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A Mulher Indígena e o Ato de Criação [Eliane Potiguara]

A Mulher Indígena e o Ato de Criação

Depois da angústia e o desespero, o ato da criação: a cura!
 
O ato de criação é um ato de amor. Amor a si mesmo, amor ao próximo, amor à natureza. Seja criar um texto, uma música, uma pintura, uma criança ou qualquer outra arte. Mas para chegar-se até aí, muitos caminhos foram bloqueados, muitas águas envenenadas tivemos que tomar; muitos fantasmas tivemos que enfrentar. Permanecemos como um rio que morre, que não corre e não ecoa ao encontrar-se com as pedras. Nos tornamos uma fome desesperada pelo novo, se enfraquecendo a nossa fecundidade. Enfim um caminho árido e infértil. Tivemos enclausurados dentro de nós mesmos. Mas não agüentamos mais e damos um basta! É hora de criar pacientemente o novo!Assim aconteceu com o povo indígena Guarani do Brasil, quando no período da colonização pelos espanhóis no século XVI e XVII, não quis mais procriar, nem mais cantar e nem mais criar. Queriam jogar-se do alto do penhasco a si e toda sua família, numa demonstração de resistência contra a escravidão, colonização e racismo.

Pacientemente soltamos as amarras que sufocam a nossa alma, o nosso "ânima", a nossa essência para que os pássaros possam cantar de novo dentro de nosso espírito. Parece tudo muito simples. Mas não é. Reencontrar-nos com nosso ser selvagem, com nossa intuição, com nosso ser sutil, com nossos ancestrais indígenas com nossa força interior é um desafio diário, principalmente quando a força externa impõe condicionantes sociais, psicológicos, político-econômicos maléficos,como por exemplo, a destruição de nossa cultura, nossa espiritualidade indígenas, destruição essa que lança as sementes da enfermidade da alma e que lá na frente se transformam em enfermidades da mente e do corpo. Nosso corpo pode estar doente, porque nossa alma o está, pois o impacto social, político, cultural à nossa biodiversidade em todos os níveis, à nossa propriedade intelectual é enorme. E temos que buscar a cura do espírito, a cura do anima. Somente nós mesmos podemos fazer isso, assim como somente nós mesmos, podemos sentir o ato do nascimento, quando nascemos, e ato da morte, quando morremos. São atos só nossos. Ninguém pode senti-los. Somos solitários neste momento. Por isso quando morre um parente indígena, seus pertences são todos depositados em sua tumba. Sozinho ele precisa partir. Assim, cada um de nós temos que lutar pela sobrevivência e auto-determinação política e social. E o fortalecimento de cada indivíduo, forma o feixe coletivo, para a mudança social.

CRIAÇÃO, CULTURA DA PAZ E DA ÉTICA INDÍGENAS

Nos tempos atuais, é hora do desafio. Extirpar o monstro que nos mata no dia-a-dia é dura tarefa. Primeiro se sofre calado. Há os que se acostumam com a dor, a opressão e a repressão social e política, desembocando no desequilíbrio ou na loucura como nos descreve o escritor argelino Franz fanon em"Os Condenados da Terra", quando situou a ditadura na Argélia. Mas há os que clamam, depois de invernos. Há os que berram ! Neste momento, abre-se uma porta. A mudança dentro de nós só se dá, quando identificamos o inimigo interno (às vezes o inimigo somos nós mesmos ) e o rejeitamos, seja da maneira que for.Em nosso caso a CRUZ E A ESPADA colonial no passado, e imperial, hoje. Então podemos parecer loucos, mas no ato de "vomitar" é que está a transformação do espírito para o novo homem, para a nova mulher ! Sofremos e não estamos aqui para sofrer. Tupã oferece grandes dádivas de vida para seus filhos, senão não existiriam tantas belezas, tantos mares, planícies, céus, montanhas, pássaros, seres humanos, ad infinitum... E quando o homem selvagem e a mulher selvagem gritam dentro de nós querendo voltar para a casa primitiva é chegada a hora da mudança. Atente para significado de selvagem e primitiva que nada tem a haver com historiografia, mas sim com interior humano, âmago, essência espiritual, ser sutil, a casa da alma, ancestralidade e espiritualidade indígenas. Quando perdemos os tesouros do Divino, do mágico indígena e ficamos desnudos, damos um basta, é chegada a hora da criação. Ficamos quietos, sentimos solidão, solidão que parece que mata, que maltrata, mas necessária. E entramos em outras esferas superiores e sagradas. Esse selvagem sagrado que foi resgatado e que já estava dentro de nós e não sabíamos, está também nos "recriando" e nos enchendo de amor e nos fortalecendo. Nasce a criatividade. E renascemos. E florescemos para o futuro. O processo de criação emana de algo que surge e que vai crescendo em nosso âmago, é como um novo amor em nossos corações. Vai crescendo e não temos rédeas para segurá-lo. É um vulcão. É a (r) evolução do espírito. É o êxtase. É o insight para o novo ser humano"(a)". Por isso, o número de indígenas no Brasil está crescendo, segundo as estatísticas, 700 mil hoje, e ressurgem povos inteiros resguardados dentro de seu medo, pipocando com sua consciência, após terrível processo de exterminação e crime organizado à sua identidade e cultura. São os quilombolas, de afro-descendência, são os povos ressurgidos, massacrados e calados ao longo dos séculos, são os indígenas amazônicos, nordestinos que migraram das suas terras indígenas por ação do colonizador e que foram empurrados para o racismo e violência das pequenas e grandes cidades brasileiras.Nossos povos sobreviveram ao peso da colonização, do racismo, da intolerância civil e religiosa!!!!!

E esse único ato de ressurgimento que é um ato de criação é o suficiente para alimentar um oceano, assim como o leite doce e materno de uma jovem mãe é o suficiente para trazer de volta um ser nascido prematuramente. No ato da criação se dá a purificação do espírito, do "ânima", da alma e consequentemente a purificação do corpo e a extirpação de velhos tumores, velhos fantasmas... impostos pela cultura racista e o poder. Toda a opressão política ao nosso povo indígena, nos conscientiza para um novo momento e para uma resposta ao exercício de nossos Direitos Humanos e Indígenas.

O processo anterior à criação - o sofrimento, o coração endurecido, por sermos testemunhas de nossa própria opressão, o " ânima" esfacelado - é agora neutralizado e transformado em pó, diante da grandiosidade da BUSCA pela transformação e purificação do espírito, incentivado pela luta pelo resgate cultural e espiritual. Tudo isso é simplesmente política, a política da existência. CRIEMOS, então... sob qualquer enfoque, porque a criação é um ato divino que tende a mudar consciências, formar opiniões, suavizar o individualismo que ronda às mentes.E nesse processo vamos construindo a cultura da paz e da ética de nosso povo, primeiras nações do planeta terra, ameaçados há seculos pelo poder bélico, pelos grupos de poder e interesses nacionais e internacionais.q

E a mulher indígena que passou por toda a sorte de massacres, estupros coloniais e neo-coloniais, ao longo da história do Brasil, condicionadas ao medo e ao racismo, sobrevivem porque são criativas, xamãs, visionárias, curandeiras, guerreiras e guardiãs do planeta. Seu inconsciente coletivo ancestral refloresce a cada ato de criação delas, porque elas são capazes de beijar as cicatrizes do mundo, num ato de caridade, não humilde , mas guerreira e criativa!!!

E a palavra da mulher indígena é sagrada como a terra que dá o alimento ao próximo, alimento da CURA em todos os sentidos.


Eliane Potiguara é escritora indígena. Foi indicada em 2005 ao Projeto Internacional "Mil mulheres ao Prêmio Nobel da Paz", é escritora, poeta, professora, formada em Letras (Português-Literatura) e Educação, indígena Potiguara, brasileira, fundadora do GRUMIN / Grupo Mulher-Educação Indígena. Membro do Inbrapi, Nearin, Comitê Intertribal, Ashoka (empreendedores sociais), Associação pela Paz, Cônsul de Poetas Del Mundo e Embaixadora da Paz, pelo círculo da Fança. Trabalhou pela Declaração Universal dos Direitos Indígenas na ONU em Genebra. Escreveu “METADE CARA, METADE MÁSCARA”, pela Global Editora.E seu último livro é “O COCO QUE GUARDAVA A NOITE”, editora Mundo Mirim.Ganhou o Prêmio literário do PEN CLUB da Inglaterra e do Fundo Livre de Expressão, USA.Site pessoal: www.elianepotiguara.org.br     
Institucional:   www.grumin.org.br

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