Sponsor

AD BANNER

Últimas Postagens

Neusa Baptista Pinto[Jornalista e Escritora Brasileira]

Neusa Baptista Pinto - jornalista formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso. 

Natural de Lençóis Paulista (SP), há 20 anos vive em Cuiabá, Mato Grosso.

Em 2007 lançou o livro,"Cabelo Ruim? A história de três meninas aprendendo a se aceitar", e em pouco tempo, se tornou um item obrigatório para as crianças que sofrem de preconceito ou que apenas não entendem porque são discriminadas por ter um cabelo mais crespos do que as coleguinhas. 

É sua primeira aventura literária publicada. O livro integra seu projeto “Pixaim: Nem bom, nem ruim – Apenas diferente”, cujo objetivo é estimular a valorização do cabelo crespo. 



   

Negra
Negra, não se nega
Nega não, se negra
Não nega se é negra
É negra, se entrega
Se esfrega,
Sente a pele negra
Não se nega não
É bonito se ser o que se é


 “Pixaim: Nem bom, nem ruim – Apenas diferente”


EMUDANDO
 
De tanto ficar calada, um dia a mulher amanheceu muda. Abriu a boca e fez força, não saiu nada. O marido, deitado ao lado, ainda curtindo o restinho de sono da madrugada (eram cinco da manhã) nem se mexeu. A mulher pensou em sacudi-lo, acordá-lo para mostrar o que tinha acontecido. “Estou muda!”, gritaria. Desistiu.

Ficou algum tempo pensando no que poderia ter causado aquela mudez súbita. No dia anterior, não tinha tomada nada gelado. Nem vento frio. Na verdade nem tinha saído de casa. Nunca saía de casa. Aliás, saía sim, pra fazer compras no mercadinho da esquina. Mas no dia anterior não tinha saído nem prá isso: a despensa estava cheia.

O marido, apesar de humilde torneiro mecânico, nunca deixava faltar nada em casa. Então ela não precisava trabalhar. Não precisava nem queria: tinha certa ojeriza de conviver com os outros, preguiça mesmo. Sorrir, cumprimentar, comentar sobre o tempo, debater a novela, lembra nomes... arre, que cansativo! Ela gostava mesmo era de ficar em casa, olhando o café cair lentamente pelo coador, perseguindo uma barata teimosa ou catando os cacos de casca de ovo que caem na pia. E ficar sem falar nada o dia inteiro. Ah! Como era bom sentir a língua totalmente descansada dentro da boca...

No início, o marido, que era muito falador, estranhava. Insistia em puxar conversa, perguntava do tempero da comida, chamava pra sair. No início, ela até dizia algumas frases. “Hoje o galo cantou três vezes”, arriscava. Um dia, quando estava muito inspirada, soltou logo duas frases inteiras: “Derramei leite na toalha, mas já lavei. Aquela margarida dos fundos já deu flor, você viu?” E mais nada.

Aos poucos, o sorriso compreensivo dele se tornou um esgar de raiva. Por que não tinha ouvido sua mãe? Desde o namoro ela dizia que aquela moça era calada demais pra casar. “Menina quietinha engole sapo e cospe sardinha”, sentenciava ela. Um dia, se irritou e deu um beliscão no braço da esposa: “Grita, desgraçada!”, pensou alto. Desde então não faziam mais sexo. Ele se arrependia amargamente: na cama era o único momento em que podia ouvir algumas palavras desconexas saindo da boca dela.

Com o tempo, ele se cansou. E se acostumou. Todos os dias, acordava, dava bom dia à mulher, tomava café em silêncio e saía para o trabalho. Ouvia os colegas reclamando das reclamações das respectivas esposas e sorria... A sua era tão quietinha...

E a mulher foi se acostumando também. E gostando cada vez mais de seu silêncio. Quando acordava, sentia-se absurdamente feliz por ter o dia todo de quietude pela frente. E ficava cismando com suas coisas íntimas, coisas bobas como tirar espinha do nariz ou cortar aquela pontinha da unha que tinha quebrado. Também gostava de ficar na janela horas a fio olhando atentamente a grama que crescia, brotando debaixo dos paralelepípedos.

Às vezes imaginava que, se ficasse bem quieta, só olhando, iria ver o momento exato em que a grama crescesse, acompanhando cada centímetro. Mas, por mais que se esforçasse, ela crescia num momento misterioso (alta madrugada, talvez?) e no dia seguinte já lá estava: alta e verdinha.

Ela ficava feliz mesmo em sentir-se a única pessoa na Terra a acompanhar esses pequenos mistérios... Sentia uma comunhão com todas as coisas vivas.
Uma ligação com o universo todo através das coisas minúsculas que via e sentia. Seu mundo ia, então, ficando cada vez menor e mais rico. Sentia-se em um planetinha só dela (uma dona de casa semi-analfabeta sentindo comunhão com todas as coisas vivas, que espanto!).

Mas naquele dia estava muda. E continuava tentando se lembrar do que tinha feito de diferente no dia anterior. Nada, absolutamente. Correu para o espelho do banheiro e espalmou a língua para fora da boca. Examinou-a bem.

Nada de diferente. Nenhuma verruga, mancha ou ferida. Estava tudo limpo. Escovava a língua religiosamente três a quatro vezes por dia, às vezes só para ter certeza de que ainda sentia dor: esfregava a escova com força a ponto de sangrar muitas vezes. Estava tudo limpo. Mas não saía som algum.

Talvez tudo aquilo não passasse de um pesadelo. Ia acordar no dia seguinte e contar ao marido: meu bem, não imagina o que eu sonhei.... (Ia nada! Seu prazer seria guardar só para si aquele sonho).

Voltou a deitar, com cuidado para não acordar o marido: a última coisa que queria era ter que explicar a ele sobre a mudez ainda por cima sem poder falar. No fundo, sentia-se feliz. Uma felicidade que não se explica: sente-se apenas.


 




Autora: Neusa Baptista Pinto
Edição:
Data de Publicação: 2010
ISBN: 978-85-89560-25-2
Tamanho: 17 x 24 cm
Nº de páginas: 40
Gênero: Literatura Infanto-juvenil
Editora: TantaTinta










 
A descoberta da beleza própria e a auto-aceitação são o assunto central deste livro.

A história da amizade entre três meninas negras e pobres, que enfrentam as manifestações preconceituosas com relação ao seu cabelo crespo e vão, aos poucos, aprendendo a aceita-lo, a brincar com ele e amá-lo do jeito que é.

Surgem novos penteados e com eles também novas formas de ver a si e ao outro, coragem e ousadia para fazer e ser diferente.

 
Sobre a ilustradora
 
Nara Silver, 21 anos, é formada em Moda pela UNIDERP (Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal), em Mato Grosso do Sul. Natural de Goiânia (GO), trabalha como estilista, designer gráfico e ilustradora. Também vive em Cuiabá, Mato Grosso.

  Projeto Pixaim
O livro, segundo a autora, integra o projeto “Pixaim: Nem bom, nem ruim – Apenas diferente”, cujo objetivo é estimular a valorização dos cabelos crespos. O sucesso foi tanto que a obra já esta na sua terceira edição, além de adaptações para o teatro. O projeto é  hoje um dos braços da CUFA - Central Única das Favelas.

A obra hoje atingiu status de clássico é indicada para as crianças que enfrentam problemas de aceitação ou bullying, uma realidade muito vivida no Brasil atual.
 
Contatos:
Editora TantaTinta/Carlini & Caniato
(65)3023-5714/5715

Fontes:
Editora Tanta Tinta
Revista Afro

Neusa Baptista Pinto
Todos os  direitos autorais reservados a autora

Um comentário

geraldo trombin disse...

gostei do seu EMUDANDO... fio condutor interessante... parabéns...