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Rarefeito [Cinthia Kriemler]

WEEPING WOMAN/ PABLO PICASSO
Rarefeito

O cheiro abafado da primeira chuva. O calor insuportável se soltando do asfalto, das calçadas, dos prédios. As narinas respirando pesado o fedor das bocas-de-lobo. Você e eu inertes, irritados com o ar parado e com a ruptura inconveniente da rotina.

O vinho tinto. Uma escolha tão errada. Nenhum de nós pensou que a chuva seria um fiasco de dez minutos. Nós nos preparamos para uma noite úmida, que esfriaria lentamente. Não para este suor escorrendo na nuca, no rosto, por entre as pernas. Não para esta noite que pede conversas sem vinho, diálogos que não sabemos acontecer. Nós que temos sido apenas linguagem de corpos. Serpentes que sibilam sem palavras. Palavras são perigosas. Elas mentem. E prometem e pedem e cobram e humilham. Mesmo assim, hoje eu queria as palavras. Para contar algumas coisas. Que amo você. Que sinto a sua falta. Que tenho um segredo. Mas continuo silêncios. 


Chuva idiota. Calor idiota. Esse cheiro de esgoto entupido me provocando náuseas. Mentira. As náuseas não têm nada a ver com isso. Têm a ver com o que eu ia contar a você. Esta noite, depois do sexo. Nua. Por dentro e por fora. Com uma taça de vinho na mão. 

Mas não vai dar. Hoje, não. Fica para outro dia. Para dia nenhum. Talvez na próxima chuva eu nem tenha mais o que dizer. Talvez até lá eu tenha decidido se carrego este você dentro de mim ou se me esvazio para me gestar em solidão.


Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.