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São Paulo, um país dentro de um Estado [Elisabeth Lorena Alves]



São Paulo, um país dentro de um Estado.
Cidadão
(Sílvio Brito)

Tá vendo aquele edifício, moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição, eram quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar

Hoje depois dele pronto, olho pra cima e fico tonto,
Mas me chega um cidadão
Que me diz desconfiado: "Tú 'taí' admirado,
Ou tá querendo roubar?"

Meu domingo tá perdido, vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio, eu não posso 'oiá' pro prédio,
Que eu ajudei a fazer

Tá vendo aquele colégio moço? Eu também 'trabaiei' lá
Lá eu quase me arrebento, fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar

Minha filha inocente, vem pra mim toda contente
"Pai vou me matricular"
Mas me diz um cidadão: "Criança de pé no chão,
Aqui não pode estudar"

Essa dor doeu mais forte, por que é que eu deixei o norte?
Eu me pus a me dizer.
Lá a seca castigava, mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer

Tá vendo aquela igreja moço? Onde o padre diz "amém"
Pus o sino e o badalo, enchi minha mão de calo
Lá eu 'trabaiei' também. Mas ali valeu a pena,
Tem quermesse, tem novena, e o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse:
"Rapaz, deixe de tolice, não se deixe amedrontar"

"Fui eu quem criou a Terra,
Enchi o rio, fiz a serra, não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas, e na maioria das casas
Eu também não posso entrar"

"Fui eu quem criou a Terra,
Enchi o rio, fiz a serra, não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas, e na maioria das casas...
Eu também... não posso entrar.

Dia 18 de Dezembro comemora-se o Dia do Migrante. Bem, deveria ser comemorado, mas poucos paulistanos lembram-se desta data e alguns nem mesmo a conhece.
Inicio meu texto desta semana falando sobre os Migrantes, pois falar de São Paulo sem contar a importância destes povos brasileiros que chegam as Rodoviárias todos os dias, em grandes ou pequenas quantidades, desde 1930, é deixar de falar de 45% da população do Estado. E vamos combinar que 45% é um total que se deve considerar.
A Migração iniciou-se para que o Estado tivesse mão de obra nas lavouras de café, algodão e cana-de-açúcar, esta última sendo, na época, uma das menores culturas agrícolas, mas tendo sua importância. As pessoas deixavam suas cidades para vir 'ganhar a vida' em São Paulo para depois retornar para seu povo levando um pouco de dinheiro. A esperança destas mudanças, no início do processo migratório, era 'plantado' nos corações deste povo sofrido, pelos homens contratados para ajudar no processo de migração. As pessoas deixavam suas casas e viajavam de modo inseguro pelo interior do sertão, procurando as Rodoviárias de onde partiriam em busca de 'sua “terra prometida’’. No início as pessoas encontraram um bom lugar para trabalhar e conseguiam até mandar uns 'caraminguás' para seus familiares, mas a vida na cidade grande cobrava-lhes um alto preço. Assim muitos foram constituindo famílias no Estado que os acolheu e eles não conseguiram voltar ao seu pedaço de chão, aumentando assim a população paulistana.
A migração, dita nordestina, dividiu-se em duas vias de entrada. Uma entre 1930 e 1950 em que migrantes vieram trabalhar na lavoura, como citei acima, e a outra via iniciada em 1980 e relacionada ao plantio da cana-de-açúcar para a Indústria de Petróleo alternativo do Programa Nacional do Álcool (programa de substituição em larga escala dos combustíveis a base de petróleo para veículos automotores a álcool) financiado pelo governo do Brasil, devido as crises de petróleo de 1973 e 1979. Quem viveu esta época lembra-se do Etanol e seu cheiro repugnante! Muitos destes migrantes ficavam nas cidades somente durante a safra e trabalhavam em lavouras ou usinas, a maioria voltava para seus Estados ao fim desse período. Muitos destes migrantes temporários acabavam fixando-se em empresas da Construção Civil para 'plantarem espigões' e traziam aos poucos suas famílias ou constituíam novos laços familiares em São Paulo.
Segundo dados encontrados em Museus e Arquivos da Migração, quase 51% dos trabalhadores migrantes que entraram em São Paulo entre 1936 e 1940, eram originários da Bahia.
Com esta entrada acirrada de brasileiros de outros Estados, São Paulo tornou-se este lugar inusitado, onde se pode comer de tudo, falar com diversos sotaques. Em São Paulo pode-se comer um bobó de camarão, um tutu à mineira, munguzá de milho branco, moqueca de peixe com muito dendê e leite de coco, churrasco e chimarrão que eu, particularmente amo. Paulista ama estes contrastes não só culinário, mas culturais também, afinal estes povos trouxeram suas histórias, sua literatura, suas músicas e seus folguedos.
O maior incentivador da migração para São Paulo foi Armando Salles de Oliveira, que em 1935 decidiu estimular a entrada de diversos outros brasileiros para suprir a mão de obra na lavoura.
Na verdade esta migração não era algo aleatório, fazia parte de uma estratégia do governo de Armando Salles de Oliveira, que consistia em introduzir trabalhadores mediante a seguinte subvenção: pagamento de passagem, bagagem e um pequeno salário para a família. As firmas contratadas pelo governo para trazer trabalhadores de outros Estados passaram a operar com afinco no Nordeste do país e no Norte do Estado de Minas Gerais, criando a ilusão de uma vida gloriosa nas terras paulistanas. Os trabalhadores de então faziam como fazem os que saem do País em busca de 'dólares', acreditavam piamente nas palavras dos 'atravessadores' e mudavam para São Paulo sem imaginar o que lhes reservava a sorte quando o emprego faltasse. Não é assim que ocorre hoje aos que saem do Brasil em busca de dinheiro fácil, mas encontram lá fora muito trabalho e pouco respeito.
Depois das empresas que trouxeram migrantes para São Paulo, em 1939, o Departamento de Imigração e Colonização foi reorganizado e criaram a Inspetoria de Trabalhadores Migrantes, que substituiu as firmas particulares no serviço de migração. Assim, quando as famílias chegavam a São Paulo eram recebidas na Hospedaria do Imigrante e então distribuídas pelo Estado. Neste ano chegou a entrar em São Paulo 100 mil migrantes.
Só em 1950 e 1960, com a industrialização maciça do Estado surgiram os migrantes que ocuparam as funções 'magras' nos diversos setores da Indústria. Isto por causa do processo de substituição de importações e a necessidade de suprir os desejos dos moradores do Estado. Estes dois fatores impulsionaram o desenvolvimento industrial da região.
Com a mistura que se deu de povos, o Estado enriqueceu-se, ganhou a forma cosmopolita que lhe dá fama. Bairros ganharam sotaques e sabores diferenciados. Os nordestinos trouxeram sua dança – o forró - e seus temperos, os nortistas que tomaram para si Carapicuíba, trouxeram seus doces exóticos e mesclaram com os sabores e saberes de seus vizinhos nordestinos, pois, juntos, perfazem um total de 70% da população daquele local.
Assim como existe o Centro de tradição Nordestina, há também o centro de Tradição Gaúcha, onde os gaúchos realizam festas com acordeão e rabeca e, claro, churrasco. É válido lembrar que os gaúchos preferem morar no Embu, onde preservam a tradição do mobiliário rústico e artesanal. Mas o Centro de Tradição Gaúcha fica no município de Diadema, a beira da Represa Bylings. Uma das muitas atividades comuns e que todos podem participar, sendo gaúcho ou não, são as aulas de dança folclórica que acontecem nos finais de semana. Outro evento, este acontece 1 vez no mês, todo segundo domingo, é a “Domingueira” um almoço com o típico churrasco gaúcho.
Bem, mas não é sobre os gaúchos meu texto desta semana, pode até ser num futuro, quem sabe. Este povo brasileiro tem muito a nos contar e ensinar, só que estamos falando sobre a migração que reformulou a população do Estado. Antes dos demais Estados surgirem em São Paulo com sua colaboração importante, a população do Estado era composta de europeus, negros e indígenas.
A migração tornou-se uma necessidade muitas décadas antes de ela se iniciar. Na verdade, ela se fez necessária, pois anos antes, em uma absurda ideia de que os brancos eram superiores aos demais e só os europeus eram dignos de confiança, ocasionou uma das maiores limpezas étnicas da História do Estado. É válido lembrar que esta situação aconteceu em todas as capitais brasileiras. Foram expulsos das grandes cidades os caipiras, cafuzos, mestiços em geral, mas esta é outra História.
Antes de terminar, vale lembrar que esta chamada eugenia ocorrida nas grandes cidades era uma discriminação racial e atingia a todos os povos natos das terras. A canção que usei como tema, “Cidadão”, de “Sílvio Brito”, fala de outra discriminação, a discriminação social. Esta ainda está muito presente ainda nas grandes capitais. As pessoas sentem medo dos mais pobres, desconfiam de seus atos e quando andam entre os simples mortais, nas ruas,  seguram seus bens como se fossem sua própria vida. Que fique claro que a discriminação social não é um mal da sociedade paulista apenas, as pessoas que viajam e conhecem outras capitais sabem muito bem que é um problema de Brasil e do mundo. Vi muito isto no Rio de Janeiro, quando visitava as praias famosas, cheia de celebridades e de pessoas abastadas, eles olhavam com desprezo para meu maiô de outras épocas. As pessoas valorizam seus iguais, mas se esquecem que não somos iguais em nada. Temos características físicas idênticas por sermos seres humanos, mas o que nos molda é nosso convívio social, nosso contato diário com a realidade. Pessoas que não sabem aproveitar o aprendizado oferecido pela vida, formando-se apenas nas universidades, descobrem, hora menos hora, não terem aprendido nada.
Na canção de Sílvio Brito aprendemos muitas vezes que, nós mesmos, os pobres mortais, os mortos de fome, agredimos ao próximo só por estarmos ao lado de quem pode mais que nós. Sempre penso que a pessoa que se aproxima do personagem desta canção, quando admira o grande edifício construído por ele, é na verdade um guarda, que se afasta da guarita, com a mão no cassetete e pergunta se o outro é um ladrão. E por qual motivo vejo assim? Simplesmente por ver, sempre, que as pessoas não percebem que no tabuleiro da vida, como os peões que protegem as torres, os bispos, o rei e a rainha, eles serão simples peões sempre, mesmo quando o jogo acaba e o tabuleiro volta posição inicial.
E como dizia um Programa Infantil, aqui finda esta história, quem quiser que conte outra. E para não terminar a seco, fica mais uma canção de Sílvio Brito, Pacato Cidadão, que conta as dores do migrante. Uma história de vida em algumas estrofes.
A todos os migrantes que construíram meu Estado, meu muito obrigada!!!

Pacato Cidadão
(Silvio Brito)
Pacato cidadão vindo da Paraíba
Ou era Pernambuco Ceará não sei, só sei que é lá de riba
17 anos 17 irmãos 10 ainda com vida
Saiu pelo Brasil, foi para são Paulo
Levou quase nada o que mais pesava era um montão de calos
Pau para toda obra vontade de sobra em busca de trabalho.
Ai minha mãe, é mais bonito do que se pensa
Ai meu pai arranjei serviço aqui no edifício abraço, tchau e bença.
Primeiro salário metade para família
Ai comprou raibam, calça de blue jeans, rádio de pilha
Ainda sobrou uns trocos de muita hora extra, ai que maravilha!
Conheceu uma moça no Ibirapuera
Morena bonita, jeito de artista flor de primavera.
Ai então danou-se, ele apaixonou-se, namorou com ela.
Ai minha mãe, é mais bonito do que se pensa
Ai meu pai to apaixonado, to quase casado, abraço, tchau e bença.
Largou do edifício foi cavar metrô
Tentou outras coisas fez de tudo um pouco só não assaltou.
Quis que aquela moça casasse-se com um moço trabalhador.

Tiveram dois meninos Jeferson e Kleiton
Gêmeos berram juntos, gêmeos mamam juntos um em cada peito
Tudo engano dela erro de tabela agora não tem jeito.
Ai minha mãe, é mais bonito do que se pensa
Ai meu pai agora eu sou pai que nem você é meu pai, abraço, tchau e bença.
Mas veio o desemprego e com o passar do tempo
O sonho que era doce acabou-se a coisa foi ficando séria
Ela então danou-se desapaixonou-se fugiu da miséria.
A alma dele então virou uma só ferida pacato cidadão mais um na multidão perdido e sem saída, 27 anos 10 de desenganos nos becos da vida.
Ai minha mãe, é mais doído do que se pensa
Ai meu pai coração ferido mais que arrependido que saudade imensa.


Elisabeth Lorena  Alves - Alguém que não gosta de ficar parada, mas que estaciona frente a um bom livro e sonha com as palavras. Posta no Elisabeth Lorena Alves ( www.eliselorena.blogspot.com.br)

2 comentários

Jane Eyre Uchôa disse...

O nordeste está em todo lugar. Até hoje penso por que não se investe neste povo? não se investe nas suas terras tão lindas? precisam passar perrengues na casa dos outros, que tristeza. Antes de chegar em Sao Paulo 1930, eles passaram aqui pelo norte no ciclo da borracha 1889 e sofreram o diabo por aqui. Infelizmente até hoje só muda o ciclo das coisas, mas o povo nordestino continua saindo de casa para ganhar a vida em terras alheias. Excelente texto Beth, mostra a cara do Brasil.

Elisabeth Lorena Alves disse...

Agradeço Jane, a leiturae o comentário.
Enquanto pesquisava para relembrar estas histórias todas, passei pelo ciclo da borracha e dei uma paradinha, afinal, como dissestes com propriedade, o povo nordestino já tem muito tempo que anda de lá para cá procurando um modo melhor de viver, mas sempre na casa dos outros - usando suas palavras - pois realmente ninguém investe para que eles sejam felizes em seu solo pátrio.
Em São Paulo há todo tipo de migrante, mas que foram ganhar a vida lá, foram, em sua maioria, os nordestinos. Estes mesmo que construíram com seu suor e saudade o meu Estado querido. Outros também aportaram por lá e tiveram sua importância, mas sofrer como este povo sofreu não foram todos.
Meu Estado tem uma dívida de honra com os estados todos do Nordeste e alguns Estados do Norte também.
Amo sua visita e estou esperando seu texto desta semana, pronta para comentar.
Abraços