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Na escuridão não existe cor-de-rosa [Cinthia Kriemler]

Na escuridão não existe cor-de-rosa

por Cinthia Kriemler


Quando eu era pequena, eu queria ser bruxa. Bruxas não usam cor-de-rosa. Nem são loiras. Eu não conheço bruxas loiras. Só conheço fadas. Castelos. Sonhos. Varinha de condão. Sapatos número 35 — vá lá, 36 nos dias de calor! —; manequim 34. Gestos delicados. Passos de gata no cio. Ou de gazela, ou de garça. Esses bichos dissimulados. Cabelos loiros. Loiro ultraclaro 90. Koleston. Nem cachos, nem ondas. Liso europeu. Fadas são europeias. Olhos azuis bem claros. Da cor do mar de Aruba. Que não é na Europa. O mar das bruxas não é azul. É escuro. De tempestades e naufrágios. Mar Negro. Afunda cinco navios de uma vez. Carrega tudo para as águas de baixo. Embaixo d'água não tem fada. Fadas não podem molhar o cabelo. As bruxas podem. Bruxas têm cabelos de anêmona. E se grudam nas rochas do fundo do mar. E afundam navios. Cinco de uma vez.  Para brincar de contar os corpos inchados dos afogados e os pedaços de barcos e lemes e adriças e quilhas e estais e gaiutas e birutas. Birutas são as fadas. Mornas como as correntes do Golfo. Bruxas são geladas. Como as correntes de Humboldt. Cheias de plânctons, de peixes. Ou quentes pela chegada afrodisíaca de El Niño. Eu queria ser bruxa. Quando era pequena. Vassoura, caldeirão, poções de magia, chapéu de ponta. A carruagem das fadas não é segura. Ela rola no precipício. No precipício das bruxas. Onde moram as cobras, os lagartos, os sapos que nunca viram príncipes. E os corvos, essas criaturas dadas às carnes mortas. Que só comem quando sentem fome. Que limpam a sujeira que não fazem. Limpam, limpam, limpam. Para que as fadas pisem terra sem restos. Para que as fadas não cheirem a podridão da morte. Mas as fadas insistem em preferir os passarinhos. E os dias de sol. E os meninos e meninas com juízo. E os homens bonitos. E o pagamento em euros. Ou libras. Cotação em alta. E tudo cor-de-rosa. As unhas, as bochechas, o pôr do sol, a vulva, a moldura do espelho. Bruxas não gostam de luz. Nem de reflexos. Por causa das verrugas que têm no nariz. Que afastam os meninos e meninas cheios de juízo. E os homens bonitos. Bruxas só gostam da noite. Entranhada dos sons das criaturas invisíveis. E da igualdade mais estranha. Na escuridão não existe cor-de-rosa. Nem fadas. Porque as fadas dormem com as galinhas para ter a pele mais bonita. Eu queria ser bruxa. Desde pequena. E de tanto gritar para a boca da noite, ela me respondeu: Your wish is my command!

Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.

8 comentários

cecilia disse...

Vale um bruxa sem verruga no nariz? Vale uma bruxa linda que tem cérebro de anjo e escreve coisa sensacionais como essa? Se vale, você é a bruxa mais bela e talentosa que conheço. Texto pra lá de fantástico!! Amei!

Denise Andressa Gonsalez disse...

Aaaah, também posso ser bruxa? Adorei!

Gustavo Terra disse...

as bruxas são as detentoras dos talentos... as rugas foram inventadas pelos descrentes, hehehe.
Delícia de prosa poética Cinthia! ^_^

ass.: Gustavo Terra.

Cinthia Kriemler disse...

Cecilia, Denise e Gustavo, obrigada pelos comentários!

Ana Cristina Costa Siqueira disse...

Texto muito interessante; um mergulho poético no mais profundo da alma, embora a poesia seja leve. De fato, as verrugas, as diferenças, enfim, ainda incomodam - a alguns, ao extremo. Incrível como um escritor nos faz mergulhar em fantasias loucas e, contraditoriamente, nas angústias mais comuns do ser humano.

Klotz disse...

Quando leio Cinthia quero ler mais. Escrita densa, profunda, inteligente e com pitadas de humor perspicaz. Nota dez.
Na mata escura não existe bondade. Nunca pensei em ser bruxo, fauno talvez.

Cinthia Kriemler disse...

Ana Cristina e Roberto Klotz, muito obrigada pelos comentários!

Viviane Santiago disse...

E a cada vez que leio seus textos, seus contos, amores e desamores, me apaixono mais por tua escrita. Parabéns, sou sua fã desde as primeiras linhas.