NANNI MORETTI E O PAPA
Em 1973, quando tinha 20 anos, Nanni Moretti comprou uma câmera super 8. Pagou pelo equipamento com o dinheiro obtido com a venda de uma coleção de selos. O seu primeiro filme, La Sconfita, relata a história de um militante político em 1968.
Contaminado pelo furor do cinema, depois desse primeiro trabalho, Moretti nunca mais parou. Dirigiu e atuou em 19 filmes, onde a política e humor estão sempre presentes – com efeitos devastadores.
Caro Diário (1994), O Quarto do Filho (2000) e O Crocodilo (2006) provavelmente são os mais conhecidos.
Os bastidores da igreja sempre resultaram em interessante tema literário. Basta lembrar alguns trechos do Decamerão (Giovanni Boccaccio, 1348-1353) ou de romances como Os Subterrâneos do Vaticano (André Gide, 1914), As Sandálias do Pescador (Morris West, 1963) e Anjos e Demônios (Dan Brown, 2000) – todos adaptados ao cinema. Isso para não mencionar milhares de páginas escritas (e filmadas) sobre a mitologia que envolve os nomes de duas das mais tradicionais famílias italianas: Médici e Bórgia.
Habemus Papam, que concorreu no Festival de Cannes, em 2011, ridiculariza duas das maiores instituições anestésicas da modernidade: a religião e a psicanálise. Sem piedade, Nanni Moretti as coloca na cadeira dos réus e decreta aberta a sessão do tribunal. Não lhe interessa a condenação. Quer, no máximo, mostrar o quando são absurdas como instrumentos de domesticação social.
O Papa está morto. Seguindo o protocolo católico, cabe designar o seu sucessor. O conclave se reúne. Depois de alguma indecisão e muitas votações, quando alguns dos favoritos vão sendo descartados, os cardeais decidem pelo nome do Melville (ecoando no horizonte o mantra de Bartebly, o escriturário: Prefiro não fazer).
Movido por algum mecanismo emocional complicado, o escolhido (interpretado pelo francês Michel Piccoli) não se sente apto para assumir o cargo. Falta−lhe coragem para enfrentar a multidão que está reunida na Praça de São Pedro. Deprimido, se recusa a abençoar o povo. Abre−se uma fenda no ritual. Ninguém sabe o que fazer. No desespero de causa, o porta−voz do Vaticano (interpretado por Jerzy Stuhr) solicita a ajuda de Brezzi, um psicanalista (Nanni Moretti). Obviamente, o médico esbarra em diversos interditos terapêuticos. Não é possível (por motivos religiosos e políticos) abordar questões sexuais, problemas edipianos, sonhos, fantasias e desejos não realizados. Também está proibido investigar a infância. Evidentemente, isso cria outro impasse
O Papa que não quer ser Papa (interpretado pelo magistral ator francês Michel Piccoli), durante uma consulta médica, consegue fugir da Guarda Suíça e passa alguns dias no meio do povo. A solidão do poder é também a inquietação física. Sem ser reconhecido pela multidão, o Papa se hospeda em um hotel e passa a freqüentar lugares que, em situação normal, lhe seriam vetados: lanchonetes, loja de departamentos, um teatro (onde estão interpretando A Gaivota, de Anton Chekov).
Enquanto a segurança palaciana monta uma farsa para encobrir o desaparecimento do Sumo Pontífice, Brezzi organiza um torneio de vôlei entre os cardeais. É o non-sense tomando conta da arquitetura narrativa e revelando, de forma pouco usual, que a diferença entre a loucura e a lucidez talvez esteja restrita ao papel que escolhemos interpretar no teatro da vida.
Por fim, o Papa reaparece, mostra-se ao povo, no balcão do palácio e... Comprovando a triste metáfora do homem perdido na multidão, sem poder contar com a ajuda de Deus, renuncia ao cargo.
Humanista, Moretti retrata os cardeais como indivíduos cheios de falhas, incapazes de ultrapassar os impasses produzidos pela ética e pela moral. Não é pouco.
Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
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