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RAZÃO E SENSIBILIDADE [Raul Arruda Filho]

RAZÃO E SENSIBILIDADE

Um homem que não tem nada para fazer com o seu tempo não tem consciência de se intrometer no dos outros, diz Marianne, uma das duas protagonistas de Razão e Sensibilidade, um dos romances “menores” de Jane Austen. Essa afirmação mostra-se como um dos momentos humorísticos mais expressivos da escritora inglesa, pois quem o emite passa cerca de 50% da narrativa doente ou chorando – que, grosso modo, é a mesma coisa. E isso significa que ela se intromete no tempo dos outros, que precisam deixar de lado as próprias atividades para cuidar de suas (dela) necessidades. A maior vítima (ou beneficiária) dessa situação é Elinor, que – na medida do possível – acompanha o sofrimento da irmã.

Tudo começou quando, um pouco antes de morrer, Henry Dashwood pediu ao seu primogênito, John, que protegesse a madrasta e as três irmãs (Elinor, Marianne e Margareth), frutos de seu segundo casamento. Na primeira oportunidade, Fanny, esposa de John, tomou posse de Norland Park, a mansão familiar, em Sussex, e promoveu a lenta e gradual expulsão das quatro mulheres – que, poucos meses depois, foram viver em Devonshire, em um chalé situado em Barton Park, na propriedade de Sir John Middleton, primo da viúva Dashwood.

Com essa base narrativa, Jane Austen repete o tema das donzelas desprotegidas e falidas que procuram – urgentemente – por um casamento (ver Orgulho e Preconceito ou Mansfield Park). O objetivo das irmãs mais velhas da família Dashwood, Elinor e Marianne, fracassa em razão de alguns enganos e várias escolhas desastrosas. Elinor se sente atraída por Edward Ferrars. O mesmo ocorre com Marianne, que imagina estar noiva de Willoughby. Os dois romances precisam passar por provações significativas.

Em primeiro lugar, o romantismo de Marianne (É muito impaciente, muito intensa em tudo o que faz. Às vezes fala muito e com muita animação, mas raramente é alegre) esbarra no pragmatismo de Elinor – que detesta situações que não controla. Basta lembrar a cena em que conversa com a mãe sobre o namoro da irmã:

– Não quero prova do amor deles – disse Elinor –, e sim do noivado entre os dois. 

– Estou perfeitamente satisfeita com ambos. 

– No entanto, nenhuma sílaba foi dita à senhora sobre este assunto, por nenhum deles.

– Não quis sílabas onde ações falaram com tanta clareza.

O segundo obstáculo surge exatamente desse tipo de desentendimento. Depois de muitas situações nebulosas, e uma temporada interminável em Londres, quando acompanham a Sra. Jennings, as duas irmãs descobrem que os prováveis parceiros estão comprometidos com outras mulheres. Enquanto Elinor se protege com o manto estoico (ou seja, prefere lamber silenciosamente as próprias feridas), Marianne entra em estado de desidratação – tamanha é a quantidade de lágrimas que verte diariamente.

Contrário aos romances de ação, Razão e Sensibilidade se caracteriza pelo relato de poucos fatos significativos. A grande maioria dos acontecimentos se restringe ao terreno da imobilidade. Parece que as irmãs protagonistas estão a esperar por uma solução divina – que não acontece. A única ação efetiva, nas primeiras 150 páginas, se concentra nas cartas que Marianne envia para Willoughby. O resto é conversa, especulação, boato e fofoca.

Quando esse impasse avança na direção de algum esclarecimento, o leitor percebe que não foi possível alcançar algo mais substantivo. Infelizmente, a impressão não desaparece com o desenvolvimento narrativo. Willoughby se revela um cafajeste, mas disso ninguém tinha dúvidas. Edward Ferrars, protótipo do bom moço, perde a progenitura para poder honrar um compromisso assumido em uma ocasião de ingenuidade – fato que confirma o julgamento que ele faz de si mesmo: (...) meu próprio refinamento, e o de meus amigos, fez de mim o que sou, um ser desocupado e inútil.

Nesse interim, o Coronel Brandon entra em cena, mas a sua aproximação das irmãs tem a utilidade de uma sombra, ou de algo incorpóreo, e que não altera em quase nada o fluxo narrativo – como personagem ele se parece com algum elemento secundário do cenário, talvez um vaso em cima de uma mesa, próximo da janela.

Quando o leitor, preocupado com o restante da narrativa, imagina que o fundo do poço está próximo de ser alcançado, e não há mais como prosseguir, surge uma solução milagrosa. Por um desses mecanismos que somente a criatividade literária ou a rivalidade fraterna explica, Robert Ferrars, que se tornou o herdeiro da família depois que seu irmão, Edward, foi deserdado, resolve cortejar Lucy Steele – noiva do irmão. Esse curto-circuito social, confirmando a tese de Elinor de que a delícia de uma ação nem sempre demonstra a sua conveniência, termina em casamento. E, estranhamente, em liberdade para Edward – que, ato contínuo, pede a mão de Elinor. Como não poderia ser diferente, Marianne, que nascera para um destino extraordinário, encontra nos braços do Coronel Brandon a felicidade.

Há diversos motivos para ler Razão e Sensibilidade. Muitos deles estão encobertos pelo ritmo lento da narrativa. A crítica social, por exemplo, se projeta com bastante intensidade. A honra e o comportamento adequado em determinadas ocasiões são constantemente reiterados pelo narrador como valores sociais civilizatórios. Enquanto personagens como Willoughby e Robert Ferrars são vistos como indivíduos reprováveis eticamente, o contraponto está exatamente naqueles que se mostram retraídos em todos os momentos cruciais da narrativa, Edward Ferrars e Coronel Brandon. Nas entrelinhas talvez esteja escrito que a discrição e o bom-senso são fundamentais para elevar o caráter. Entre as mulheres o destaque está na Sra. Jennings, que não possui travas na língua, se mete na vida de todo mundo e, de certa forma, adota as irmãs Dashwood como se fossem suas filhas. Ela é a personagem mais divertida do romance (embora diminua em intensidade na parte final do romance). Seu contraponto é Fanny, esposa de John Dashwood, e irmã de Robert e Edward Ferrars. Esnobe, invejosa e defensora de casamentos entre os membros da “classe alta”, produz uma das melhores cenas do livro quanto tem um ataque histérico – no momento em descobre que Lucy Steele está noiva (em segredo) de Edward. Por fim, o casal Sir John Middleton e Charlotte não passa em branco, inclusive porque recebem uma definição perspicaz: Apesar de terem temperamentos e comportamentos diferentes, pareciam-se muito um com o outro na total falta de talento e de gosto. 


Razão e Sensibilidade não é o melhor romance de Jane Austen. Mas, seja como documento de época, seja como entretenimento, proporciona uma leitura agradável e divertida.


Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.

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