O cinema, a poesia e a leitura em 3D
Ricardo Darín veste tão bem o publicitário que desenhei...
Por Mô Amorim
Dessa vez eu pensei em escrever sobre cenas do meu singelo cotidiano que poderiam virar ideia de filme. Depois pensei em escrever sobre músicas que poderiam virar ideia de filme. Pensei mil coisas com vontade de trazer algo diferente para meu leitor. Mas nada saiu no papel como eu queria.
No papel é outra coisa absurdamente diferente, sabe?
Há os que dizem que o papel aceita tudo. Não é bem assim. Ele manda e isto é mistério que nunca decifrei. Há de se ter o jogo, o jeito, a ginga, a bossa de escrever a fim de acordar o leitor.
E não adianta manjar do assunto ou ter assistido ao filme várias vezes. Então, numa última tentativa, comecei a buscar alguns poemas alheios que pudessem virar ideia de filme.
Novamente, o papel disse NÃO.
Eu perguntei o que ele queria. Cansada, decidi ler meus poemas antigos para ver se a tarefa se tornaria mais familiar, para ver se algum guardava matizados de narrativa.
Para minha surpresa, achei este que divido com vocês e que foi escrito por mim em 2009. Mas por favor, não me julguem insuportável por isso.
É o papel quem dita o que combina e lampeja. Eu o escrevi faz tempo e hoje, ao revisitá-lo, veio em meu imaginário o ator Ricardo Darín como protagonista deste poema que facilmente poderia virar um filme.
Eu mesma estou surpresa com a transposição proposta. O cenário também me visita com seus claros enfeitando azuis de um bairro qualquer da vespertina Buenos Aires cálida, cândida, quase plácida.
Ricardo Darín veste tão bem o publicitário que desenhei.
Convido agora você, meu querido leitor, a rodar na mente a película-poema abaixo. Sei que é um convite audacioso. Talvez estúpido de minha parte. Mas por que propor sempre o mesmo e entregar o texto plano para você?
Se você aceitar o desafio, proponho a leitura em 3D. Coloque os óculos com as lentes da imaginação. Divague! Experimentem o exercício de ler um poema e transformá-lo em um filme e me acalme, provando que não estou tão louca assim. Que em arte, tudo é elástico e fantástico. Espero ter escolhido a melhor tomada. Espero que me perdoe tanta audácia. Um abraço da Mô.
Previdência privada
"Flores sentem saudade..."
“Flores sentem saudade…”
Ele se mudou faz um mês
Da janela de sua sala do 2º andar
Avista um quintal cheio de flores
De todos os tipos
Ele trabalha
É publicitário
Tem que criar
Mas a obrigação de criar o aprisiona
Abriu a janela outra vez
Viu a mulher erguer as mãos com esmaltes vermelhos
Sua tez branca
Um vestido limpo
Tom areia
Despretensioso
Vestida como donas de casa
Em filme americano da década de 50
Ela cuidava das flores
Que, à altura de seu rosto, aguardavam morada em singelos vasos pendurados,
A água pura
Ao olhar para aquilo
Riu
Mandou a ideia para a agência
Ficou rico
Mudou de apartamento
E…
Todos os dias
No horário nobre
Passa o comercial
De previdência privada do banco de sucesso daquele país
Nele, uma mulher, despreocupada e feliz, cuida das flores no jardim
Enquanto a voz rouca
De um ator famoso narra as inúmeras vantagens
Do plano de previdência privada do banco de sucesso
Mal sabe o publicitário que nesta manhã,
Por não poder mais comprar os remédios
A mulher do jardim morreu de uma doença comum
Num hospital comum
Cheio de pessoas comuns
As flores sentem saudade.
Fonte:
Mô Amorim é uma moça de família quase boa que presta atenção no comportamento de estátuas, pombas e transeuntes. Formada em Letras, cultiva certa dor pelos livros que ainda não leu. Publicou em 2010, pela Editora Adonis, o livro "A nuvem vermelha", e escreve, como se fosse remunerada de raios de sol, poemas e crônicas para o blog “Estripitize-se!”, o qual mantém desde 2007. Seu e-mail para contato é monicaamorim816@hotmail.com
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