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DIÁRIO DE BORDO [Jean Marcel]

DIÁRIO DE BORDO


03 de maio – 1º dia

Nem acredito! Nossa... Mal consigo escrever de tanta alegria! Parece mentira, mas finalmente aconteceu. Não estou cabendo em mim de tanta emoção. Hoje de manhã, quando saí da Marina da Glória navegando com destino ao horizonte, o vento batendo no meu cabelo e somente o sol como testemunha, posso dizer que me senti mais vivo do que nunca! Rio de Janeiro... Vou sentir saudade de você!
Meus amigos me chamaram de louco quando anunciei que venderia tudo o que tenho para adquirir esse barco que agora é a minha casa. Vou pro Caribe, vou pro Marrocos, vou dar uma volta ao mundo... Sei lá onde vou... Vou aonde o vento me levar...

04 de maio – 2º dia

Meu diário... Hoje foi o primeiro dia que acordei no barco. Se Deus quiser, o primeiro dia de muitos no que promete ser uma volta ao mundo pelos paraísos mais bonitos do planeta. Ah, que delícia esse cheiro de maresia! De manhã, navegando sozinho, segurando firme o timão com a linha do horizonte à minha frente e com a cidade ficando para trás, cada vez mais distante, a sensação era de intensa liberdade. O barco seguindo para onde eu determinasse. Senti pela primeira vez o meu futuro à mercê da minha vontade. Ao lado do barco um golfinho saltitante partilhava da minha sorte, acompanhando meu itinerário.
Navegando a mais de 20 nós, velas infladas, prendi o leme e fui até a proa admirar a imensidão do mar. Abri os braços e gritei bem forte: Liiiiiiberdaaaaade! Depois, tirei toda a roupa e deitei completamente nu em cima do deck. O sol estava escaldante, mas não me intimidei, era como se ele me abastecesse de uma energia vital! E depois, decidi que marca do calção nunca mais. Fiquei ali por horas, estarrado, pensando em nada, seguindo com o olhar as gaivotas que voavam logo acima de mim. É o contato com a natureza que eu sempre sonhei! Que pássaros fantásticos... Que pontaria... Nem o cocô na testa tirou meu bom humor! Acho até que já posso dizer que sou um lobo do mar. Tirando o desconforto por conta do balanço do barco que me trás algum enjôo, acredito que essa vida foi feita para mim.

05 de maio – 3º dia

Acordei sem conseguir me mexer. Devo estar com queimaduras de terceiro grau pelo corpo todo. Só agora percebi o erro de não ter trazido protetor solar. Minha boca está igual a uma couve-flor e o meu “pigulim” parece um pimentão assado. A ardência é tanta que me cobri inteiro de Hipoglós e agora estou parecendo um boneco de neve. Sorte que além daquele golfinho, que pareceu gargalhar assim que me viu assim, ninguém mais me flagrou nesse estado ridículo. De resto, a viagem é um sonho... É tudo alegria! Só estou preocupado se terei comprimidos de plasil suficiente até o próximo porto! Este enjôo está me matando.

06 de maio – 4º dia

Estou um pouco melhor das queimaduras de sol. Já consigo, inclusive, erguer parcialmente o braço e coçar atrás da orelha. Talvez amanhã eu já possa dormir deitado novamente e em um ou dois dias consiga fazer xixi sem chorar. Continuo muito empolgado com a viagem. Nada me desanima! Por hora, tentarei evitar o sol. Passei o dia na cabine jogando xadrez contra o computador. Espero me adaptar logo à cozinha e ao fato de nada parar no lugar. O almoço de hoje esparramou três vezes enquanto eu o preparava. Almocei no chão! Tudo bem, nem me importei muito, afinal, não era grande coisa... essa comida neofilizada tem um gosto horroroso mesmo!

07 de maio – 5º dia

Esta noite acordei com uma buzina ensurdecedora. Achei que estivesse tendo um pesadelo, antes fosse! Quase fui abalroado por um transatlântico. Passou tão perto que pude até ouvir a música da macarena que tocava no salão de baile. Que susto! Parecia um shopping center vindo na minha direção no meio da escuridão. Não sei quem tremia mais, se meu barco ou eu próprio! Acho que de agora em diante terei de cumprir turnos de uma hora de vigília intercalados com meia hora de sono durante a noite. Dormir a noite toda, nunca mais!
Durante o dia não se tem muita coisa para fazer. Pra qualquer lugar que eu olho só vejo água! Meu passatempo predileto é observar a esteira de espuma que a embarcação produz no mar. Passo horas contando as bolhas. Também jogo xadrez contra o computador, mas nunca vencer está começando a me irritar.

08 de maio – 6º dia

Meu diário... Ainda não me adaptei as vigílias noturnas, mas tirando o frio, a câimbra, a tensão de ser atropelado a qualquer momento e o sono incontrolável, asseguro que estar navegando sozinho no meio do oceano é uma experiência incrível! Eu ouvi falar de que o céu é muito mais estrelado quando se está longe das luzes da cidade... Pena que tem chovido todas as noites! E manhãs... E tardes também... PQP, não para de chover!

Quando comprei esta embarcação o vendedor me falou que era tão moderna que só faltava falar... Pois é justamente o que mais tenho precisado: alguém com quem conversar! Às vezes falo sozinho para me certificar de que não fiquei mudo. Hoje de manhã me peguei discutindo com um golfinho. Até dei um nome pra ele: Reginaldo. Será que estou ficando louco? Talvez seja só um pouco de solidão. A boa notícia é que pelo menos já consigo cozinhar sem que a comida caia no chão a cada vez que o barco joga pro lado com o movimento das ondas. Só não sei como é que depois vou lavar as panelas, pois as preguei no fogão num raro momento de descontrole mental. No mais, sigo feliz da vida...

09 de maio – 7º dia

Confesso que estou um pouco entediado. Pensei em fazer uma pescaria para me distrair, sem falar que essa comida em lata já não desce mais... mas só de pensar em tentar fixar a isca no anzol enquanto esse barco balança sem parar já me dá vontade de botar os bofes pra fora. E depois, onde arrumaria uma minhoca?

11 de maio – 9º dia

Como se pode notar, ontem eu não registrei nada neste diário de bordo. Tive uma pequenina crise de fúria e lancei o computador ao mar com monitor e tudo durante uma partida de xadrez. Custava ele me deixar vencer uma única vez? Uminha? Agora não sei como farei, já que as cartas náuticas estavam todas lá, armazenadas no HD. Embora eu não soubesse interpretá-las, mesmo assim traziam-me uma sensação de segurança. Tento ficar calmo. Sei que tudo tem jeito. O importante é manter o moral elevado! E depois, há sempre a possibilidade de me guiar pelas estrelas. Quer dizer, isso se parar de chover ainda nesse século...

12 de maio – 10º dia

Hoje completa uma semana que estou nessa merda de barco desafiante aventura. Fiz um bolo de morango neofilizado para comemorar. Comi metade e ofereci a outra parte ao Reginaldo, o golfinho meu amigo. Ele não quis. Bem que ele fez: vomitei a minha metade meia hora depois. Deve ser esse cheiro de mar que está me deixando mareado. Não suporto esse odor! E ficar olhando para o céu com o barco balançando em busca de alguma orientação através das raras estrelas que aparecem também não tem ajudado muito. Mas tudo bem, levo na boa, bola pra frente! É só mais um desafio tentar distinguir as Três Marias do Cruzeiro do Sul...

13 de maio – 11º dia

Hoje não quero escrever nada. Na verdade, não tenho NADA pra contar. Hoje não aconteceu NADA de interessante. NADA, NADA, NAAAAAADA!

14 de maio – 12º dia
Idem.

15 de maio – 13º dia

Bla-bla-blá bla-bla-blá bla-bla-blá...

16 de maio – 14º dia

Meu diário... Sabe... Não ando muito animado ultimamente. Peguei uma calmaria que faz com que eu simplesmente não saia do lugar. Com a falta de vento, o mar parece uma piscina de condomínio, só que sem vizinhas de biquíni. A propósito, peço desculpa por tê-lo jogado ao mar. Foi só um momento de descontrole. Prometo reescrever as folhas borradas. Deu um trabalho danado voltar pro barco depois de buscá-lo onde boiava, sabia? Teria sido mais fácil se eu tivesse me lembrado de baixar a escadinha antes de pular na água. Se bem que o casco do barco até que ficou interessante com aquelas marcas de unha.

Pensei em voltar a escrever aqui para ter algo que me distraia. Hoje finalmente aconteceu algo novo. No final de tarde um enorme pássaro apareceu e pousou no mastro da minha embarcação. É um bom sinal: devo estar próximo da terra firme. Onde será que estou? Costa da África? Europa? O pássaro era lindo e me lembrou a gaivota que vi no dia em que parti. Fiquei com lágrima nos olhos. Nunca me esquecerei daquela gaivota voando no meu primeiro dia embarcado. Um símbolo de liberdade... Refeito da emoção, acertei o bichinho na cabeça com uma botinada. Apesar do olhar de reprovação do Reginaldo, que me observava a distância, fritei-o e o comi no pão, imaginando que fosse um McChicken.

17 de maio – 15º dia

Esta noite choveu menos. Durante o turno das 3h20m vi um avião cruzando o céu. Voava baixo como se tivesse algum aeroporto próximo. Por algum motivo fiquei gritando como um náufrago. Felizmente, assim como eu, tudo estava molhado no barco. Digo que felizmente porque, num gesto impensado, tentei colocar fogo na embarcação para chamar a atenção do comandante daquela aeronave. Como eu queria estar lá... no avião. Nem precisava ser na 1ª classe. Deus me perdoe pelos maus pensamentos que tive, mas cheguei a desejar que o avião caísse só para eu ter companhia! Já pensou, uma aeromoça no meu barco?! Se bem que com a sorte que ando, era capaz de cair um comissário de bordo no meu colo!

18 de maio – 16º dia

Acho que a falta de uma figura feminina está me fazendo mal. Apelei! Escrevi uma carta para minha ex-mulher dizendo que a aceitaria de volta e lancei ao mar dentro de uma garrafa. Até prometi nunca mais esconder o controle remoto e confessei que era eu que escovava o rex com sua escova de cabelo. Foi um momento de sinceridade. Um gesto pra provar que sou um novo homem. Só pedi que ela prometa nunca mais depilar o sovaco com a minha lâmina de barbear. Passei o resto do dia olhando o mar esperando uma resposta dela... E nada! Então, tomei uma decisão: Mudei o nome do Reginaldo para Regina. Que mal tem? Não... De forma alguma... Não há segundas intenções nisso, mas é que pra falar a verdade eu nunca soube identificar o sexo de um golfinho. E depois, pensando bem, até que ela é bonitinha... A Regina!

19 de maio – 17º dia

7h00. Precisava registrar aqui a novidade. Acabei de acordar e avistei sinal de terra na linha do horizonte. Espero que o tempo firme e que assim eu possa divisar onde estou. Que emocionante: o primeiro porto da minha viagem! Será que são amistosos? Será que conseguirei me comunicar? É nessas horas que me arrependo de ter nunca ter passado do verbo to be!

10h00. O sol finalmente saiu, mas o vento ainda não deu o ar da sua graça, deixando a vela mais murcha que a bunda da minha ex-mulher! Estou escrevendo no intervalo das minhas remadas. Amarrei uma frigideira na ponta de uma vassoura para, quem sabe, chegar mais depressa à terra firme. Confesso que estou bem ansioso. Ainda não consegui identificar a nacionalidade dos meus futuros anfitriões, mas sei que se trata de uma cidade desenvolvida, pois, mesmo de longe, já consigo enxergar vários prédios e casas junto à orla. Menos mal que cai num lugar civilizado, ouvi dizer de tribos da África que, mesmo nos dias atuais, ainda curtem carne humana.

Parei de remar alguns minutos para fazer a barba. Quero estar apresentável!

12h00. Já estou bem próximo da praia. Talvez uma ou duas horas se eu não esmorecer na remada.   Há cerca de dez minutos uma lancha puxando um esquiador passou próximo do meu barco, mas não atendeu aos meus chamados. Xingar também não adiantou! Tenho que lembrar que apesar de eu estar vivendo uma aventura, para os nativos é só mais um dia como qualquer outro.

13h00. Um casal de jet-ski se aproxima atendendo aos meus apelos. Estou com o diário e uma caneta em mãos. Quero anotar tudo nessas folhas para não perder nenhuma frase do que for dito. Pretendo ter tudo registrado para quando eu voltar da minha aventura. Quem sabe minha historia não vire um best seller?!

Eles estão mais próximos. Acabei de acenar e gritar “olá” para eles! Li, não lembro aonde, que “olá” é uma palavra internacional. Em seguida, tentei me comunicar em inglês, mas como não sou fluente, me senti em um filme pornô:

“Yehhh! Oh, yehhh,” Desculpa a letra tremida, mas é que estou nervoso.

“I from Brazil!” gritei para o casal. “Nós também!” eles devolveram. Surpresa: eles falam português! Que sorte! “Onde estou?” questionei.

“Baía de Guanabara. Rio de Janeiro” eles responderam.

“Ops... ”

*  *  *  *  *


Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com

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