a eles por um hábito que venho mantendo: quando saio de casa para um passeio a pé, vou me recordando de cada um deles e vou rezando. Lembro de um e rezo para ele. Lembro de outro e rezo. Faço sempre isso. É o meu modo de sentir saudade.

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