Definhou. Como as flores nos vasos que antes a mulher esparramava pela casa. Enrugou, curvou, trocou o perfume de frescor pelo cheiro impregnado da velhice. Não que estivesse sentindo o peso da idade. Vergava ao peso dos tropeços e tombos com que a vida o confrontara, obrigando-o ao ceder e ao recuar constantes. Da crença, que sempre fora escassa, desfez-se com rancor. Droga de fé sem sentido que o forçara a confiar nas pessoas, no destino, na sorte.
Sentado agora, e todos os dias, no sofá da sala, cochilava pesadelos entremeados por telejornais e novelas. E tentava lembrar quando o vigor do corpo o havia abandonado. O da alma ainda estava em processo de ruína — gradual e pérfido.
Seu calvário começara com a aposentadoria. E com a mudança do Rio de Janeiro para Brasília, para onde a mulher fora transferida ex-officio um ano antes de ele se aposentar. Tinha trabalhado muito. Uma vida. Sonhando com o dinheiro que receberia. E recebeu. Mas escolheu apostar nas ações para aplicar o capital de toda uma vida. Perdeu. Tudo, tudo. Azar mesmo. Desses nos quais só acredita quem tem. Salvou da desgraça um fusca zero quilômetro. E passou a viver da aposentadoria minguada. Ano após ano.
A esposa, menos crédula, tão logo havia chegado ao Planalto Central, financiara o apartamento em que moravam agora. O rendimento das ações pagaria adiantado pelo imóvel, pelo sossego da velhice. Não pagou. E a dívida prosseguiu por anos sem fim, montada nos ombros da esposa. Humilhação. Sentiu-se menos homem. Adoeceu. Primeiro, de tristeza; depois, de acabrunhamento; e, finalmente, da certeza de que não conseguira construir nada. Mas ainda tinha um carro. O terceiro da sua vida. Branco, com frisos de metal, tapetinhos extras. Uma lindeza. Melhor que os outros dois antes dele. Verdade que fora comprado com a ajuda do dinheiro da mulher. Como o segundo também fora. Mas uma lindeza. Roubado de madrugada e encontrado dias depois todo queimado, sem motor. Azar, de novo.
Foi a essa altura que tomou para si o sofá da sala.
Pela manhã, banho gelado, hábito de menino. Café pela metade, para não aumentar o peso e complicar o reumatismo. Ou o coração. E, então, a posse do sofá, por volta de 10 da manhã. Só saía da sala de madrugada, à exceção de duas ou três idas ao banheiro, mancando por causa dos esporões na sola do pé. Almoço, lanche. Tudo lá. Em frente à televisão ligada o tempo todo.
Ficou estranho. Parou de conversar e de cantarolar, duas coisas que gostava de fazer. Pensava no carrinho branco comprado pela esposa e chorava. Olhava as paredes do apartamento comprado pela esposa e chorava. Olhar perdido, de velho, de saudade, de adeus em doses.
Definhou manhãs e noites. Em silêncio de dor. Morreu em Brasília, na UTI de um hospital de convênio. Longe da mulher. Longe do sofá. E nem voltou para ser enterrado onde queria, no Rio de Janeiro. Azar. Como sempre.
Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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