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Não vai doer nada! Tigrão – o último machão [Jean Marcel]

Não vai doer nada!

         Tigrão – o último machão

Era a primeira vez após muitos anos que o Tigrão ia a um dentista. Melhor dizendo: uma dentista. Chegou lá por recomendação dos amigos, que a elogiaram na rodinha do bar. Na verdade elogiaram seu par de coxas, o que para o Tigrão dava na mesma. Já que tinha mesmo de ir ao dentista... De um limão, faria uma caipirinha, pensou otimista.

Preparando-se em casa para a consulta, o Tigrão se encharcou de perfume, escovou os dentes cinco vezes seguidas, fez gargarejo com solução anti-séptica e, para desconfiança da Liza, sua esposa, até fio dental passou.

– Se fizesse isso todo dia, hoje você não precisaria se submeter a esse martírio

– diz a esposa.

– Se a tal doutora Nicole fosse tudo o que disseram – avaliou – talvez não fosse assim tão ruim refazer aquelas malditas restaurações. – Pensou, mas não disse! E lá foi ele...

Fazia tanto tempo que não ia ao dentista que já havia até esquecido daquele cheirinho de consultório odontológico que lhe provocava calafrios. Não que estivesse com medo, era homem, e como todos sabem, homens não sentem medo. Mas decididamente injeção, passeio de camburão e dentista com broca na mão não faziam parte dos seus programas prediletos.

A espera na ante-sala definitivamente não foi nada agradável. Com mais de uma hora de atraso, já não havia mais o que inventar para passar o tempo. Como as poucas revistas interessantes eram disputadas a tapa pelos clientes que aguardavam, o Tigrão aproveitou uma ida ao banheiro de uma gordinha e seu filho pequeno, para pegar seus lugares e ficar ainda mais próximo do cestinho que as guardava. Além disso, independente dos suspiros de contrariedade dos demais, pegava sempre duas revistas de uma só vez, sendo uma para ler e outra para ser deixada por baixo, reservada para depois.

Sem ter o que fazer, o Tigrão organizou os documentos da carteira, classificou o dinheiro por ordem de valor, jogou fora uma dúzia de lembretes esquecidos e até achou um comprovante de pagamento que procurava há semanas.

Organizada a carteira, corrigiu uma palavras-cruzadas (todas já estavam preenchidas por alguém que o antecedera), fez um teste sobre como encontrar seu par ideal numa revista NOVA, lembrou como sua vida era sem-graça e tediosa com a leitura de quatro ou cinco CARAS de dois anos atrás e, finalmente, desenhou com a esferográfica uma dúzia de bigodes e barbas em personalidades que odiava numas VEJAs antigas. Essa última “atividade” era feita ostensivamente diante da cara feia de reprovação da secretária da clínica, que a tudo observava, ao mesmo tempo em que conversava por telefone longamente com alguma amiga na única linha telefônica disponível. Agora sabia por que tinha sido tão difícil agendar sua consulta, pensou.

E foi assim, após aproximadamente quinze revistas (algumas lidas mais de uma vez), seis copos de água e três idas ao banheiro, que finalmente parecia que sua hora chegara, já que os gritos que vinham do consultório haviam silenciado e um sujeito saiu lá de dentro andando em slow motion. Ao passar em frente à secretária, pode-se dizer que o gemido que deu em resposta a que dia gostaria de marcar a próxima consulta não foi nada animador para quem estava prestes a entrar. Com passos tímidos, o sujeito antes de ir embora ainda teve forças para direcionar um olhar de solidariedade para os que aguardavam sua vez.

Estava avaliando justamente se não era melhor ir embora quando ouviu uma voz feminina chamando-o para entrar. Era ela mesma! Uma deusa em carne, osso, salto alto e um diminuto guarda-pó branco. Bastou uma rápida olhada para concluir que cada entediante minuto de espera valera a pena! A tal Doutora Nicole parecia saída do SOS Malibu: loira, bronzeada de sol, certamente menos de trinta anos, olhos azuis, sorriso molhado, boca carnuda e um corpo “sem comentários”. A doutora estava em pé diante dele, pedindo pessoalmente desculpas pela demora e anunciando que agora seria só sua pelo tempo que fosse necessário. Na verdade não disse bem isso. Mas foi assim que ele entendeu o que fora dito!

– Desculpe o atraso. Demorou muito?

– Não, Doutora, que nada. Acabei de chegar...

E foram os dois pelo corredor adentro. A Nicole à frente, com andar sensual, e ele logo atrás, ansioso mas feliz, aproveitando a oportunidade para dar uma “conferida” na doutora. Enquanto a seguia de perto, teve tempo ainda de dar secretamente umas duas baforadas na mão em concha e cheirar o ar acumulado para testar a qualidade do seu hálito. Tudo indicava que os próximos minutos seriam inesquecíveis...

Tigrão viu-se então confortavelmente deitado. Encontrava-se tão bem acomodado que pensou até em tirar os sapatos, mas mudou de ideia por não ter certeza do estado que estavam as meias que colocara. Ao seu lado, num banquinho, estava a garota mais espetacular que já conhecera, tão próxima dele que, se entendesse de perfume, poderia até identificar a marca. Deviam fazer consultórios com espelho no teto e frigobar, avaliou otimista quanto ao que iria acontecer. Mas não podia reclamar, nem mesmo o ar condicionado e o som ambiente para completar o clima estavam faltando.

Com uma voz que lhe pareceu rouca, sussurrada, ela falou pela primeira vez:

– Abra a boca!

– E feche os olhos?

– Como?

– Brincadeirinha... – murmurou faceiro, enquanto escancarava a boca de tal forma que seria possível ver o seu avesso.

– Aaaaaahhhhhhhhhhhhh

Quando ela aproximou-se dele com uma haste contendo um pequeno espelho redondo na ponta, certamente para uma primeira avaliação, o Tigrão pôde sentir um dos seios tocando levemente seu ombro esquerdo, o que provocou imediatamente uma reação involuntária que o encheu de orgulho. Será que ela percebeu a “emoção” que provocava nele?

Enquanto a doutora auditava sua boca, Tigrão, com os olhos apontados para “nove horas”, inspecionava discretamente seu decote que deixava transparecer uma minúscula pontinha rendada do seu sutiã.

Foi com surpresa, voltando dos seus pensamentos, que o Tigrão reparou que ela desenhava bolinhas num papel contendo um modelo esquemático da sua boca. Certamente tratava-se das cáries que ele “colecionava”. Pela primeira vez na vida se arrependeu do relaxamento de anos. O que ela iria pensar dele? Que era um porco? Que não escovava os dentes? “Devia ter ido a um dentista antes de vir aqui”, raciocinou, com pesar por não ter pensado nisso antes.

– Eu viajo muito... – Tentou justificar entre uma anotação e outra – Almoço em restaurantes... – tentou novamente – Eu até levo um fio-dental comigo – Mas as bolinhas pintadas pareciam não ter fim – Nem sempre consigo escovar os dentes como gostaria... – tudo indicava que não sobraria mais espaço para ser preenchido – Deve ser o cafezinho, gosto com muito açúcar...

Finalmente sua deusa se manifestou:

– Tem bastante coisa para a gente fazer...

– A criatividade é o limite! – responde o Tigrão, com cara de sedutor.

– O seu tratamento... Podemos começar hoje mesmo por uma ou duas restaurações pequenas... O que acha?

– Hoje é você que está no comando... Sou todo seu! – Ele estava mesmo impossível. Precisava lembrar de cada detalhe para contar depois para os amigos no bar.

Enquanto a dentista preparava os seus apetrechos, uma ajudante, que logo reconheceu como sendo a secretária mal-humorada da recepção, surgiu e colocou nele um babador de papel que não o deixou nada satisfeito. Que homem conseguiria manter-se charmoso de babador?

– Você prefere que eu faça com anestesia?

– Eu? Que nada... Gosto de sentir cada segundo...

– É que tem algumas pessoas que são mais sensíveis a dor.

– Eu? Sensível? Dor? Tz tz tz... Meu apelido é Tigrão! – A propaganda para o tigrão era tudo! E na sua avaliação, seu marketing até aqui estava indo bem. Tinha certeza que ela estava no papo...

– Ok, se doer me avisa...

ZZzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz – foi o som da broca sendo testada.

O barulhinho do motor da broca o acordou de um sonho, fazendo-o refletir o que fora dito. Se doer? Ouvira direito? Como assim? O que ela quis dizer com “se doer?” Que droga! Será que se ele se fingisse de morto ela desistiria?

*   *   *

– Mmmmmm

– O senhor pode abrir a boca?

– Mmmmmm

– A boca, seria possível abri-la...?

– Precisa mesmo? – perguntou o Tigrão com os dentes cerrados.

– Fica tranquilo – soltando um sorriso arrebatador – não vai doer nada... Se doer, eu paro!

Essa mesma frase que já fora usada por ele para uma dúzia de garotas ingênuas, parecia agora assustadora. Será que ela percebia que seu pavor era tanto que seus dedos dos pés estavam encolhidos dentro do sapato?

– ABRA A BOCA! – A voz agora lhe pareceu determinada.
“É bonitinha, mas mandona!”, pensou contrariado, enquanto abria uma fresta na sua boca.

– Aaaahhhhhhhhhh

– Pode abri-la mais?

– AAAAAAAHHHHHHHHH

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz. A broca roncou por pelo menos dez torturantes minutos. No começo até tentou puxar assunto, mas a saliva foi se acumulando e toda sua concentração teve de ser usada para não se engasgar.

– VOxe eh daxi mexxxxmo?

– XAbe  que xooooxe xxxxica innnnnda de baaaanco?.

– O que foi?

– Exxxxquxeceee!

Dez minutos depois...

– Pode cuspir... – A autorização dada foi salvadora. Já estava achando que iria morrer ali mesmo, afogado em sua própria saliva. Foi quando lhe deu um estalo: sabia que estava havendo química entre eles e que aquele momento era a oportunidade que esperava... Cuspir? Nisso ele era bom, pensou Tigrão, que sempre defendeu a ideia de que homem tem que saber cuspir. Para ele, era o estilo da cuspida que separava os homens dos filhinhos de papai. Ela, como dentista, supôs animado, certamente valorizaria um homem que sabe cuspir!

AAARRRrrrrrrrrrrrrrrrrrr – preparou a cuspida como quem entende do assunto...

– AAARRRrrrrrrrrrrrrrrrrrr – arreganhou os lábios numa técnica particular – AAARRRrrrrrrrrrrrrrrrrrr – Fez pontaria fechando um dos olhos... – Ttttchuppppppppppp

A cuspida foi dada de longe, com ares de profissional. Tigrão inclinou a cabeça para o lado e projetou o cuspe com toda a força dos seus pulmões. Tinha tudo para acertar o alvo, uma pequena cumbuca de inox com um fiozinho de água circulando. Mas errou! Por pouco, mas errou! O “projétil” passou raspando sobre a meta e foi parar grudado, bem no meio da porta do armário.
Os dois ficaram em silêncio observando o resultado.

– Isso nunca aconteceu comigo antes. Foi a primeira vez! – Desculpou-se o Tigrão, que nunca imaginou pronunciar essa frase, sempre constrangedora para qualquer homem.

– Comigo isso também nunca aconteceu! – disse a dentista com os olhos arregalados, observando a cusparada que escorria lentamente até o chão.

*   *   *

– Abra a boca! – disse a doutorazinha, com uma voz que já estava lhe irritando os ouvidos.

AHHHHHHHhhhhhhhhhhh – obedeceu o Tigrão sem questionar, ainda inconformado em ter errado um alvo tão fácil.

Foi só o Tigrão abrir a boca que ela enfiou-lhe, certamente por vingança, quase uma dúzia de chumaços de algodão na sua bochecha, fazendo-o parecer o próprio Don Corleone. Não contente, colocou-lhe sob a língua um providencial sugador na potência máxima. Estava claro que ela não lhe daria uma segunda oportunidade. Pelo menos não no que se tratasse de cuspida. Tigrão começava a ficar incomodado com a situação. “É humilhante como ficamos submissos numa cadeira de dentista”, lamentou-se silenciosamente. De fato, o Tigrão assemelhava-se a um peixe recém-fisgado com aquele olhar distante e o “anzol” de borracha preso à sua boca. Na verdade, estava era temeroso de que, caso a doutora não diminuísse a potência do tal aparelhinho, a qualquer momento tivesse o seu cérebro aspirado por dentro.

ZZZZZZZZzzzzzzzzzzzzz – roncava a broca.

CHhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh – fazia o sugador.

“Será que o gordão que foi atendido antes dele também o usou? Que nojo!”, pensou. Logo ele, que nem chimarrão tomava, recusando-se a compartilhar a bomba da cuia por ficar “babinhas” dos outros, via-se agora com um coletor coletivo de cuspe na sua boca?!

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
CHhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh

– Abra mais a boca!

“Era bom mesmo que ela estivesse com aquela máscara branca para que ele não precisasse ver sua cara de fuinha...”, pensou, à beira de um ataque de cólera.

– AHHHHHHHhhhhhhhhhhh

Tigrão estava literalmente agarrado na poltrona enquanto a broca roncava. Já não conseguia mais disfarçar.

– A dor é psicológica... A dor é psicológica... – repetia mentalmente.
ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ – mas doía pra cacete!

Tentou não pensar na dor. Abstrair onde estava. Precisava pensar em outras coisas. Boas lembranças... Assim, a primeira recordação que lhe veio à mente foi a sua despedida de solteiro com toda a turma e a Marcinha Alicate, contratada numa “vaquinha” em que todos os amigos se cotizaram. Custou caro, recorda, mas valeu cada centavo! Até hoje emprega com sucesso algumas posições aprendidas nesse dia, o que o faz pensar que em certas coisas não devemos economizar! Depois, lembrou das “gêmeas”, primas da sua empregada. Está certo, não eram exatamente bonitas. Na verdade eram até bem feias e já não recordava mais qual foi a resposta que recebeu quando questionou por que não depilavam as pernas e o sovaco. Mas não importa, sempre quis transar com duas gêmeas e elas eram iguaizinhas... Até nas espinhas. Valeu pro curriculum!

ZZZZzzzzzzzzzzzzzzzz – roncava a broca no seu dente.

CHhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh – chupava o sugador.

Os pensamentos não paravam. Do fundo do baú vieram flash-backs da Edinalva Boca de Caçapa, sua vizinha e também sua primeira experiência semissexual. Lembrou como era possível, apesar dos seus mais de noventa e cinco quilos, ela fazer aquilo tudo dentro do fusca prateado que ele pegava escondido do seu pai. Que saudade... do fusca!

ZZZZZZZZZZZZZZzzzzzzz – roncava a broca.

Tigrão estava novamente recobrando o controle. Já tinha até esquecido da dor e dessa insuportável Doutora Nicole – se isso é nome de dentista... Deve ser “nome de guerra” – sentenciou com raiva, preferindo permanecer mergulhado nos seus pensamentos clandestinos, cujo teor só poderia ser identificado por um observador mais atento, que desconfiasse do ressuscitamento do seu “amigo” logo abaixo da cintura, que nunca o desapontava. Pelo menos não na maioria das vezes...

Agora, seu único tormento era o sugador, que parecia sempre estar na posição errada, insistindo em dar-lhe pequenos beliscões sublinguais.

CHhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh – fazia o sugador.
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzz – continuou roncando a broca, que desta vez pegou num nervinho.

– AAAAAaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

– Esta doendo?

Teve vontade de dizer “Não, sua vaca estúpida, sem-graça e sem cérebro, eu tô chorando de emoção de estar na sua presença”. Mas de qualquer forma, mesmo se quisesse, não conseguiria falar com a mão dela quase toda dentro da sua boca...

Uma lágrima escapou do seu olho, escorrendo vagarosamente pela lateral do seu rosto ameaçando gravemente sua fama de macho.

– Vou colocar um pouquinho de anestesia – anunciou a dentista percebendo seu sofrimento.

– Por mim tudo bem. Não que eu esteja querendo... Mas a dentista é você! Propôs fingindo indiferença – “Já não era sem tempo!” pensou silenciosamente com vontade de esganá-la. Porém, bastou a bela dentista aplicar-lhe suavemente uma pomadinha na sua gengiva, em sedutores movimentos circulares, para o Tigrão voltar a baixar a guarda. “Até que ela tem mãos macias!” pensou animado novamente. “Bem que depois ela poderia fazer uma massagem nos meus pés” chegou a cogitar.

– Apesar do gosto esquisito, até que essa anestesia não é tão ruim assim! – disse com um sorriso para ela, que no mesmo instante virou-se e pegou uma injeção com uma agulha que mais parecia um canudinho do McDonald’s.

– O que é isso?

– A anestesia.

– Então o que era aquela pomada com gosto de cera de ouvido?

– Uma pré-anestesia. Não se preocupe, não vai doer nada!

– Mas já está anestesiado... Juro!

– É só uma picadinha...

– Juroooooooo! Aiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Doeu. E não foi só uma picadinha! Tigrão tentou xingá-la, mas percebeu que sua boca já não obedecia mais ao seu comando. Enquanto o lado esquerdo estava normal, para seu desespero, uma baba escorria pelo outro lado que estava completamente adormecido, fazendo-o parecer ainda mais estúpido do que já se sentia.

– ...quefff  fffforte ssa erda de nes tesia, einnn?

– Abra a boca...

– omo ce eeeu con se gui sse!

– Abra a boca...

– AHHHHHHHhhhhhhhhhhh
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
CHhhhhhhhhhhhhhhhhhh

Tigrão, pelos seus cálculos, ficou de boca aberta por mais umas vinte e quatro horas...

– Agora só falta uma lixadinha...
RRRRRRRrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

A lixa o fez tremer por inteiro, tanto e num tal nível, que chegou a temer que suas ideias e convicções saíssem do lugar e nunca mais conseguisse organizá-las novamente.

– Agora pode cuspir – disse a dentista – mas na cumbuca, hein?! – completou com seu sorriso horroroso, reforçado pelo roncar ameaçador da lixa.
RRRRRRRrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

– Anhã – conseguiu dizer o Tigrão, completamente submisso. Mas cuspir o quê?

Sua boca estava totalmente seca com aquele filhotinho de aspirador embaixo da sua língua, que, aliás, também não obedecia mais ao seu comando.

Tigrão reuniu então com todo cuidado a diminuta porção de saliva que ainda existia em sua boca e com ela levantou-se, aproximando educadamente o corpo da cumbuca. Ao se virar para o lado percebeu o olhar desconfiado da doutora, para quem fez imediatamente um sinal com a mão de “fica tranquila”.

Tchupppp  – Foi a cuspidinha tímida que deu, fazendo um biquinho torto por entre os lábios paralisados. Tudo certo! Fez até um sinal com a mão para a doutora, que foi interpretado por ela como um “Ok”, mas que na verdade significava um “vai tomar no...” Porém, ao voltar à posição original, percebeu um fiozinho de cuspe dependurado entre sua boca mole e a tal cumbuca.

“Só faltava essa!” pensou... Levantou-se e tentou cuspir novamente, mas a situação só piorava. Passou o dedo pela baba que só serviu para mudá-la de posição. A salvação humilhante foi dada pela doutora que limpou sua boca como se ele fosse uma criança, utilizando o tal babador de papel, que ficou depois completamente empapado no seu peito, sobre a camisa nova que usava, comprada especialmente para essa ocasião. Que raiva!
ZZZZzzzzzzzzzzzzzzzz
CHhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh

O “tratamento” parecia não ter fim. “É um estupro oral!” pensou Tigrão, que cogitou levantar-se repentinamente, sair correndo e pular a janela, mas desistiu do plano por estarem no décimo segundo andar. “Devia ter atendido o celular quando tocou e gritado por socorro!”, pensou arrependido. Assim, não lhe restando alternativa, estava justamente fazendo uma contagem regressiva de dez para pular no pescoço da doutorazinha e enforcá-la com o fio da broca quando uma palavra salvadora poupou-lhe a vida.

– Dez, nove, oito, sete... Vou esgoelá-la...

– Acabei!

– Como?

– Acabei... Por hoje acabei!

Tigrão respirou profundamente. “Foi bom para você?”, pensou automaticamente em dizer, mas estava sem energia até para suas piadinhas.

– OCE TEEEM ERTEZA? – perguntou desconfiado, com a boca torta.

– Quer que eu faça mais um molar?

– NON, NON, NON... Muito oooobri gado! – respondeu com ambas as mãos tapando a boca. “Prefiro ver meu time sendo rebaixado, sua loira azeda, do que fazer mais uma restauração” pensou secretamente. “Meu Deus, o que estou dizendo? Se a turma me ouve...”.

O Tigrão nem se demorou na despedida. Saiu do consultório cabisbaixo, amuado, com sua auto-estima mais do que comprometida.

– O senhor já quer deixar marcada a próxima consulta? – perguntou-lhe a secretária, quando ele passou pela recepção a caminho da porta.

– Me liga no final da tarde – respondeu o Tigrão, já sabendo onde estaria.

*  *  *

– Alô – atende o Tigrão rodeado pelos amigos, no happy hour no bar do Tonho.

– Aqui é do consultório da Dra. Nicole.

– Ah... Nicole! – repetindo para que todos ouvissem.

– Pessoal – tampando o fone do celular com uma das mãos – É a Nicole! Aquela... A tal...– E desenha no ar o que tanto poderia ser uma silhueta feminina como as curvas de um violão! – Não disse que ela ia ligar? Mulher é tudo igual...

Todos se curvaram cutucando-se mutuamente, curiosos e admirados com o telefonema, já que a fama de beldade da tal dentista era precedida pela de total “jogo duro”, fazendo sofrer mesmo os mais experientes solteirões. Sendo assim, ninguém acreditou quando o Tigrão anunciou, poucos minutos atrás, ter “fincado bandeira” além de suas fronteiras defensivas e que ela, totalmente rendida, estaria agora implorando por uma nova “ofensiva”.

– A doutora pediu que perguntasse ao senhor se está tudo bem. Sentiu alguma dor? – questiona a secretária com voz séria, do outro lado da linha.

– Não, que isso... Foi maravilhoso! – “Ela é muito insegura”, sussurra para a galera em volta, tomando o cuidado de não ser ouvido pelo outro lado da linha. “Ela quer saber se foi bom para mim!”, acrescenta.

– Que bom, seu Tigrão. Eu estou ligando então para agendar a próxima consulta. O senhor tem preferência por alguma data? – prossegue a secretária.

– Ah... você quer marcar... Outra vez! – abafa o telefone novamente para informar aos amigos de bar que ela quer sair com ele mais uma vez.

– Olha só – prossegue fazendo cara de galã – Não sei se vai ser possível. Eu ando meio ocupado – Com o fone coberto desabafa para galera: “Odeio mulher que pega no pé!”.

– O senhor não vai dar sequência ao tratamento?

– Você acha que seria legal? – diz ao telefone para a secretária, para em seguida comentar baixinho: “Nem vou dizer o que ela me propôs... Essa mulher é ninfomaníaca... Só pode!”.

– Olha, meu senhor, se o senhor não fizer o tratamento, as cáries podem evoluir para um quadro mais agudo e, mais tarde, exigir até um procedimento de canal.

– Nossa, eu nunca fiz isso antes – anuncia o Tigrão ao telefone, mas com um risinho endereçado aos amigos. “Esse papo é proibido para menores!” confidenciou para a rodinha, que nem piscava de tão interessada.

– Tratamento de canal? Nunca fez? – argumenta a secretária do outro lado – sorte sua, é um tratamento bastante agressivo.

– Bem... – corta o assunto o Tigrão, não querendo abusar da sorte – o papo está muito bom, mas acontece que nos próximos quinze dias eu realmente não vou poder. Depois eu te ligo para marcarmos um dia... Ok?

A secretária da Dra. Nicole, que só queria mesmo agendar a consulta, despediu-se e desligou sem nada entender, prometendo ligar novamente dali a quinze dias.

– Querem saber de uma coisa? – pergunta o Tigrão para os amigos, após guardar o celular.

– Eu cansei de ser tratado como se eu fosse só um objeto sexual!

Se já o tinham como herói, agora o veneravam como a obra-prima da espécie masculina. A admiração foi tanta, que por uma semana o Tigrão não precisou nem pagar a conta!

Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com

Um comentário

Rose disse...

Não, nós não percebemos quando os dedos estão encolhidos dentro do sapato.