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O trovador na linhagem policial [Paulino Júnior]


O trovador na linhagem policial 

por Paulino Júnior 

Não se pode declarar que um romance policial foi executado e sair impune. Gêneros narrativos bem demarcados, tal como a ficção científica e o terror, exigem mais do que a prestação de homenagem para ser levados a cabo. Não basta polvilhar uma história com trivialidades do gênero para dar conta das aparências. E isso sob o risco do pretensioso escritor cometer uma obra, em vez de concebê-la.

Rodrigo Garcia Lopes assume esse compromisso em O trovador, romance de 406 páginas recém-lançado pela Editora Record. Há as mulheres voluptuosas, os tipos durões, uma galeria de personagens de caráter duvidoso, os crimes, o mistério e o detetive. No entanto, há o algo a mais que legitima a condecoração de “romance policial”.

Londrina é a cidade que encerra os pecados capitais dos personagens, com participação especial da vizinha Rolândia, e coadjuvantes estrangeiras como a nebulosa Little Tew e a solene Londres. Amplitude geográfica que se estabelece pela ligação entre a cidade no norte do Paraná e a empresa responsável por sua construção, a britânica Parana Plantations Limited. Ficção policial que não tenha mazelas, trapaças e crimes hediondos ligados a grandes interesses econômicos e políticos, não se dá ao respeito. Portanto, O trovador traz um mote convincente para deslindar temas como colonialismo, exploração agrária e negócios escusos com peso na política internacional.

O ano é 1936 e o núcleo central dos personagens é calcado em pessoas reais com destaque na fase embrionária da cidade de Londrina. Praticamente a cada página o romance revela o quanto o autor precisou se debruçar sobre livros, documentos e registros históricos para elaborar mais que um pano de fundo e trazer a atmosfera de uma cidade sendo erguida. Em algumas passagens isso aparece até com certo didatismo que não se integra muito bem à trama – típico dos “romances históricos”, que, na preocupação de construir a paisagem de época, terminam exibindo apenas quadros decorativos.

Em contrapartida, justamente no tocante às descrições no desenvolvimento da trama que o autor acerta a mão. Um componente indispensável na argamassa narrativa do romance policial é a apresentação de cenários e descrições dos personagens, físicas e gestuais, que faz com que o narrador guie o leitor ao ponto de transformá-lo em testemunha ocular. Eis o caminho tênue e tenso para o escritor que requer sua inscrição no gênero policial. O controle entre a precipitação e a morosidade no deslocar das peças no tabuleiro, fazendo com que o leitor/espectador se sinta cúmplice e parceiro do detetive, é o atestado da bem sucedida narrativa de suspense.

O título da obra – O trovador – também é digno de nota. Simples e emblemático, disfarça o criminoso e coloca a poesia para orbitar o centro da trama. Não menos sugestivo é o personagem que faz a vez de detetive, um tradutor. Adam Blake precisa decifrar a mais complexa pista que um assassino meticuloso poderia reservar: um poema creditado ao poeta provençal Arnaud Daniel. Vale lembrar que Rodrigo Garcia Lopes é poeta reconhecido e tradutor de poesia, portanto, não é por acaso que alude ao ofício que precisa aliar intelecto e intuição para desvendar o sentido por detrás das palavras que se conluiem em versos.

Também entrevejo no recurso à composição medieval outra referência que o autor se mostra caudatário. Trata-se de uma obra seminal no gênero policial moderno, O falcão maltês, de Dashiell Hammett, em que o artifício usado para agitar os personagens também é uma peça de arte, a estatueta do falcão, que vem a ser uma relíquia medieval. Inferências à parte, o recurso funciona muito bem para dar movimento e densidade à trama.

Ainda que a princípio os personagens soem um tanto caricaturescos e exija certa disposição do leitor para aceitar a proposta do romance, com o decorrer da leitura, e já envolvido na trama, nota-se a acuidade do escritor em se abster de montar diálogos com a precisão mecânica de respostinhas afiadas na ponta da língua. Sim, há as tiradas espirituosas comuns ao gênero. No entanto, os personagens titubeiam, pensam, respiram, enquanto dialogam, em vez de regurgitarem frases prontas a soar como que saídas de um compêndio de citações. E isso mesmo quando a discussão é de teor erudito.

Talvez eu devesse ter falado mais sobre o enredo, ter discorrido a respeito das vítimas, que têm passado obscuro e portam segredos que merecem… Enfim, tenho um cacoete que não me deixa esquecer que contar uma história é, sobretudo, um trabalho escrupuloso com a linguagem a partir da escolha das lentes. E, sob esse aspecto, O trovador está acima de qualquer suspeita. 

Fonte: 
Revista Pessoa

Paulino Júnior é autor de Todo maldito santo dia (Florianópolis: Nave Editora, 2014).

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