Mesmice pouca é luxo
Estava decidido:
daria um giro no dia para que tudo saísse do trivial. Rotina muita asfixia, e causa até indolência.
Há coisas que não mudam, sai dia, entra noite. Que canseira! Porém, antes de
qualquer iniciativa minha, o telefone estrilou, e uma voz falseada abordou-me:
– Bom-dia, senhora! Posso estar falando com a senhora um instante? –. “Estar
falando”? Não, não pode! Proíbo-a de fazê-lo! Desliguei a chamada.
Liguei a televisão.
Quem sabe, um bom filme, na TV fechada, para defuntear o tempo, pois encontrava-me
em repouso, sob ordens médicas. Oba!, um do gênero policial, com muita ação,
perseguições, investigação, enfim. Ah! nem...! De novo, a rotulada briga pelo
poder na área, entre um investigador e outro, e o tal carro da polícia, em
perseguição ao do bandido, explodindo após deparar-se com uma jamanta que lhe
interceptou a passagem?! Que falta de criatividade, cruzes! O perseguido?
Safou-se, claro! mais uma vez. Esses filmes americanos... Francamente!
Melhor, decidi,
buscar um bom programa esportivo. Ih!... Não dei sorte! O canal reprisava
entrevista de um jogador de futebol, e aí, só Deus para moucar meus ouvidos e
poupá-los do tal “Com certeza!” e de seus complementos.
– Você chutou sem
direção, parecia desligado da partida, aliás, todo o time estava displicente, o
que houve? – quis saber o entrevistador.
– Com certeza!
Chutei bem, a trave é que tava de implicância comigo, mas fiz um bom jogo, com
certeza! Todos tão de parabéns, até o azar, com certeza! Não, o azar não, com
certeza! Agora, é levantar a cabeça, com certeza!”
Eu, sim, levantei a
minha, e, novamente, mudei de emissora. Ah! que bom, aquele casal simpático e
seu gostoso “Boa-tarde!”! Iniciava-se o jornal televisivo. Primeira reportagem
e... “É preciso encarar de frente a realidade...” (como seria encarar de
costas?). Não aguentei!
Passei para a
novela. Uma, outra e... o mocinho apaixonado pela moça rica ou vice-versa. No
auge do romance, fulano descobre-se irmão da beltrana, ou então, mais um filho
esconde a mãe por sentir vergonha da pobre! Topadas que resultam em objetos
caídos e toques de mãos, ufa! Um implicou com a outra, os dois não se suportam,
brigam sem parar, final feliz à vista. Eita autores originais, benza Deus!
Como última
tentativa, dirigi-me ao computador para vistoriar os e-mails. Nossa, quantos!?
Um deles, de uma aluna de certa escola municipal, atarantou-me. Analfabeta que
sou no léxico internético, fiquei mais baratinada que eleitor atrás do eleito
para cobrar-lhe aqueeeeelas promessas de campanha. Abro parêntesis: por falar
nisso, olá, prezado vereador amigo, cadê o projeto que dará a um logradouro
municipal o nome de minha mãe, Profª Lousinha Carvalho, uma das pioneiras na
Educação em Goiânia, e que, durante quarenta e dois anos, atuou na área como
professora, diretora, presidente do Mobral, com dinamismo, competência e senso
inovador, o que lhe valeu destaque nacional... E então?! A promessa está
prestes a completar dois anos e até agora... Olhe, aquela outra... ah! esqueça,
vou dar-lhe pouso em meu arquivo morto,
certo? Fecho os parêntesis. Bem, ao e-mail: “Oi, Ld, bd! Gt de s plt. Vc é bcn
d+ e mt dvt. Tb adr s lv q é btt egçd. Vt sp. Obg. Bj”. Que língua é essa,
santo protetor dos desentendidos?! O jeito, procurar um tradutor. Alguma coisa,
ele traduziu, mas outras... Em última instância, recorri à e-mailizadora que, a
princípio, mostrou-se desentendida de meu desentendimento. Aí, o pequeno texto
saiu das sombras: “Oi, Lêda, bom-dia! Gostei de sua palestra. Você é bacana
demais e muito divertida. Também adorei seu livro que é bastante engraçado.
Volte sempre. Obrigada. Beijo”. Ufa!!!
Mais uma tentativa
frustrada: não consegui tirar meu dia do lugar-comum. Hum... à tarde, eu
visitaria uma escola. Uma chance ainda viva, viva! Fui. O recreio estava quase
no fim. Aproximei-me de um grupo de alunos, e a conversa sassaricava
livremente: ”Formou, mano!”. “Tipo assim, irado”. “Fala aí, ele ficou bolado?”.
“Sinistro, pô!”. “Tipo assim, na moral”. “Demorô, malandro!”. “Tá zoando,
Mané?”. “Tipo assim, porradão!”. “Rasga, vaza, cara!”. “Manero pra caramba batê
um lero com a mina!”. “Ele tá ferrado!”.
“Tipo assim, sarado!”. “Se liga pra num pagar sapo!”. Meu Deus, será que
eles entendem o português que falo?! – perguntei-me.
Bem, as novidades
não surgiram. Como quem não arrisca não conquista, continuarei em busca de algo
novo. O que me conforta é que Luís Fernando Veríssimo também já caiu na cilada
do “Tipo assim...”.
Baiana de Urandi e goianiense por adoção, LÊDA
SELMA (de Alencar) é graduada em Letras Vernáculas e pós-graduada em
Linguística. Poetisa, contista, cronista (escreveu para o Diário da Manhã por
21 anos, aos domingos), integra várias antologias nacionais e internacionais. É
verbete em obras como o Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly
Novaes Coelho, São Paulo/SP, e Enciclopédia de Literatura Brasileira, Afrânio
Coutinho/J. Galante de Sousa, São Paulo/SP. Atual vice-presidente da Academia
Goiana de Letras/AGL (ocupa a Cadeira 14), da Associação Nacional de
Escritores/ANE, União Brasileira de Compositores/UBC, União Brasileira de
Escritores/UBE-GO e Associação Goiana de Imprensa/AGI. Publicou 15 livros
(poemas, contos, crônicas). Entre várias premiações, o Troféu Tiokô de poesia,
da UBE/GO, Troféu Goyazes Marieta Telles Machado, de crônicas, da Academia
Goiana de Letras, e o Mérito Cultural, pelo conjunto da obra, da UBE/RJ.
Recebeu os títulos: Cidadã
Goianiense e Cidadã Goiana.
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2 comentários
Leda
Odeio 'Internetês', mas tem dia que é a única língua que meu computador conhece ou reconhece. Se recebesse o e-mail citado teria dificuldade de traduzir também. Sofro com alguns dos meus bem menos complexos que este.
Rio do modo óbvio da Televisão também, mesmo as opções 'Canal Fechado' que nada acrescentam.
Amei seu texto, é simplesmente delicioso.
Elis
Cara Lêda, realmente as linguagens usadas atualmente causam irritação e para mim, a pior delas continua sendo as novelas. Minha querida Elisabth lançou um desafio na sua página do Facebook para decifrar seu e-mail e confesso que não consegui decifrar muita coisa não! Onde vamos parar? Eu como mineira que sou sei bem o quanto meus conterrâneos costumam abreviar as palavras...mais uma linguagem!!!
Ótimo texto!
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