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Morreu [Jean Marcel]

Morreu

Todos da turma ficaram consternados com a notícia da morte do Ferreirinha. Souberam que o avião que retornava de Paris, onde o Ferreirinha anunciou que iria passar suas costumeiras férias internacionais, desaparecera numa tempestade sem deixar rastros...

Quem chegou com a notícia foi o Altair, encarregado pela turma de descobrir no aeroporto que horas aterrissaria o avião, pois só sabiam o dia em que se daria o retorno. Dessa vez desejavam fazer-lhe uma surpresa na chegada. Porém, seu interesse se chocou com a informação de que o único vôo de Paris para aquele dia não chegaria mais...

Nunca mais! E dizer que os amigos do boteco pensavam em surpreendê-lo com faixas de boas-vindas! Era mesmo inacreditável. Logo o Ferreirinha... que amava viver! Logo o Ferreirinha, que na véspera de partir, no balcão do boteco, estourou um champanhe e disse num falso tom de segredo, mas suficientemente alto para que todos ouvissem: "No céu não há champanhe... Por isso tomemos aqui!" Em seguida ergueu o cálice e brindou em francês com a turma: “A la santé!” Ah, Ferreirinha... Você não existe!

O sentimento era unânime: "Não! O Ferreirinha não!". Se tinha alguém que não merecia partir antes da hora, esse alguém era o Ferreirinha. Nunca foi um homem bonito, mas para as mulheres, com toda certeza, era o mais atraente da turma. Quem sabe até mesmo por isso tenha se lapidado com tanto esmero; fosse belo de nascença, provavelmente acomodar-se-ia, pois suas conquistas não iriam requerer esforço algum... Como não era o caso, muito do seu encanto, que garantia a primazia com as mulheres, vinha justamente da sua sofisticação, do seu vocabulário rebuscado, do charme que exalava... É isso!

Tivesse que descrevê-lo com uma única palavra, diria que era um homem charmoso! Não era rico, mas pelas histórias que contava, definitivamente ele sabia viver! Homem viajado, era o único que conhecia o exterior. O Euclides, marido da Dulcinha, também já tinha viajado pra fora, mas ao Paraguai e em busca de badulaques para revender com algum ganho, o que, cá pra nós, não tinha o mesmo glamour de passear em Paris, Firenze ou Veneza. E depois, o Ferreirinha ia todo ano... Às vezes até mais de uma vez por ano! Dizia-se quase nativo... Já estava até arrastando o "r"!

Há muito tempo que os amigos de balcão já sabiam: Quando o outono chegava no Brasil ele desaparecia do boteco em busca daquela que considerava a mais romântica das estações, e só voltava depois de trinta ou quarenta dias, repleto de histórias fascinantes para contar... "Ah, meus amigos... enquanto aqui as folhas caem, no outro lado do mundo a vida está desabrochando novamente...”, dizia, entre um gole e outro de champanhe. Depois, fingindo segredo, completava: “Na primavera as italianas e francesas ficam ainda mais viçosas e exuberantes... parecem renascer... estão prontas para o amor...".

E se com os homens o Ferreirinha já era quase uma celebridade, com a ala feminina então... era uma unanimidade! A sua fama de bon vivant permitia a ele praticamente rivalizar com os galãs da novela, com a vantagem de que ele era próximo e acessível.

Quando o Ferreirinha começava a descrever "...as folhas coloridas brotando alegremente às margens do Sena, nas mesmas árvores que ele vira na estação anterior "chorarem" folhas secas que caiam uma a uma, como lágrimas que não conseguiam segurar..." Nesse momento as garotas disputavam praticamente a cotoveladas um lugar ao seu lado só para ouvi-lo falar. Todas elas (loiras ou morenas, casadas ou solteiras) não só se identificavam com as histórias, como, secretamente, achavam que estavam sendo contadas para si.

O fato é que os ares europeus, não se sabe se mais italianos ou franceses, tornaram o Ferreirinha um exímio sedutor. Quando escolhia sua presa, sabiam que era só uma questão de tempo para dominá-la... pouco tempo! "Cantada em francês ou italiano é arma branca da paquera!" sentenciavam os seus amigos quando o viam em ação. De fato, bastava o Ferreirinha descrever o fim de tarde na ponte Vecchio ou falar dos aperitivos tomados na Plaza de San Marco para provocar gritinhos... Era só contar das baguetes de miolo branco e casca dourada regadas a Beaujolais Nouveau nos bistrôs de Paris ou dos passeios de Bateaux Mouche sob a luz do luar para elas suspirarem... E se falasse das luzes ascendendo uma a uma no fim de tarde na Champs Elysees que todas elas desejavam se entregava sem nenhuma resistência.

"Vocês já ouviram um acordeon chorando numa madrugada em Pigalle? Já experimentaram um purê de beterraba com algas e sementes de manjericão do Le Chateubriand? Já apreciaram o frescor dos frutos do mar vindos da Bretanha?" perguntava pra ninguém, em voz alta, entre suspiros seus e de quem estivesse a sua volta. Era covardia, até os invejosos faziam fila para ouvir seus relatos. Contudo, se nada disso desse certo com a pretendente, o que era raro, erguia despretensiosamente um bordeaux como se não tivesse sendo observado, olhava fixamente para o conteúdo que girava no balanço delicado que imprimia ao cálice e, como quem está com o pensamento distante, arranhava uma estrofe: " Que  c'est triste  Venise...  Quand on  ne s'aime plus...

" Que  c'est triste  Venise...". Me diz: Dá pra resistir?

Por isso a tristeza generalizada com a notícia da queda do avião que trazia o Ferreirinha... No boteco, muitos olhos marejados, muitas fungadas e até um choro desesperado da Glorinha, mulher do Alceu, o que evidentemente gerou certo desconforto no marido, principalmente quando ela disse que agora já não tinha mais razão para viver... O marido estranhou tanto pesar, mas achou que a ocasião não comportava muitas perguntas. O fato é que a ausência dele deixaria um vazio no happy hour do boteco. Foi aí que o inesperado aconteceu:

– Voilà! – chegou de braços abertos o Ferreirinha, abraçando o ar, querendo com isso dizer que abraçava a todos...

– Ferreirinha?! – gritaram em uníssono todos do boteco, como se tivessem diante de uma assombração.

O Ferreirinha, que ainda não sabia que ha poucas horas havia sido decretado morto, e que os amigos, embora sem o corpo, já discutiam os detalhes do velório, ainda brincou: "que caras são essas? Até parece que morreu alguém!". Antes tivesse ficado quieto! De fato algo havia morrido, ou melhor, estava prestes a morrer... O personagem que o Ferreirinha criou para si mesmo e que interpretou com tanto sucesso por anos a fio de enganação, já não tinha mais como resistir as evidências. Estava mais que claro: Era um embuste... Uma enganação!

– Fez boa viagem? – provocou um deles.

– Médio... – respondeu, balançando a mão no ar, fazendo pouco caso, sem saber que estava dando corda pra se enforcar – Na verdade já fiz melhores! – arrematou com desdém. Não contente, ainda acrescentou:

– Sabe como é... Primeira classe é bom, dormi como se tivesse nos seios de uma madona. E o champanhe que servem não é nada mal... mas nada como o boteco da gente! – levantando o indicador no ar, sinalizando ao garçom que aguardaria na mesa o seu costumeiro balde com gelo e espumante.

– O seu avião caiu, Ferreirinha! – retrucou o garçom, deixando dúvidas se buscaria algo.

Silêncio...

– Caiu?

– A resposta veio na forma de um balançar firme de cabeças... Muitas cabeças! Todas que estavam no bar.

– Merde!!! – foi só o que conseguiu dizer, avaliando a situação.

– Se você não estava em Paris, onde diabos estava? – questionou um dos fiéis amigos que, incrédulo, assim como os demais, o rodeava querendo respostas.

O ferreirinha, por uma fração de segundo, até pensou em dizer Roma, Viena ou Barcelona... Mas reconsiderou ao ver alguns dos frequentadores se aproximarem com garrafas nas mãos...  garrafas vazias...Como eram seguras pelo gargalo, de mão cheia, entendeu que não era para celebrar.

– Botucatu! – anunciou com a testa franzida e os olhos fechados, esperando pelo pior. Acontece que o assombro foi tanto que todos congelaram. Nenhuma reação além do desmaio da Glorinha e o "Óooooo..." coletivo foi constatada.

– Botucatu? – repetiu um deles, o mais próximo, fazendo biquinho ao pronunciar – Já sei... Provavelmente uma região de vinhos lá pro sul da França, certo? Botucatúuu...

– Isso! – acrescentou outro leal amigo, recusando-se a acreditar no que já era óbvio para os demais – Deve ser algum vilarejo centenário... Certo? Coisa chique!

– Não! – corrigiu o Ferreirinha, sabendo que seu tempo de glória acabara – Botucatu mesmo... próximo de Avaré!

O silêncio que se estabeleceu foi pior do que se tivessem gritado algo com ele. Não havia raiva, só decepção... Demorou algum tempo até que alguém perguntasse algo.

– Então você nunca...?

– Nunca – escondendo a cabeça entre os braços – o mais longe que fui foi a Itapetininga.

– E aquela vez que voltou com a perna engessada... um tombo de esqui na Suíça, não foi? Foi desviar de um turista japonês com câmera na mão e...

– Levei um carrinho no futebol.

– Você disse que foi na neve! – insistiram.

– Grama sintética... – consertou.

Silêncio...

– E a gôndola que você roubou? – retruca outro – Nunca esqueci dessa história... fez uma serenata embaixo da janela de uma garota num dos canais de Veneza... Depois escalou pela murada...

– Ãn ãn – balançando a cabeça.

Consternação geral...

– Então nunca...?

– Nunca!

– Nem fez amor no elevador da torre Eiffel com uma escritora que conheceu em um bistrô?

– Tour Eifeel... – repetiu suspirando – Só conheço por foto! Na real eu tenho medo de altura...!

– E a Brigitte? – sem se conter, intrometeu-se o Gilmar – a tal francesinha... você sabe... cintura fina, seios GG, o pai foi da Résistance na II guerra...

– Essa existe! – confirmou com um sorriso amarelo.

– Uffffffff – respiram aliviados.

– Mas o nome verdadeiro é Berenice.

– O pai dela não era da Résistance?

– Quase... Do sindicato... de São Bernardo. Ela se mudou pra Botucatu com a mãe, então, um dia, numa das férias que eu passei lá...
Mas ninguém mais queria ouvi-lo.

Depois desse dia, que ficou conhecido como o dia da revelação, o Ferreirinha até continua frequentando o boteco, mas suas histórias já não têm mais a mesma plateia. Agora, basta a mínima suspeita de embuste nos seus novos relatos para botarem-no pra fora do boteco a safanões. Aliás, precavido, como primeira medida de segurança, tratou logo de perder o sotaque, o que comprometeu gravemente o apelo das suas histórias. Além disso, nunca mais falou de além mar... (descobriu-se inclusive que ele nunca viajou de avião). Para quem pedia licença dizendo s'il vous plaît, agora o Ferreirinha tem medo até de pedir um croissant!

Mas a verdade é que nem tudo piorou na turma de lá pra cá... Coincidentemente a Glorinha, mulher do Alceu, está novamente apaixonadíssima pelo marido! Até voltaram a fazer amor! A única coisa que o incomoda um pouco é que na hora "h", ao invés dela dizer "sim... sim...", ela às vezes solta uns "uí... uí...". É mesmo muito estranho! Mas como em time que está ganhando não se mexe...

Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com

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